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Acolhimento implicado e espaços de cuidado no Gipsi

O Gipsi trabalha com o conceito de crise em vez de termos como surto ou episódio. A ideia de crise comporta algo do sofrimento que é humano, inevitável, embora superável ou temporário. Tavares e Werlang (2012) nos alertam que, na crise psíquica, os recursos necessários para dar solução à complexidade ou à intensidade do sofrimento foram perdidos ou ainda não acessados, não adquiridos, não desenvolvidos ou demandam uma capacidade não consolidada. Nem toda crise é necessariamente um momento de risco, mas conduz à mobilização do ambiente para ajudar ou facilitar a criação desses recursos. Se o ambiente não for capaz de facilitar esse processo, a consequência de uma crise psíquica pode ser uma perda significativa de autonomia e liberdade (Tavares & Werlang, 2012).

Uma das concepções utilizadas no Gipsi para o cuidado das crises é o gerenciamento de caso (case management, Queiroz 2012, citado em Costa, 2013a), uma abordagem que coordena as ações dos profissionais de uma equipe na provisão dos cuidados necessários ao atendimento de uma pessoa em crise e sua família. Quando profissionais de vários campos de atuação trabalham em conjunto em um caso de crise, podem identificar diferentes naturezas de necessidades envolvidas, buscar em suas próprias profissões reservas disponíveis ou passíveis de serem criadas e planejar como essas reservas podem encontrar as necessidades, tendo como referência o fator do tempo, da urgência e dos riscos envolvidos. O gerenciamento de crise tem, portanto, a tarefa de

integrar, em suas ações, a complexidade (grande número de fatores), a imprevisibilidade e a singularidade de uma crise psíquica e a disponibilidade real dos agentes de cuidado.

No gerenciamento de crises psíquicas do Gipsi evidencia-se um dos princípios orientadores para uma nova postura diante da crise, que é o acolhimento implicado da crise (Silva & Costa, 2013). O acolhimento no Gipsi é o primeiro encontro realizado da equipe clínica com uma pessoa em crise e sua família. Esse primeiro momento é a abertura de um espaço de encontro possível, no qual a complexidade crescente efetivamente mobiliza reservas de cuidado, concretizadas no que os terapeutas proveem às necessidades que identificam em cada caso.

O acolhimento implicado é um evento temporal e espacial, primeiro espaço teórico do ambiente de cuidado do Gipsi, um encontro com a pessoa em crise e sua família, que pode ser feito no ambulatório da clínica escola, ou mesmo em visitas domiciliares ou no território do paciente, a depender das necessidades presentes no caso (mobilidade urbana, condição socioeconômica, complicações pertinentes às características emocionais e relacionais da crise, riscos, agravos etc.). Os casos do Gipsi são acolhidos principalmente segundo duas formas de entrada:

1. Formulário de encaminhamento: um documento onde registrar uma descmiliares está disponível para a rede de saúde mental do DF (centros de atenção psicorição breve da crise e informações gerais de contato da pessoa em crise e seus fassocial, hospitais, setores de saúde da universidade etc.), adicionalmente a panfletos com breves explicações sobre o que é a crise psíquica, o que é psicose e como encontrar o Gipsi2. Profissionais que identificam pessoas em crise psíquica grave podem encaminhar formalmente essas pessoas para uma avaliação do grupo, através do formulário entregue em mãos para um membro do grupo ou via correio eletrônico ao coordenador. Na supervisão, o caso é apresentado ao grupo e uma dupla de terapeutas é designada para agendar o acolhimento com a família.

2A divulgação do trabalho do Gipsi para a comunidade do DF é importante para o grupo, que se esforça

em realizar eventos públicos, como palestras, atividades culturais e ações com instituições de saúde mental e militância política antimanicomial.

2. Telefone de crise: para casos mais urgentes, um telefone celular comum é mantido sob responsabilidade de uma dupla de terapeutas plantonistas a cada semana. O número do telefone é igualmente divulgado em instituições de saúde mental e na comunidade do DF. Assim, profissionais, pessoas em crise, familiares ou amigos podem fazer chamadas para solicitar orientação telefônica diante de crises psicológicas, a qualquer momento. A dupla de plantonistas recebe as demandas e busca orientar o caso, com o suporte do grupo via telefone, mensagens de texto ou na supervisão. O grupo respeita sempre o sigilo e não comunica por texto informações pessoais dos casos, os quais comumente são referidos apenas pelas iniciais. Via telefone, com a própria pessoa em crise ou quem quer que tenha ligado para o telefone de crise, os plantonistas fazem uma breve avaliação de risco (de agressão, suicídio ou risco social), de urgência/emergência e da possível necessidade da mobilização de serviços adequados às demandas, incluindo (mas não limitados a): a visita domiciliar (agendada ou de urgência), o acionamento da polícia, o SAMU ou do corpo de bombeiros (preferencialmente em conjunto com a visita dos plantonistas do Gipsi) ou o agendamento do acolhimento.

No acolhimento implicado (Silva & Costa, 2013), a pessoa em crise e sua família são recebidos para um encontro de uma ou duas horas na clínica escola da universidade ou na residência da família. A primeira tarefa do acolhimento é sustentar a vivência da crise tal como ela aparece inicialmente. Essa sustentação aproxima-se da concepção de holding proposta por Winnicott (1983): o ambiente assume uma responsabilidade diante da pessoa em crise, cujo sofrimento transborda as reservas individuais e sociais existentes, numa qualidade intensa e desorganizada. A responsabilidade assumida por esse novo ambiente os dois terapeutas no espaço do acolhimento, mais os familiares com o apoio dos terapeutas e o grupo presente em reserva na supervisão envolve reconhecer as necessidades da pessoa em crise, depois de sua família e unidade social, prover recursos para essas necessidades e facilitar o amadurecimento ao viver a intensidade máxima da crise. Usando os recursos no ambiente transformado, o acolhimento é o primeiro espaço que busca sobreviver à crise sem que o indivíduo precise dela novamente, nem da mesma forma.

O acolhimento no Gipsi não é uma entrevista, triagem ou avaliação psicodiagnóstica, nem tampouco pretende rotular indivíduos em crise segundo seus sintomas ou identificar estruturas psicopatológicas. Ali, o terapeuta desempenha a tarefa dupla de avaliar e cuidar ao mesmo tempo, compartilha com a pessoa em crise e sua família de conhecimentos sobre o sofrimento, sobre a crise sendo vivenciada.

Dentre as qualidades do acolhimento está a implicação, por parte do terapeuta, em oferecer sustentação para o sofrimento da pessoa em crise, de modo que as ansiedades possam ser minimamente suportáveis, relatáveis e compartilháveis. A abertura do terapeuta, sua disponibilidade emocional de afetar-se com os sofrimentos presentes na crise, combinada com seus conhecimentos sobre o sofrimento psíquico, mantidos em reserva, fornecem os elementos que, posteriormente, durante a supervisão clínica, nortearão as primeiras decisões terapêuticas. É a convocação da disponibilidade material e psíquica dos terapeutas para buscar encontrar a crise o que possibilita o início de alguma partilha dos “excessos” presentes na crise.

Após o acolhimento, os terapeutas em supervisão clínica apresentam seus pensamentos e sentimentos, organizados como uma breve construção acerca das principais necessidades presentes na crise. A partir dessa construção, o grupo decide pela aceitação ou não do caso. Quando, na supervisão, o grupo entende que as necessidades do caso dependem de recursos que não são disponíveis no grupo, como a presença de complicações neurológicas ou toxicológicas graves, histórico de hospitalizações prolongadas ou recidivas recorrentes, ausência de uma rede familiar disponível para o cuidado, ou qualquer outra demanda fundamental que o grupo se revele incapaz de sustentar, então a rede de serviços de saúde mental da região do paciente é acionada, de modo a encontrar o ambiente mais bem-adaptado às necessidades presentes no caso, para onde este pode ser encaminhado.

Se o caso for aceito, segundo as reservas atualmente disponíveis no grupo, são destacados inicialmente um terapeuta individual e dois terapeutas familiares. Outros espaços de cuidado são gradualmente abertos, segundo as necessidades identificadas pelos terapeutas (avaliação psiquiátrica, atendimentos domiciliares, articulação com agentes de cuidado na comunidade, no trabalho ou na escola etc.).

As decisões da supervisão são igualmente amparadas pelas discussões do grupo em dois espaços terapêuticos e acadêmicos voltados especialmente para o cuidado às reservas emocionais e teóricas do grupo, as assim chamadas oficinas. A oficina metodológica é uma reunião em um momento à parte das supervisões, realizada na universidade com periodicidade segundo as necessidades do grupo, destinada a estudar aprofundadamente um tema que se revela crucial na clínica, como, por exemplo, a definição de abuso de drogas como critério de exclusão do caso no grupo, ou o treinar os terapeutas em algum instrumento importante, como o genograma, o ecomapa, o registro de sessão, entrevistas familiares, etc. Cada oficina metodológica gera, então, documentos com as decisões tomadas, os quais indicam parâmetros para ações de cuidado e formam uma história das discussões e escolhas teórico-clínicas do grupo. Algumas questões que não puderem ser aprofundadas nas oficinas metodológicas podem ser convertidas em grupos de estudo, com reuniões de participação voluntária e bibliografia variável, ou ainda transformadas em problemas de pesquisa para projetos científicos.

A oficina vivencial é uma reunião realizada uma vez por semestre, preferencialmente em um final de semana e fora da universidade (na casa de algum dos membros do grupo), onde se acolhem e elaboram especialmente conflitos emocionais entre os membros do grupo ou com casos em específico. As conversas funcionam como em uma rodada em que todos são convidados a falar, de modo claro e íntimo, de seu ponto de vista sobre a clínica e a vivência no grupo. Ao final do dia, sugestões e posturas éticas são tomadas para proteger a integração do grupo, desobstruir canais de comunicação, reorganizar os lugares e papéis de cada membro e procurar antecipar vias comuns de conflito que se constituem na clínica. A frequência de todos os membros do grupo às oficinas é obrigatória. Todos esses espaços são maneiras de fomentar a criatividade e liberdade do terapeuta, ao mesmo tempo em que cria e nutre reservas psíquicas (conhecimento teórico, suporte emocional, elaboração de angústias) para o cuidado nas crises.