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O setting como espaço potencial a partir da dependência

Segundo Winnicott (1958/1983), a experiência com a ilusão de onipotência, proporcionada por um ambiente suficientemente bom no início da vida é o que permite o uso de substitutos para pensar e representar os elementos do ambiente, quando estes começam a se revelar verdadeiramente “externos” ao indivíduo.

A capacidade de separar-se desses elementos depende de um mecanismo psíquico que permita ao indivíduo ab-rogar gradativamente sua onipotência, ao conceder a existência material ou externa dos objetos, sem que eles percam totalmente o componente subjetivo que eles tinham na experiência ilusória original. O indivíduo depende desse componente subjetivo dos objetos para conseguir evocá-los virtualmente, como memória ou potencial, no momento em que uma nova tensão impulsiva ou uma necessidade egoica aparecer. Se ele puder manter uma experiência subjetiva com os objetos que ele começa a aceitar como externos, então poderá pensar esses objetos. O pensamento depende dessa distância, desse espaço temporal e físico, no qual se criam os fenômenos transicionais (Winnicott, 1971/1975).

Esse mecanismo psíquico de “pensar os objetos” permite que o indivíduo faça uma complicada operação emocional, que é a formulação de um pressuposto, um enunciado que é verdadeiro em sua experiência impulsiva e egoica com a realidade. Esse pressuposto é: o que é amado e confiável ainda está disponível no mundo, as necessidades podem encontrar um objeto satisfatório (Winnicott, 1971/1975).

O pressuposto é uma proto-racionalização sobre a experiência emocional da criança com o seu ambiente. Com esse aparato intelectual, a criança habita com uma ideia que criou a partir de suas experiências: existe um mundo encontrável, bom o

bastante. A qualidade de sua experiência no mundo colore a capacidade de estar sozinho (Winnicott, 1963/1982), a partir dos elementos emocionais presentes nas experiências passadas com o ambiente (confiança, esperança, bondade). Estar sozinho na presença de outros é mais um paradoxo proposto por Winnicott (1963/1982), presente na experiência da criança pequena com seu ambiente. A solidão torna-se um fato da realidade da criança e uma necessidade tanto do indivíduo quanto do ambiente de integração e independência.

O ego da criança winnicottiana formula sua frase: Eu sou/estou só (junto)6. A proto-simbolização permite que a criança comece a usar intermediários para veicular ao ambiente suas necessidades, sinalizá-las através de equações (copo=sede) interpretadas pelo ambiente, que já não deve mais atender magicamente as necessidades do bebê. Santos (1999) descreve a qualidade paradoxal dessas equivalências geradas na área transicional:

O espaço transicional produz um tipo particular de objetos, que são modelados pelos desejos. Esse espaço obedece a um pensamento paradoxal, cuja característica essencial é escapar da dicotomia instaurada pela atribuição do juízo de existência, que opõe o ser e o não-ser sob a primazia do princípio de realidade. Esses objetos materializam os efeitos de uma suspensão de juízo em relação à realidade. Do ponto de vista da criança, esses objetos criados são e não são o que representam. Essa noção introduz algo de novo no conceito de equivalência que, por exemplo, está subjacente às teorias sobre a formação do símbolo e da capacidade representacional (por exemplo, a homologia entre um determinado aspecto da experiência corporal e um símbolo) (§ 46, grifos do autor).

A espacialidade em Winnicott propõe a interlocução de dois espaços, intrapsíquico e mundo externo, na criação de um espaço intermediário, entre dentro e fora, que desafia a lógica ao convidar essa superposição. Esses estranhos postulados “entre” que encontramos em Winnicott são modos que o autor pensa os paradoxos encontrados na origem do humano, na dependência e no cuidado. A psicanálise busca descentralizar a racionalidade tradicional a partir do que vive com o seu objeto de estudo, que, paradoxalmente, é um sujeito, ou melhor, dois sujeitos em uma situação de cuidado. Segundo Franco (2003):

A noção de espaço que Winnicott introduz está imersa em um paradoxo do ponto de vista de uma lógica clássica. Enquanto a realidade psíquica proposta por Freud tem

uma localização dentro do corpo, é intrapsíquica, e a realidade externa está localizada nas tramas sociais intersubjetivas, Winnicott quer falar de um espaço que fica entre, um espaço que não pode ser localizado pela lógica do terceiro excluído, segundo a qual ou seria intrapsíquico ou intersubjetivo. O espaço winnicottiano é os dois, está lá e cá. Winnicott diz claramente que não pretende questionar a noção de espaço interno e espaço externo de Freud. A ideia de Winnicott complementa esta noção, acrescentando este espaço especial que fica fora e dentro ao mesmo tempo, espaço construído pelo bebê e a mãe e recriado na relação analítica (p. 51).

A experiência da ilusão de coincidência entre o subjetivo e o objetivo possibilita a posterior abertura do espaço potencial onde eles progressivamente se distinguem. O espaço potencial é necessário para usar elementos compartilháveis (linguagem e símbolos), pensar e comunicar necessidades psíquicas. Sem a experiência da ilusão e da ausência, as necessidades não são pensadas e nem convertidas em desejo, pois a distância (falha constitutiva) que levaria até o desejo foi introduzida antes da constituição da ilusão no psiquismo do indivíduo. Antes da ilusão de criar o mundo como uma necessidade, não é possível estar sozinho nesse mundo, nem pensar o mundo. Segundo Santos (1999), “o fracasso na constituição dessa área de solidão, seja por excesso de ausência ou por presença em demasia do objeto materno, produziria uma paralisia na atividade de pensar” (§ 56). Essa paralisia no pensar, ou a impossibilidade de pensar, deixa como alternativas possíveis a atuação impulsiva (acting out), a inibição afetiva, ou a confusão do pensar, particularmente presentes em crises psicóticas.

Assim sendo, Santos (1999) propõe, com Winnicott, que o setting psicoterapêutico seja uma variante do arranjo das condições de possibilidade para o espaço de solidão, um espaço potencial. Se o indivíduo não é capaz se separar e habitar com um mundo dentro e fora, então ele não é capaz de estar só e nem de brincar. Portanto, a psicoterapia é o trabalho para torná-lo capaz disso (Winnicott, 1971/1975).

A abertura entre o terapeuta e o paciente é visada como objetivo terapêutico, no sentido da construção da capacidade de pensar, o pressuposto que permite a capacidade de estar só, de brincar e preocupar-se: capacidades vinculadas ao uso da área transicional da experiência. São as falhas na aquisição dessas capacidades que permitem estimar os fracassos específicos do ambiente original do indivíduo e como o ambiente terapêutico pode repará-los. O novo trabalho feito pelo ambiente envolve precisar e aceitar o grau de dependência que o indivíduo necessita para conseguir atingir o estado

Ao buscar as condições originais de possibilidade da aquisição da capacidade para inscrever psiquicamente a ausência através do pensar e do brincar, o ambiente da psicoterapia deve suportar a regressão de volta à dependência, apenas para facilitar o caminho rumo à independência.

Diante desse cenário, importa ter uma amplitude de reservas de cuidado disponíveis, segundo compreende Figueiredo (2012), pronta para ser mobilizada segundo são manifestadas as necessidades do paciente. A ideia é semelhante ao setting feito pela família, a preparação para encontrar a “boca faminta”, o que não significa “enfiar comida goela abaixo”. Em um dado momento no início do desenvolvimento do bebê, aparentemente a mãe estará mais implicada em cuidar do bebê, mas isso não significa que ela está fazendo sua tarefa sozinha. Ela própria depende das reservas de um ambiente de cuidado mais amplo em que confiar, assim como depende de sua própria maturidade emocional, incluindo o pensar e o confiar.

Assim também é para o terapeuta no encontro com a regressão à dependência, com a crise. Em um dado momento, pode parecer que a terapia individual seja a coisa mais importante, com esse terapeuta mais implicado do que outras pessoas, mas isso se pode dar apenas em breves momentos do processo psicoterapêutico. Outras pessoas precisam estar disponíveis e compor um ambiente mais amplo do qual o terapeuta individual precisa depender. Mais do que planejar os detalhes do que deve ser oferecido a um paciente em crise, importa que o ambiente de cuidado esteja organizado de tal forma que exista sempre alguém com tempo e disponível (Winnicott, 1962a/1983) para descobrir do que o paciente e o terapeuta necessitam e provê-los adequadamente.

A partir do que aprendemos sobre o cuidado materno, sabemos que a terapia da crise envolve uma capacidade negativa, na possibilidade de que o terapeuta aguente, brincando com o tempo (hold on, playing for time, Winnicott, 1963b/1983), acreditando nas tendências ao amadurecimento do paciente, segundo tempo e ritmo dele, mais do que segundo o impulso e necessidades do terapeuta.

Assim sendo, a maior parte do trabalho fica por conta das tendências maturacionais do indivíduo, do destino dado por ele a seu próprio impulso em um ambiente de sustentação (holding) e confiabilidade. O terapeuta durante a crise fica com a difícil tarefa de manter o setting, isto é, de continuar existindo, protegendo as reservas

e se demonstrando a cada vez confiável e encontrável (Winnicott, 1964/2005). Esse ambiente permite, ao paciente regredido, um novo começo (Figueiredo, 2007), um espaço onde pode existir descanso e o nascimento da confiança. As experiências com a confiabilidade (dependability) do ambiente de cuidado tornam-na uma função internalizada, base para a capacidade de acreditar (believe) e o sentimento de confiança (sense of trust) (Figueiredo, 2007).

O setting é construído segundo as necessidades do paciente e não possui um formato rígido a ser obedecido logo de início. Algumas das formas de um setting terapêutico, é verdade, já foram experimentadas em seus detalhes por tantos clínicos quanto puderam descrevê-lo (Aiello-Vaisberg, 2004), como por exemplo, a importância de uma sala com porta, um horário previsível e delimitado, encontros com uma frequência fixa, pagamento negociado segundo a realidade do paciente e respeitado segundo um contrato etc. Essas formas são importantes para nortear os aspectos básicos dos quais depende uma pessoa em crise, em uma temporalidade em que justamente os parâmetros mais banais e óbvios de qualquer “normalidade possível” estão profundamente abalados e podem mesmo ser atacados. Por isso, são os elementos mesmo do setting, aparentemente “garantidos”, os que precisam mais do que nunca ser encontrados com confiabilidade e estabilidade pela pessoa em crise.

As formas do setting, do ambiente de cuidado, são tão espaciais e temporais quanto qualidades do próprio terapeuta. Essas qualidades devem ser variáveis o bastante para acolher formas de existência muito precárias, persecutórias, desconfiadas, enfim, a qualidade da imaturidade específica da pessoa em crise. Um dos aspectos mais importantes do setting, e os mais difíceis de serem mantidos, é a confiabilidade profissional do terapeuta (a qual não corresponde à inconfiabilidade comum dele como pessoa, Winnicott, 1964/2005), compreendida também no termo inglês dependability, que indica a qualidade de alguém de quem outros podem depender. Essa qualidade é preservada no setting suficientemente bom, não importa o grau de imaturidade da pessoa em crise, de seus comportamentos ou impulsos.

Quanto mais nos aproximamos da temática da psicose, mais a manutenção do setting torna-se difícil e, a um só tempo, indispensável. A abertura do espaço potencial implica que esse espaço será testado de modo impulsivo e destrutivo pelo paciente, para

verificar sua firmeza, elasticidade, permanência e capacidade de tolerância, já que esse espaço deverá ser o ambiente onde eventos potencialmente aterrorizantes e indispensáveis deverão ser vividos e compartilhados. Na clínica da psicose, o terapeuta cria o ambiente para a vivência do colapso das defesas psicóticas, de algo próximo à experiência original de agonia primitiva e, a partir daí, das vivências agressivas que pertencem ao desenvolvimento, por parte da pessoa em crise, da capacidade de se preocupar (concern).

Encontrar o paciente em sua crise através do oferecimento de um espaço potencial depende da capacidade do analista em acolher o colapso e sobreviver a ele. A seguir, examinaremos algumas das características emocionais da experiência do colapso em Winnicott e da qualidade da sobrevivência do setting diante do colapso.