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Necessidade de regressão à dependência e crise psicótica

Retomando brevemente as consequências do medo do colapso, o medo é a antecipação da necessidade de fazer precipitar de uma vez o colapso das defesas primitivas, quando elas se mostram insatisfatórias para as dificuldades inerentes à vida. As distorções psicóticas na maior parte das pessoas podem dificultar ou mesmo impedir uma vivência em comunidade e o sentimento de realidade.

Isso não quer dizer que o acesso a mecanismos psíquicos primitivos seja necessariamente patológico. A função psíquica da atenção origina-se de um princípio paranoide, os objetos são encontrados através da destrutividade originária da tensão impulsiva; isto é, os mecanismos sofisticados dependem da vivência dos mecanismos primitivos e deles advêm. Além disso, mecanismos psíquicos primitivos podem ser recursos importantes, como a capacidade para perceber o inusitado e o que não é garantido, bem como sensibilidade para acolher o que é subjetivo e originário. Muito da capacidade do terapeuta em compreender as defesas psicóticas depende do que o ele

mesmo possui de potencial psicótico disponível em sua personalidade; e uma vida composta apenas de sanidade e adaptação seria pobre em originalidade e vitalidade.

No entanto, a saúde mental depende igualmente da capacidade de se preocupar (concern) e ser responsável, o que não só facilita uma vivência interpessoal com respeito ético à alteridade, como também libera a instrumentalidade do impulso agressivo necessário para o viver criativo.

Se o indivíduo vive um colapso de suas defesas, então ele se resulta “indefeso”, precisa de um tempo e de experiências com as quais adquirir novas formas de defesa e outras capacidades psíquicas necessárias para amadurecer. No grave momento do colapso de suas defesas, mesmo o indivíduo adulto torna-se, mais uma vez, dependente do cuidado ambiental, tal como o foi na primeira infância, naquele breve e torturante momento em que deixou de confiar no ambiente e esteve próximo de experimentar a aniquilação.

Winnicott (1954b/1982) nomeia essa experiência de regressão clínica, uma vez que implica um processo de abandonar regressivamente as defesas construídas no decorrer da vida do paciente, a fim de encontrar o momento traumático e, daí progressivamente, prover o cuidado suficientemente bom, o que promove o amadurecimento. A regressão é ordinariamente descrita como um movimento rumo a posições instintuais, mas Winnicott (1954b/1982) usa o termo para descrever o movimento no qual uma posição avançada é abandonada e uma dependência infantil é restabelecida. Nele, o ambiente está diretamente incluído.

O colapso e a regressão clínica descritas por Winnicott possuem características semelhantes às que encontramos em crises psíquicas graves e o medo do colapso, corolário da necessidade de precipitá-lo, pode estar por trás da ocorrência de recidivas das crises psicóticas. O medo do colapso, mesmo se compreendido como defesa, faz parte de um movimento em direção ao cuidado, pode ser um sinal de esperança, pois mobiliza o ambiente para reconhecer e aceitar a necessidade de dependência. Isso não está claro para o indivíduo, da mesma forma que o fracasso original não pôde ser pensado por ele. No entanto, ao ser sensível com a vulnerabilidade e a fragilidade dos recursos psíquicos em uma crise, o ambiente de cuidado compreende que essa pessoa

precisa viver o colapso de um mundo “que não deu certo” e ter uma nova chance de constituir seu mundo em um ambiente capaz de reparar a falha original.

O ambiente no qual a regressão clínica é possível possui uma tolerância à agressividade que será colocada à prova pelo paciente e uma disponibilidade de adaptação às necessidades que o paciente não é capaz de acreditar que existe (Winnicott, 1964/2005). Nesse sentido, a regressão à dependência é convidada pela confiabilidade do ambiente, o qual se demonstra continuamente capaz de suportar a agressividade reativa ao trauma e a experiência do colapso.

Se for capaz disso, então o paciente estará lá pessoalmente para presenciar o colapso, para amar e odiar o terapeuta pelas suas características pessoais (Winnicott, 1964/2005), viver amor e ódio dentro de uma área de realidade compartilhada com uma pessoa total e, assim, integrar amor e ódio em uma única vivência. Essas capacidades psíquicas preparam o caminho para as aquisições do estágio de preocupação (concern), que culminam em uma capacidade de cuidar de si e dos outros, tolerando, através da construção, a agressividade inerente à experiência humana, seja vinda do ambiente, seja vinda do próprio indivíduo.

6 Clínica da psicose

Retomando brevemente o que nos sugere Winnicott (1959-1964/1983) a respeito da contribuição psicanalítica para a classificação psicopatológica, entendemos que os processos patológicos dizem de necessidades de regressão, de uma exigência feita ao ambiente que é uma necessidade de adaptação. A regressão à dependência pode chegar até a configuração original, na qual a dependência era absoluta e o conhecimento sobre a existência do ambiente era mínimo. Por exemplo, quando vemos um bebê chorando, podemos dizer que ele está reclamando seu ambiente, mas não podemos dizer que esse bebê entende que existe um ambiente ou quais elementos do ambiente são necessários para ele naquele momento. É a mãe quem usualmente compreende e é capaz, por sua identificação, de descrever a qualidade do choro e oferecer o que o bebê precisa, sem exigir que o bebê seja capaz de saber de antemão se é comida, afago ou um brinquedo.

Quando, para o adulto, a necessidade de regressão vai até essa configuração do bebê nos braços da mãe, tampouco o adulto pode saber do que necessita, ou que existe um ambiente que pode oferecer-lhe do que ele necessita. Pode ser que ele seja mesmo incapaz de perceber que possui qualquer necessidade e repudie a existência do ambiente, por ser-lhe impossível acreditar mesmo que exista algo para ele no mundo. Afinal, com Winnicott dizemos que o problema da psicose foi um fracasso ambiental, uma impossibilidade de o ambiente ser suficientemente bom para alguém quando a dependência era absoluta.

Em uma crise psíquica tal qual a descrevemos, não existem, a priori, pistas óbvias sobre quais são as necessidades envolvidas, quais são as reservas necessárias, o que é preciso fazer ou dizer. É muito difícil, à primeira vista, diferenciar entre a necessidade de cuidado psicológico e a necessidade de uma cirurgia ou de um apocalipse; a necessidade de tratar o paciente ou seus pais, se a escola é realmente perigosa ou se é tudo “coisa da cabeça” do paciente.

O que ocorre é que o indivíduo vê como impossível a tarefa presente no brincar: aceitar sobrepor algo da realidade subjetiva a algum elemento da realidade material, na aceitação do paradoxo de que algo é e não é a coisa ou sentimento que representa, ou a necessidade a ser atendida. Winnicott (1971/1975) nos propõe a ver essa

impossibilidade desde o ponto de vista de algo que poderia ter sido adquirido, já que o uso dos símbolos, da fantasia e da área transicional é usualmente dado por garantido quando a psicose não é um problema central.

A ideia de algo que “poderia ter sido adquirido” remete o terapeuta a buscar promover as condições para que essa capacidade “venha a ser adquirida”, em um “descongelamento” do amadurecimento do indivíduo, originalmente congelado pelo fracasso ambiental. Se esse fracasso ocorreu em uma época da vida na qual a dependência era indispensável, então o descongelamento precisa criar uma situação de dependência análoga, a partir da qual o amadurecimento pode seguir-se, dessa vez encontrando um ambiente suficientemente bom, facilitador da independência.

O fracasso ambiental, portanto, possui uma qualidade diferente quando ocorre em etapas posteriores do desenvolvimento, isto é, quando a dependência começa a ser apenas relativa. Tipos diferentes de fracasso podem resultar em tipos diferentes de experiências traumáticas, experiências que não dão origem a distorções psicóticas, mas outros processos psíquicos. Cada um desses eventos pode gerar tipos diferentes de sofrimento, a depender do grau de dependência no momento do trauma, mas o sofrimento não necessariamente leva à necessidade de tratamento profissional; algum grau de “dor psíquica” está presente na aquisição de capacidades necessárias para o cuidado, como a dor presente no sentimento de culpa, na integração dos objetos cindidos e na preocupação (Winnicott, 1954a/1982). Se, no entanto, o sofrimento persiste por uma inadequação, fragilidade ou rigidez das defesas que ele origina, então cada tipo de sofrimento demanda uma variedade de clínica, modos distintos e específicos de cuidado (Januário & Tafuri, 2011).

O ajuste do tipo de psicoterapia a ser utilizado depende da avaliação, por parte do terapeuta, do grau de dependência relacionado à imaturidade do indivíduo, ou a regressão psíquica até o modo de coisas no qual o amadurecimento ficou “congelado” pelo fracasso do ambiente. O grau de regressão, ou de necessidade de dependência, pode variar em um mesmo indivíduo na clínica. Isso implica que o terapeuta precisa ser flexível o bastante para passar de um tipo de terapia para o outro segundo a necessidade do paciente, seu grau de regressão psíquica à dependência ou de progressão de volta à independência e à integração (Winnicott, 1961, citado em Januário, 2012).

A seguir, examinaremos de alguns dos elementos da teoria winnicottiana da clínica da psicose, ao buscar criar esse ambiente em um processo terapêutico que facilita o amadurecimento. Os elementos examinados incluem as seguintes ideias: o setting como abertura de um espaço potencial a partir da dependência; a sobrevivência do ambiente à precipitação do colapso e a experiência do cuidado como oportunidade construtiva.