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Crise e dependência: criação de ambiente múltiplo de cuidado

Dissemos acima que a crise psíquica é uma vivência diante da ausência dos recursos necessários para enfrentar uma situação complexa, sofrida, vulnerável e um risco de que “as coisas vão de mal a pior”. Examinaremos agora uma das propostas de Winnicott acerca da crise para entender sua relação com a dependência ambiental.

O autor (1962a/1983) define saúde como maturidade emocional, de acordo com a idade do indivíduo. A tendência inata do ser humano no sentido da integração e do

amadurecimento produz a saúde, desde que o ambiente possa facilitar o crescimento, fornecendo as bases sobre as quais as experiências emocionais se constituem. No início da vida, nos ajuda Safra (2004) em seu comentário sobre a obra de Winnicott, há um encontro originário da mãe (ou sua substituta, incluindo o pai) com o bebê que possibilita o nascimento dos fenômenos psíquicos, o estabelecimento de um si mesmo (self) e do sentido do ser. A condição desamparada do humano em sua origem depende de um ambiente que o recepcione e lhe ofereça cuidado. Esse cuidado não é, por parte do ambiente, fornecido por uma compreensão intelectual das necessidades do bebê, mas uma organização geral do mundo para identificar-se com ele e assim saber do que ele necessita e oferecer a ele aquilo que satisfaz suas necessidades.

A identificação do ambiente com o bebê passa, certamente, pelo fato de esse ambiente ser um grupo de humanos, usualmente uma mãe com o seu marido em uma família e grupo social mais próximo, cada qual tendo já vivido como bebê, tendo sido cuidado por um ambiente que o recepcionou e que, portanto, sabem já, de experiência, algo sobre a delicada precariedade do bebê e sobre as reservas do mundo externo que podem satisfazer necessidades instintivas (fome, sede, sono) e emocionais (confiança, previsibilidade, receptividade).

A provisão ambiental não é o que produz a saúde, mas é o que pode prevenir o sofrimento psíquico grave, ou no modo de dizer de Winnicott (1962a/1983), a doença mental psicótica ou esquizofrênica, na criança ou no adulto. Essa provisão se preocupa não apenas com a satisfação das necessidades instintivas, mas também em oferecer a reserva para que o indivíduo cresça com riqueza emocional, que se sinta valoroso e pertencente a uma comunidade. Isto se dá através de uma adaptação do ambiente que reconheça diferentes modos da dependência (Winnicott, 1962a/1983):

1. dependência extrema, ou absoluta, do desamparo original na qual o indivíduo ainda não existe desde seu próprio ponto de vista, nem tampouco é capaz de reconhecer a existência do ambiente;

2. dependência relativa, emergência de uma unidade individual minimamente integrada e que já é capaz de perceber que existe um ambiente externo;

3. mesclas dependência-interdependência, pertencem à fragilidade das aquisições psíquicas, que são adquiridas e perdidas muitas vezes antes de serem consolidadas; 4. independência no sentido de que o indivíduo doravante carrega as qualidades do

ambiente em seu mundo interno (em seu psiquismo) e tornou-se capaz de cuidar de si mesmo e de outras pessoas e

5. sentido social, no qual o indivíduo sente que pode contribuir em uma comunidade que o reconhece e lhe auxilia a criar um destino social para tendências amorosas e agressivas. Em outras palavras, o indivíduo pode ele mesmo adaptar-se às necessidades do ambiente sem ter de abrir mão excessivamente de sua espontaneidade. Ou, ainda, do nosso ponto de vista, o indivíduo pode tornar-se pai de um novo bebê, ou psicanalista, psicólogo, psiquiatra etc., interessado em identificar-se com alguém e prover para suas necessidades. Toda a experiência de sua vida o levou até um grau de amadurecimento no qual ele não somente é capaz de cuidar como também procura cuidado e o deseja.

Segue-se que a ideia de “doença psicótica” em Winnicott está relacionada a uma imaturidade emocional, ou o “congelamento” do desenvolvimento devido à necessidade de reagir a uma falha ambiental na dependência máxima e que, portanto, não pode ser compreendida apenas em termos da estrutura da personalidade do indivíduo. As defesas psicóticas são uma distorção daquilo que poderia ser natural para o humano: o sentido de ser é distorcido em um sentimento de futilidade ou irrealidade; o habitar no próprio corpo se transforma em uma sensação de estranhamento em relação ao corpo ou um sintoma psicossomático; algo da condição para o nascimento do psiquismo está faltando, como um alicerce frágil ou fragmentado.

Como a relação com o ambiente pode sempre fornecer novas chances de adquirir algo que foi perdido ou que não foi suficientemente consolidado, a maior parte das famílias consegue reparar as falhas do cuidado mais precoce. É a preponderância da marca do fracasso precoce do ambiente e a falha em “consertar as coisas” na infância o que estariam relacionados ao prolongamento de uma imaturidade emocional e à eclosão do colapso na forma de uma crise psicótica do adolescente ou do jovem adulto.

Se o adulto, através de uma crise, conclama o ambiente para acolher sua necessidade de dependência, a própria crise pode ser compreendida como uma

manifestação de suas tendências inatas de amadurecimento, rumo ao sentido social. A crise é uma busca para continuar o desenvolvimento desde onde e quando o indivíduo teve de parar de ser para se defender de um fracasso ambiental, que é a falha da disponibilidade do ambiente para acolher a dependência quando ela era máxima. Para continuar, ele precisa regredir. Quando, para o adulto, a necessidade de regressão à dependência vai até essa configuração do bebê nos braços da mãe, tampouco o adulto pode saber do que necessita, ou que existe no mundo algo que satisfaça uma sua necessidade. Uma das qualidades da crise psicótica é que o indivíduo é incapaz de sentir que suas necessidades podem ser satisfeitas, de confiar no ambiente ou de acreditar que no mundo existe algo adequado para ele.

Em uma crise psíquica tal como a compreendemos, não existem pistas óbvias sobre quais são as necessidades envolvidas, quais são as reservas necessárias, o que é preciso fazer ou dizer. Diante desse cenário, importa ter uma grande diversidade de reservas de cuidado, segundo compreende Figueiredo (2012), pronta para ser mobilizada segundo são manifestadas as necessidades do paciente. No entanto, mais do que planejar os detalhes do que deve ser oferecido a um paciente em crise, importa que o ambiente de cuidado esteja organizado de tal forma que exista sempre alguém com tempo e disponível para descobrir do que o paciente precisa (Winnicott 1962a/1983). De fato, Winnicott salienta que o cuidado a uma pessoa em crise, tal como o cuidado materno, envolve tipos vários de cuidado e cobre a área do que ele chama de cuidado à família e cuidado à pequena unidade social (Winnicott, 1963c/1983).

O trabalho exigido no cuidado à crise é justamente a criação de condições para poder depender da pessoa do terapeuta, quem permite que o paciente venha a constituir um si mesmo e um sentido de ser. O trabalho do paciente, certamente patológico se ele está em crise, envolve seus mecanismos psíquicos atuais, primitivos, angustiados, agressivos ou inibidos, a partir dos quais ele poderá criar para si um mundo psíquico possível, rumo ao amadurecimento que é sua própria tendência natural. Naturalmente, o terapeuta não pode sempre esperar encontrar alguém organizado e colaborativo em seu paciente em crise.

O pensamento de Winnicott nos leva a compreender a necessidade, perante a complexidade da crise, da criação de múltiplos espaços de cuidado como parte da

proposta terapêutica do Gipsi. Esses ambientes, organizados segundo o gerenciamento da crise e de acordo com a especificidade de uma equipe multidisciplinar, são integrados pela postura, de cada um dos profissionais e a partir de suas disponibilidades pessoais, de se identificarem com o paciente em crise, preocuparem-se com ele e buscar compreender, através da identificação, quais são as necessidades presentes na crise que demandam uma provisão específica. Ao dispor das reservas emocionais e profissionais de diferentes pessoas igualmente preocupadas e identificadas cada uma a seu modo próprio, o ambiente de cuidado às crises pode prover uma grande diversidade de reservas segundo as necessidades identificadas a cada momento. Se a desorganização de uma crise é grande e grave, então não é possível segurar em um só abraço. Ao criar ambientes múltiplos de cuidado (terapia individual, terapia familiar, atendimento psiquiátrico, terapia ocupacional, atendimento psicossocial etc.) o ambiente busca atingir uma complexidade correspondente àquela da crise.

Aqui mencionamos uma característica importante do cuidado, que é a preocupação. Essa palavra comparece em Winnicott principalmente em dois momentos: na descrição aprofundada do cuidado materno (preocupação materna primária) e na aquisição da capacidade de se preocupar (concern), condição para a transformação do sentimento de culpa em movimentos espontâneos e autênticos de contribuição social.

No próximo capítulo, examinaremos algumas ideias presentes na preocupação em Winnicott e sua relação com a culpa da posição depressiva em Melanie Klein, de onde o conceito winnicottiano tem origem e se distanciou, em uma elaboração teórica coerente com sua visão “positiva” e construtiva da doença, da agressividade e da destrutividade na experiência humana.

3 Capacidade para o cuidado

Embora a literatura psicanalítica raramente utilize a palavra cuidado (Holloway, 2006), encontramos em Winnicott descrições das qualidades do primeiro ambiente que efetivamente cuida do desamparo e dá início e fundamento à experiência humana. Esse cuidado é um termo relacional que implica a capacidade do ambiente em acolher adequadamente seus novos membros e implica também que o indivíduo que cuida foi constituído ele próprio em um ambiente de cuidado. Para entendemos como cuidar, é importante conhecermos sobre a capacidade para cuidar. Especialmente a psicanálise do desenvolvimento infantil nos auxilia a compreender os processos envolvidos na aquisição de capacidades psíquicas e interpessoais que possibilitam o cuidar, particularmente a noção de reparação de Melanie Klein e preocupação de Donald Winnicott.

Acolhimento, como dissemos no capítulo anterior, é igualmente o termo utilizado no Gipsi (Silva & Costa, 2013) para designar o ambiente especial organizado para receber novos membros, isto é, uma pessoa em crise e sua família em um primeiro atendimento. Na construção do ambiente do “acolhimento implicado”, fazemos uma leitura winnicottiana desse momento inicial de recepção de uma pessoa em crise, que pode feito por qualquer membro do grupo, em qualquer área profissional. Essa abordagem procura sustentar a crise e abrir o espaço onde a realidade pode ser compartilhada, sejam quais forem as condições de ansiedade ou desorganização da pessoa em crise, de sua família ou de seu ambiente mais amplo.

O acolhimento é a abertura de um primeiro espaço de cuidado, a partir do qual novos espaços se abrem (terapias específicas) para integrar um mesmo ambiente (múltiplo) de cuidado. O que acontece nesse momento inicial pode ter consequências importantes para o destino do caso a partir do cuidado feito pelos outros terapeutas, ou mesmo na decisão de encaminhar o caso. O estudo da capacidade para cuidar poderá auxiliar a compreender mais profundamente os processos emocionais necessários para a realização do manejo de crise feito pelo Gipsi, a partir do acolhimento implicado e nos outros espaços terapêuticos gerados pelo grupo no encontro com as necessidades das crises.

Neste capítulo, buscamos, nas obras de Winnicott, alguns dos componentes emocionais da capacidade de se preocupar (concern, Winnicott, 1963a/1983), pertencente a uma etapa da vida na qual o indivíduo está para atingir a independência e o sentido social, necessários para conseguir cuidar de si, cuidar dos outros e desejar cuidado. Ao detalhar a tarefa do cuidado materno, do qual o indivíduo depende para chegar ao sentido social e à preocupação (concern), o autor emprega o termo preocupação materna primária (primary maternal preocupation, Winnicott, 1956/1982) para descrever como se dá o movimento identificatório da mãe com o bebê recém- nascido, que cria o ambiente adequado para acolher seu desamparo e dependência. Tanto a capacidade para o cuidar de si na independência, quanto o cuidado materno à dependência máxima parecem compartilhar, em Winnicott, de uma qualidade, que pertence à preocupação: o concern parece estar presente na capacidade para o cuidado e a preocupation é uma qualidade da tarefa efetiva do cuidado à dependência, possibilitada por alguém capaz de se preocupar.

A capacidade de se preocupar (concern, Winnicott, 1963a/1983) é uma aquisição infantil, um aspecto positivo do fenômeno nomeado por Melanie Klein como culpa pertencente à posição depressiva (Klein, 1937/1996). Para compreender algo da contribuição kleiniana nos conceitos de Winnicott, iniciamos o capítulo com um breve estudo da posição depressiva em Klein no que ela comparece para a formulação winnicottiana da capacidade de se preocupar (concern). Buscaremos, ainda, integrar em nossa ideia de cuidado a proposta “positiva” de Winnicott, baseada em sua compreensão da agressão e da culpa sem qualquer relação com a noção de instinto de morte, o qual é predominante no pensamento de Klein. A perspectiva de Winnicott sobre a natureza humana contribui com a compreensão da crise psicótica como esperança de encontrar cuidado e do cuidado como trabalho construtivo.