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东方的色彩与芬芳:阿尔迪诺•德•托加尔的 《澳门故事》

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 150-156)

Maria do Carmo Cardoso Mendes

Universidade do Minho

1. As afirmações de Agustina Bessa-Luís em A Quinta-Essência a propósito de Macau e do Oriente – “um mundo para desvendar, tão profundo e avassa- lador que deixava muito atrás a história da Europa” – revelam um interesse indesmentível da escritora portuguesa, partilhado por outros ficcionistas con- temporâneos, por espaços que ocupam um lugar privilegiado no imaginário cultural português.

Na literatura portuguesa contemporânea, escritores como Eugénio de Andrade, Maria Ondina Braga, José Jorge Letria, João Aguiar e Altino do Tojal revelam esse fascínio.

Neste ensaio, centrado nas quarenta narrativas que integram a obra de Altino do Tojal, Histórias de Macau (1987), procuro: 1) Reconstruir a viagem do narrador de Lisboa a Macau e o modo como ela é uma reinvenção do passado e um desafio de construção do futuro; 2) Identificar a dimensão multicultural destas narrativas de viagens e a forma como elas desconstroem estereótipos culturais; 3) Explicitar em que medida a obra de Altino do Tojal representa, no contexto da literatura portuguesa contemporânea, um relevante contributo para o entendimento dos diálogos interculturais Portugal-China.

Nascido em Braga, em 1939, Altino do Tojal tem uma vasta obra literá- ria que contempla contos, novelas e romances. A narrativa de viagens marca um lugar relevante na produção do escritor e jornalista, quer em Histórias de

Macau – resultantes de uma viagem ao Oriente –, quer em Ruínas e Gente –

uma viagem pela cultura mediterrânica, com destaque para o Egito e a Grécia. 2. Identifiquei Histórias de Macau como narrativas de viagens. Ora a noção de viagem supõe forçosamente um confronto com o Outro, ou seja, com o princípio de alteridade. Como sustenta Carl Thompson (2011, p. 9), “all tra- vel requires uses to negotiate a complex and sometimes unsettling interplay between alterity and identity, difference and similarity”.

Com efeito, as narrativas de viagens desvendam, no confronto com o espaço estrangeiro, “um princípio fundador: não há alteridade sem uma qual- quer forma de identidade que propicie, simultaneamente, a distância e a apro- ximação” (Machado, 2011, p. 83).

Esta “negociação” entre alteridade e identidade mostra-se complexa nos contos de Altino do Tojal, porquanto as personagens que desfilam ao longo das quarenta narrativas se revelam pouco disponíveis para uma reconfigura- ção das suas próprias identidades e, ao mesmo tempo, firmemente fixadas na confirmação de imagens e pré-juízos que transportam na sua bagagem cultu- ral. Dito de outro modo, as personagens de Histórias de Macau exibem dois comportamentos típicos do turista: o desejo de colecionarem fotografias dos lugares que um qualquer roteiro turístico contempla e a fixação em estereóti- pos. Quer isto dizer que os pressupostos de uma viagem, tal como os entende, por exemplo, uma escritora como Agustina Bessa-Luís, estão ausentes nas

Histórias de Macau. Esses pressupostos são, retomando as palavras de Agus-

tina na narrativa de viagens Embaixada a Calígula, a disponibilidade para a surpresa e a busca daquilo que não é contemplado num típico roteiro turístico:

A viagem, com o seu mistério e a sua intimação à consciência, com as suas aletrias que nascem inexplicavelmente dum golpe de vento na poeira sobre uma ponte, duma sensação de vida isolada e profunda quando atravessa- mos uma terra estrangeira – ah, essa viagem poucos a podem experimen- tar. (Bessa-Luís, 2009, p. 12)

Nas Histórias de Macau, julgo que é incontornável a referência à presença quase obsessiva de estereótipos. O estereótipo apresenta-se, na visão de Daniel- -Henri Pageaux (2004, pp. 140-141),

[…] não como um ‘signo’ (como uma possível representação de significações), mas como um ‘sinal’ que remete automaticamente para uma única inter- pretação possível. O estereótipo é o índice de uma comunicação unívoca, de uma cultura em vias de bloqueio […]. O estereótipo é o figurável mono- morfo e monossémico […]. O estereótipo coloca, de forma implícita, uma constante hierárquica, uma verdadeira dicotomia do mundo e das culturas.

Perpetuar lugares-comuns sobre Macau constitui, nos contos de Altino do Tojal, uma forma de, ao mesmo tempo, sustentar uma hierarquia de cultu- ras e construir uma visão monossémica do território estrangeiro. São muitos os exemplos de estereótipos, derivando com frequência para um efeito perni- cioso – a caricatura – redutor e pouco aberto ao conceito de alteridade. Tal acontece no início da viagem que leva o narrador de táxi até ao aeroporto de Lisboa. O taxista, que fizera o serviço militar em Macau, muitos anos antes, recorda “uns barquitos” onde “aquela gente faz muita vida” e “onde se vende de tudo” (Tojal, 1998, p. 7).

O narrador, por seu turno, não encontra uma explicação racional para uma inesperada viagem a Macau, realizada em 1974. Ela corresponde a um sonho ocasional e à constatação de que não pretendia senão “arrastar para outas paragens o meu gélido desencanto, este crescente fastio de viver” (Tojal, 1998, p. 8). A escolha de Macau é, assim, totalmente aleatória e privada de quaisquer expectativas.

As primeiras impressões são de natureza sensorial. Macau é percecionada por “um cheiro exótico, um cheiro adocicado e amolecedor, unânime e persis- tente, como os que se respiram nas lojas dos ervanários. É o cheiro do Oriente” (Tojal, 1998, p. 19). Os primeiros contactos com habitantes de Macau são um prolongamento da vivência de um ocidental: o narrador conhece um portu- guês fabricante de dragões, esforçado em reforçar impressões asfixiantes e que representam negativamente a cultura oriental. Alberto Kuan oferece-lhe uma imagem diabólica das mulheres macaenses: “– Fuja das mulheres de Macau! São o demónio! […]. Destroem os homens do Ocidente, trincam-lhes o coração, pedacinho a pedacinho. Trincaram o meu, hão-de trincar o seu, se não fugir delas” (Tojal, 1998, p. 21). Ao retrato da capacidade da mulher oriental para

seduzir e destruir qualquer homem junta ainda o de todos os asiáticos, astutos e fascinados pela vida alheia:

Oh, como esta gente é astuta e subtil! Dominará o mundo! O insecto há-de sobreviver ao homem neste violento planeta, mas o homem asiático será, estou certo disso, o último a extinguir-se (Tojal, 1998, p. 23)

Comparada com estes asiáticos, a Mafia siciliana é um grupo de meninos do coro. Sangue português e chinês não liga bem e parece que só o pior de cada raça aproveita a formação do mestiço macaense. Como são cruéis! Unidos, astutos, rancorosos… (Tojal, 1998, p. 25)

A atitude do narrador pauta-se muito mais pelo desejo de conviver com portugueses que habitam em Macau. Uma das suas preocupações prioritárias é a admissão no Clube Militar, não só para “comer a preço razoável”, mas tam- bém para “poder falar com portugueses” (Tojal, 1998, p. 29). Esses contactos regulares e aqueles que acontecem casualmente no espaço público reforçam a construção de estereótipos – sobre a paixão pelo jogo e sobre o sistema de escrita – que leva uma turista portuguesa a dizer: “não sei como esta gente entende semelhantes gatafunhos” (Tojal, 1998, p. 39) – e a representação de imagens muito negativas, igualmente no olhar dessa turista portuguesa, que acabam por se transformar em afirmações xenófobas:

Não sabem o que é o vinho, coitados. Só acho graça ao costume de come- rem com pauzinhos. Não sei como conseguem. […] Esta gente horrível não devia existir. São piores que os pretos da África. […] Gostava de ter conhecido esse Fernão Mendes Pinto. Trouxe a religião a esta gente herege. (Tojal, 1998, pp. 40, 45 e 47)

Se tais retratos tendem à depreciação do humano, parece não restar ao narrador senão uma atenção que se desloca para as fragrâncias e as cores do lugar. As impressões sensoriais tornam-se, por vezes, muito mais significati- vas do que as representações do Outro, numa espécie de compensação que a paisagem física oferece e que não tem equivalente humano.

O diálogo, dificultado ou mesmo impossibilitado por obstáculos linguísticos, acaba por conduzir o narrador a um estatuto de observador curioso e atento à vida de Macau, não perdendo, todavia, qualquer oportunidade de conviver com os portugueses aí residentes. Cada um desses momentos é marcado pela

reiteração de imagens estereotipadas e preconceituosas. Assim, a comemora- ção do S. Martinho na ilha de Coloane junta cerca de vinte portugueses, entre os quais se encontra o narrador, torna-se pretexto para um desfile de imagens estereotipadas de Macau, caracterizado, por um inspetor da Polícia Judiciária Portuguesa, como um lugar de “imigração clandestina, droga, assaltos, prosti- tuições, massacres: Os marginais das sociedades secretas do crime raramente utilizam armas de fogo […]. Em Macau mata-se à facada. E com a faca, acredi- tem, os chineses fazem do assassinato uma verdadeira arte” (Tojal, 1998, p. 181). Significativamente, muitos dos protagonistas das Histórias de Macau são portugueses emigrados para o Oriente: missionários, soldados, alfaiates. Todos surgem afetados pela permanente nostalgia da pátria e por um sentimento obsidiante de saudade.

O narrador, por sua vez, vai paulatinamente fixando a sua atenção nos lugares mais relevantes: a Porta do Cerco, a gruta de Camões, a famosa Praia Grande, os bazares e os bairros. A desumanização dos habitantes de Macau caminha a par e passo com o progressivo interesse pelo espaço.

3. Se, como afirma Álvaro Manuel Machado (2003, p. 112), “O estereótipo distingue o Eu do Outro e constitui uma forma massificada de comunicação, uma expressão cultural simplista, fomentando mitos culturais”, as viagens de diversas personagens de Histórias de Macau correspondem a esta expressão cultural simplista, com frequência associada a uma atitude eurocêntrica. Isso fica a dever-se em grande medida ao facto de as personagens assumirem essen- cialmente comportamentos de turistas e não os de viajantes. Se os primeiros são habitualmente incapazes de se dissociarem dos valores que transportam consigo, os segundos vão em busca de uma reconfiguração da sua própria identidade e manifestam uma total disponibilidade emocional para a Outro.

Este eurocentrismo civilizacional que define a maioria das personagens de Histórias de Macau não poderá deixar de nos recordar as “Notas de Via- gem” produzidas por Eça de Queirós aquando da jornada que realizou entre outubro e dezembro de 1869 para presenciar a cerimónia de inauguração do canal de Suez. Na cidade do Cairo, Eça refugia-se num britânico hotel onde se leem publicações ocidentais: o Times e o Figaro. Ou seja, abriga-se num mundo que qualifica como “nosso mundo europeu, civilizado, sábio, filosófico, egoísta e rico” (Queirós, 1966, p. 703), imune a uma capital onde vê “Miséria, podridão e fome” (Queirós, 1966, p. 719). Ainda que não oculte o seu fascínio

pelo exotismo oriental, Eça jamais abandona a atitude eurocêntrica que, um século depois, vemos representada nas personagens de Histórias de Macau. Todavia, nos textos contemporâneos a atitude do narrador sofre uma evolução, não tão determinante, é certo, quanto a que marca o protagonista do romance de Agustina Bessa-Luís A Quinta- Essência, mas ainda assim fundamental para a desvinculação dos comportamentos que definem as suas personagens: a fixação em estereótipos e a representação do Outro apoiada em padrões do Eu – eurocêntricos, portanto.

Não obstante esta visão com frequência redutora, as quarenta narrativas de Altino do Tojal permitem ao leitor a realização de uma viagem pela História de Macau, pelo papel relevante que aí tiveram missionários, viajantes, nego- ciantes e exilados da pátria. O narrador, “estrangeiro” durante uma parte muito significativa dos contos, acaba por encarar o lugar estranho como “doméstico”, substituindo lentamente comparações culturais e civilizacionais dominadas por juízos de valor eurocêntricos por imagens que correspondem muito mais ao trajeto de um viajante do que ao de um turista.

O progressivo adentramento na identidade de Macau permite ao narrador reconhecê-lo como lugar multiétnico e multicultural. Se, desde a sua formação, Macau é um espaço que suscitou a imaginação literária, as Histórias de Macau de Altino do Tojal ocupam um lugar de destaque na revisitação contemporânea do último reduto territorial português no Oriente.

Referências bibliográficas

Bessa-Luís, A. (1999). A Quinta-Essência. Lisboa: Guimarães Editores. Bessa-Luís, A. (2009). Embaixada a Calígula. Lisboa: Guimarães Editores. Machado, Á. M. (2003). Do Ocidente ao Oriente. Lisboa: Editorial Presença.

Machado, Á. M. (2011). Estudos Culturais e Literatura Comparada: o primado da lite- ratura. Diacrítica, 25 (3), 81-102.

Pageaux, D.-H. (2004). Da imagética cultural ao imaginário. In P. Brunel & Y. Chevrel (Org.), Compêndio de Literatura Comparada (pp. 133-166). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Queirós, E. (1966). Obras Completas. Porto: Lello & Irmão Editores. Thompson, C. (2011). Travel Writing. London & New York: Routledge. Tojal, A. (1998). Histórias de Macau. Porto: Campo das Letras.

EM MACAU OU A EXPERIÊNCIA DE UMA

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 150-156)