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Relações entre preocupação materna primária e concern

Para adentrar nas relações entre a preocupação (preocupation) e a capacidade de se preocupar (concern), tornaremos brevemente alguns passos, até a ideia de agressão e destrutividade em Winnicott. Apresentamos, nas primeiras seções deste capítulo, algumas das diferenças entre Winnicott e Klein (e Freud) no que diz respeito à sua opinião sobre a participação de um “instinto destrutivo” na agressão e no “ciclo benigno” que leva até a capacidade de se preocupar (concern).

Como dissemos acima, a agressão primária em Winnicott (1964a/2005a) é o encontro da motilidade muscular com a oposição material do ambiente. Nos estados excitados, surgem impulsos (drives) originados da tensão instintiva, os quais demandam uma resposta urgente do ambiente e criam a satisfação ou a frustração; ou relacionados à motilidade, a qual descobre e redescobre a presença material dos objetos contra os quais se choca, localizando lentamente um mundo externo. Se o ambiente puder fazer coincidir a experiência satisfatória com esse elemento de resistência, oposição, que satisfaz a motilidade, então esses dois elementos são fusionados em um erotismo muscular, facilitando a elaboração imaginativa das funções corporais e a personalização. Quando a dependência passa a ser menor e a integração é mais estável, a agressividade passa a ter um caráter de instrumentalidade para o indivíduo, na forma da raiva ou ódio pessoal pelo objeto frustrante.

No estágio de preocupação, ocorrem os eventos que Winnicott (1954a/1982) agrupa sob o nome de “desmame”, ou desilusionamento: a mãe já “se cansou” de adaptar-se absolutamente ao bebê e começa a gradualmente “desiludi-lo”, na medida da necessidade de independência do bebê. Ele já está em vias de tornar-se uma pessoa inteira, isto é, os processos de integração tiveram início, embora ainda sem muita estabilidade, mas o enunciado vale justamente porque mecanismos como a projeção e a introjeção já podem fazer sentido: a destruição do objeto e sua sobrevivência localizam- no “do lado de fora”, isto é, cria uma ideia rudimentar de dentro/fora, eu/não-eu (Winnicott, 1954a/1982).

Uma das dimensões da dedicação do ambiente à difícil tarefa compreendida em Winnicott como cuidado materno é tolerar e sobreviver, regredir e progredir, permanecendo a mesma e mantendo a confiança no amadurecimento. Isso significa que, mesmo na regressão psíquica que pertence à preocupação materna primária, algo da saúde mental da mãe como pessoa total é mantido e pertence à capacidade para tolerar a agressão e a destrutividade, não somente sua própria, mas também de seu filho.

A mãe precisa contar com o seu ambiente real, uma indispensável organização familiar que lhe dê suporte e também com elementos de seu ambiente infantil, introjetados na forma de capacidades psíquicas. O cuidado internalizado como capacidade de se preocupar (concern) permite que a mãe suporte a destrutividade, sobrevivendo a ela sem retaliar. A preocupação (concern) inclui a capacidade psíquica da mãe em ver seu filho como uma pessoa total, localizada fora de sua onipotência, com existência separada e cujo gesto pode tornar-se construtivo.

A preocupação (concern) da mãe a permite compreender que o gesto espontâneo se transforma segundo o desejo do filho (eu) e não o desejo da mãe (outro). Se o bebê precisa reagir ao desejo da mãe (“m/other”) na fusão, então seu impulso é submisso ao desejo do outro (Outeiral, 2001), problemática da psicose. Para Outeiral (2001), a função paterna é crucial para a separação da “fusão mãe-bebê” e o retorno da mãe à vida adulta.

Em Winnicott (1969/2005), o pai pode ser o primeiro elemento de integração e totalidade pessoal, presente desde a imago paterna no psiquismo da mãe, seu complexo edipiano e no que dele está presente em sua escolha sexual pelo pai do bebê, quando isso é possível. A preocupação (concern) da mãe e seu reconhecimento da alteridade a permitem ver seu filho não plenamente como um produto materno, assim como o pai é concedido desde sempre como inteiro e existente, não uma criação do bebê. Para Araújo (2006), essa é uma função paterna dentro do cuidado materno, a qual possibilita que o indivíduo, originalmente “auto-criado”, perceba-se como resultado da sexualidade de um par, na medida em que a mãe permita a entrada do pai no universo do bebê, representante da lei, verdadeira alteridade. A função paterna, presente no recrudescimento da preocupação materna primária, abre o caminho para a problemática

(familiares ou sociais) que facilitam essa função paterna auxiliam a mãe e o bebê com o processo do desmame, já que outras pessoas precisam estar disponíveis para assumir responsabilidades sociais e simbólicas com o que foi, inicialmente, uma fusão de uma mulher e seu filho e passa gradualmente a compor o retrato de uma família.

Winnicott (1965/2001) nos diz que os efeitos da vida familiar dos pais se fazem entrever no cuidado que eles são capazes de fazer de seus filhos. O ambiente nunca deixa de ter importância no desenvolvimento saudável, assim como a dependência nunca se transforma em completa independência. Para o autor, a constituição de uma nova família possa ser uma manifestação da preocupação (concern) na contribuição ativa da sexualidade, da procriação e do cuidado aos filhos (Winnicott, 1963a/1983). Toda uma série de experiências agressivas e destrutivas dos indivíduos junto à casa de seus pais e outros lugares da cultura podem ser reconstruídas no criar e sustentar uma família. A própria contribuição das crianças, aceita pelos pais, é tanto criativa quanto construtiva e facilita os processos de integração na família (Winnicott, 1965/2001).

Antes de finalizar este capítulo, passaremos ao exame de um importante elemento do cuidado humano que foi aqui mencionado várias vezes, embora não de modo sistemático, que é a ilusão. A ilusão é uma das experiências que permitem a criação dos fenômenos transicionais, o brincar, a experiência cultural, a artística e a religiosa e, segundo o que ora sugerimos, a experiência de cuidado. Além da capacidade de se preocupar (concern), veremos que o cuidado materno e a regressão à preocupação materna primária dependem igualmente da capacidade para transicionalidade (Januário, 2012), o que permite um estado paradoxalmente concomitante de regressão à identificação primária, preocupação (concern) e sentido social.