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卡蒙斯与中国

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 84-100)

Eduardo A. C. Ribeiro

Jurista, investigador independente

Este ensaio intitula-se “Camões e a China”, mas na realidade poderia cha- mar-se “Camões e Macau”. Com efeito, era nas “partes da China” que estava

Amagao, o pequeno porto da China onde Camões estanciou, entre 1562 e 1564.

É certo que os nossos navegadores acostaram a outros portos da costa chinesa, quer ilegalmente, durante o período em que os portos lhes estiveram vedados (de 1522 a 1554), quer autorizados, após o acordo informal de 1554 com os mandarins de Guangdong, que lhes deu de novo o livre acesso à Baía de Cantão, mas ao tempo em que o nosso Poeta lá esteve, já Amagao era exclu- sivamente, a partir de 1560, o porto para onde chineses e lusos convergiam para fazerem a veniaga.

E era ao topónimo China, ou melhor dizendo, à expressão “partes da China”, que os cronistas, navegadores, viajantes e mercadores recorriam para designar o porto da veniaga na costa chinesa.

O facto de a Coroa Portuguesa ter decretado o monopólio do comércio com o Japão a partir de 1550 levou à necessidade de um Capitão-Geral, Leonel de Sousa, estabelecer o acordo informal de 1554 com os Mandarins de Cantão, de que veio a resultar no estabelecimento autorizado, ou consentido, dos portu- gueses num porto único, o de Lampacau numa primeira fase, a partir de 1554, o de Macau a partir de 1557 e, depois, finalmente, apenas o de Macau a partir de 1560 (Loureiro, 2000, cap. 19).

Contudo, esses acontecimentos não alteraram em nada a geografia mental da lusa gente que sabia que algures, na costa chinesa, havia um porto que ser- via de base aos negócios, a charneira dos encontros, fosse designado assim ou

assado. Para essa gente esse porto era, e foi por muito e muito tempo, algures nas “partes da China”.

Mesmo em 1613, cinquenta e três anos depois de Macau ser já o único porto permanente e fixo onde os portugueses estavam autorizadamente estabelecidos, ainda se falava genericamente de China quando se queria falar de Macau, como o fizeram Pedro Mariz ou Manuel Correia na edição desse ano de Os Lusíadas. Contudo, em 1624, quando a erosão da memória iniciava o seu curso, um outro biógrafo de Camões, Manuel Severim de Faria, o “mais douto português do seu tempo” (Silva, 2003), não tem dúvidas em deixar de lado a generaliza- ção que se fazia, e assentar, definitivamente, na utilização do topónimo ‘Macau’ como porto da costa chinesa onde o Poeta estanciara (Faria, 1624). Outros tempos, de maior exigência historiográfica e maior precisão dos factos, talvez também pela circunstância de ter acabado de ser criada a primeira capitania- -geral nas “partes da China’’, que passavam a ter o seu primeiro governador, D. Francisco de Mascarenhas (1623-1626) em Macau (Barreto, 2006, p. 190ss.).

Nesses anos em que o nosso Poeta se acoitou nos Penedos do alto da colina de Patane (a que no séc. XIX se começará a designar de Gruta de Camões) (Ribeiro, 2012b), sobranceiros ao porto usado pelos navegadores portugue- ses, Camões juntou-se a uma “moça china’’, como a designa Diogo do Couto na Década 8ª (na chamada versão extensa), provavelmente uma dessas moças tancareiras que viviam quase exclusivamente sobre as águas, dedicando-se à pesca e ao tráfico marítimo, quer de passageiros quer de mercadorias.

Ali aguardava que se completasse o ciclo de negócios da Nau do Trato (Macau-Cantão-Macau, Macau-Japão-Macau), zelando pela segurança dos bens dos marinheiros entretanto falecidos, para mais tarde os fazer chegar às mãos dos herdeiros legítimos, na sua qualidade de provedor dos defuntos da Via-

gem pera a China e Japão que fez com Pero Barreto em 1562 (Ribeiro, 2012b).

Do alto da colina, Camões tinha a seus pés o pequeno porto, donde via partir e chegar a Nau do Trato, e ao longe a incógnita China, de que já ouvira falar e de que tanto queria saber. Foi dali que ele, vendo partir a Nau do Trato, anteviu o Japão, respondendo “de longe à China’’, o Japão onde nascia a “prata fina’’, o Japão que ilustrada seria com a “Lei Divina’’, tudo nas suas próprias palavras (Lusíadas, X, 131).

Camões não passou de Macau e não chegou ao Japão. Mas estava na peri- feria de um Império de cujas “policias’’ já se tinha então informação suficiente para que a sua curiosidade fosse aguçada e a sua sede de conhecimento estimu-

lada, se, no caso dele, precisasse disso. Em Macau não se fazia apenas a troca dos produtos, mas a permuta das ideias.

Ora, não temos dúvidas que Camões muito deve ter querido saber sobre esse enormíssimo Império que se estende “desde o trópico ardente de Câncer ao Cinto frio” do Círculo polar ártico, “potência real, soberba e rica” e ao longo da qual se estende a famosa Muralha, esse inacreditável “muro e edifício” edi- ficado “entre um império e o outro” (Lusíadas, X, 129, 8; 130, 1-4).

Não é por acaso que em poucas linhas, em apenas três estâncias do Canto X, Camões diz tudo o que havia a dizer sobre o local onde está: na extensa e poderosa China, donde sai a Nau do Trato, adonde ela vai, o que leva e o que traz do Japão, e como este há-se vir a ser missionado pelos jesuítas. Como noutra sede defendi (Ribeiro, 2012b, cap. VI), inclusivamente o nosso Poeta consegue dizer, nessas estâncias, o que pouca gente sabia: que o imperador reinante não havia nascido príncipe, nem destinado a reinar, e que havia sido eleito pelo Conselho Régio.

Por essa altura, já de há muito chegavam ao Reino notícias desse Império culto e desenvolvido e os nossos cronistas haviam começado a referir-se enco- miasticamente ao Império do Meio.

D. Jerónimo Osório, por exemplo, já em 1549 publicara em Coimbra o seu

De Gloria Liberquinque, onde a certa altura introduz uma curta mas entusiás-

tica descrição da China, “coisa admirável e talvez não desagradável de ouvir”. Depois, Fernão Lopes de Castanheda, que dedica vários capítulos sobre a China no Livro IV da História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portu-

gueses, impresso em Coimbra em 1553, ano da partida do Poeta para o Estado

da Índia (Loureiro, 2000, p. 447).

Também João de Barros, cuja Década III se publicou em 1563, “não se cansa de louvar as maravilhas daquele remoto império, onde se encontram «todalas polícias que pode haver»” (Loureiro, 1997, p. 58). Desde 1535 que esse cronista começara a reunir em Lisboa a sua coleção de livros e mapas chineses e obtém a ajuda de um letrado chinês para a compreensão dos mesmos (Barreto, 2006, pp. 253-55). O tom encomiástico vai continuar a ser esse, mais tarde usado por Frei Gaspar da Cruz no “Tratado das Coisas da China’’ e mais tarde ainda pelo jesuíta português Álvaro Semedo (1585-1657) na sua obra Relação da Grande

Monarquia da China.

Esta primeira fase de aproximação entre a Europa e a China, entre 1509 e os anos 1760/1770/1780, vai ser “marcada pela ideia da China como Modelo,

marcada também a nível material, a nível do comércio e a nível da cultura material por um grande predomínio da China sobre a Europa” (Barreto, 2017, p. 87). Por seu turno, é a este período que novos estudos consideram ser o início da Era Moderna da História da China, que tem a ver com as atividades marítimas quinhentistas dos Portugueses, a divulgação na China das ciências e tecnologias modernas pelos missionários de uma Europa pós-renascentista, enfim, com a presença europeia na Ásia-Pacífico, que permitiram a ação lenta que veio a desencadear o despertar da China pós-cataclismo causado pelas Guerras do Ópio (Jin & Wu, 2007, p. 38ss.).

Camões foi partícipe dessa “ação lenta’’ que se iniciou (em 1509, segundo uns, em 1511, segundo outros, conforme se considere, penso eu, como início do processo os primeiros contactos em Malaca entre chins e lusos ou a intensifica- ção dessas relações na Malaca já ocupada pelos Portugueses), e não desalinhou desses outros compatriotas na estupefacção perante a potência civilizada com que se depararam e na entusiástica receção dessas informações, fazendo-se arauto delas pela sua pena.

Vislumbro exemplos disso no Poema Épico. Por exemplo, no Canto X, 131-1-4) de Os Lusíadas:

Olha o muro e edifício nunca crido, Que entre um império e o outro se edifica, Certíssimo sinal, e conhecido,

Da potência real, soberba e rica.

Que “potência real, soberba e rica” seria aquela, cujo perfil geográfico Camões alcançava até uma extensíssima distância, da crista do outeiro de Patane, em Macau? Que potência seria aquela que almejara edificar tamanha e inacre- ditável Muralha e que atingira tamanho grau de civilização, que o próprio João de Barros, sem sair de Lisboa, percebera? (vd. Ribeiro, 2012a, pp. 187-204).

Durante os dois anos que Camões estanciou em Macau, o nosso Poeta apartava-se tanto quanto possível dos ódios e vinganças próprios dos homens em ambientes de fronteira, tão soltos e carregados de soberba como de armas, nas palavras usadas pelo Irmão André Pinto em carta dirigida aos seus supe- riores na Índia em 1564 (Loureiro, 1997, doc. 6), ano em que Camões ainda estava em Macau.

Será dessa época o soneto em que ele se lamenta desta maneira:

Julga-me a gente toda por perdido Vendo-me, tão entregue a meu cuidado, Andar sempre dos homens apartado

E dos tratos humanos esquecido. (soneto, vv. 1-4)

Camões, já então quadragenário, estava mais interessado nos seus versos do que em disputas desordeiras, e mais ainda interessado estava no ambiente humano que o rodeava, nas gentes e nos costumes, na história e na geografia do Império de que via umas franjas do alto do outeiro de Patane.

É de presumir que não foi junto da tanka com quem partilhou a rede de dormir, e de cujas mãos saíam os acepipes que comia, que ele aprendeu fosse o que fosse sobre o Império do Meio. As informações orais que vai colhendo ouve-as de todos aqueles que tivessem contacto privilegiado com os manda- rins e outros altos oficiais chineses, desde os fidalgos com quem se dava, aos missionários jesuítas, e aos mercadores que circulavam na China.

Muita dessa informação chegava diretamente dos cativos de Cantão que, após quinze anos de prisão, foram então libertados e começavam a chegar por essa altura a Macau, como foi o caso de um Amaro Pereira, libertado em 1561, que terá chegado a Macau por ocasião em que Camões lá estava.

Estes cativos de Cantão, mesmo antes de serem libertados definitivamente, eram importante fonte de informações, pois tinham “uma relativa liberdade de movimentos, assim como uma renda mensal de arroz”. De facto, com a conivência dos mercadores chineses, puderam fazer passar comunicações e informações aos portugueses de Macau, valendo-se do intenso tráfico fluvial que estabelecia ligações regulares com Cantão. O Capitão Leonel de Sousa, por exemplo, numa carta de janeiro de 1556 ao infante D. Luís, fala destes cativos que lhe terão dado informações atualizadas no porto de Cantão.

Um dos aspetos que julgo Camões ter recebido em Macau diz respeito ao sistema de exames imperiais, que visavam a criação de uma máquina burocrá- tica administrativa assente numa meritocracia intelectual, que privilegiava a inteligência, a educação e as virtudes morais, em detrimento do nascimento, da riqueza ou da força bruta, que caraterizavam, como se sabe, a ascensão das classes possidentes nos reinos europeus (Loureiro, 2000, cap. 15 e 20; Min- fen, 2010, p. 16ss.).

Esse sistema, que remontava ao séc. II, alcançou o seu apogeu durante a dinastia Ming e veio a contribuir para o desenvolvimento político e social da China. O jesuíta português Álvaro Semedo (1585-1657) faz dele um retrato muito lisonjeiro e idealizado na sua obra Relação da Grande Monarquia da

China, mas, curiosamente, é justamente apenas após Camões ter deixado Macau

(1564) que a China Ming entra em decadência, com o imperador Wanli (1566- 1620) “cada vez mais entregue aos prazeres, cada dia mais farto de administrar o país’’ (Minfen, 2010, p. 16ss.).

O nosso Poeta não pode ter ficado senão bem impressionado com estas informações e interrogo-me se não reflete influência desse conhecimento a parte final dos Cantos VI, VII e X, todos escritos, ou reformados, durante ou após a experiência chinesa.

No Canto VI (95-99), na narração da chegada do Gama à Índia, Camões intromete a sua opinião pessoal quanto ao pouco valor daqueles que viciosamente e ociosamente se encostam aos antigos troncos nobres dos seus antecessores, apontando, em vez disso, o alto valor do buscar honras próprias no sacrifício e trabalho forjado no aço, ouvindo o assobio do pelouro ardente, engolindo o mantimento corrupto, temperado com árduo sofrimento, num esforço que aca- bará por fazê-lo subir no mando, contra vontade sua e não rogando. Vejamos as estâncias mencionadas:

95

Por meio destes hórridos perigos, Destes trabalhos graves e temores, Alcançam os que são de fama amigos As honras imortais e graus maiores; Não encostados sempre nos antigos Troncos nobres de seus antecessores; Não nos leitos dourados, entre os finos Animais de Moscóvia zibelinos; 96

Não cos manjares novos e esquisitos, Não cos passeios moles e ociosos, Não cos vários deleites e infinitos, Que afeminam os peitos generosos; Não cos nunca vencidos apetitos,

Que a Fortuna tem sempre tão mimosos, Que não sofre a nenhum que o passo mude Pera algũa obra heróica de virtude; 97

Mas com buscar, co seu forçoso braço, As honras que ele chame próprias suas; Vigiando e vestindo o forjado aço, Sofrendo tempestades e ondas cruas, Vencendo os torpes frios no regaço Do Sul, e regiões de abrigo nuas, Engolindo o corruto mantimento Temperado cum árduo sofrimento; 98

E com forçar o rosto, que se enfia, A parecer seguro, ledo, inteiro, Pera o pelouro ardente que assovia E leva a perna ou braço ao companheiro. Destarte o peito um calo honroso cria, Desprezador das honras e dinheiro, Das honras e dinheiro que a ventura Forjou, e não virtude justa e dura. 99

Destarte se esclarece o entendimento, Que experiências fazem repousado, E fica vendo, como de alto assento, O ba[i]xo trato humano embaraçado. Este, onde tiver força o regimento Direito e não de afeitos ocupado, Subirá (como deve) a ilustre mando, Contra vontade sua, e não rogando.

Também quando reforma o Canto VII, já em Moçambique, no regresso ao Reino, em momento de desespero e desencanto, empunhando com uma mão a espada (do suicídio, igual a Cânace, quando esta, escrevendo a sua última carta, empunhava a espada do suicídio com uma mão) e com a outra a pena (do talento), o Poeta pede ajuda às Ninfas do Tejo e do Mondego, parecendo

ter isso presente, ao dizer que não!, que não!, que está farto de cantar quem não o ouve, ou não o mereça, aqueles que, possuídos de ambição ou falta de justiça, só antepõem o seu interesse ao do bem comum, os hipócritas que se transformam, e enganam, e roubam o povo, os que se recusam a pagar o suor do trabalho da servil gente, os que avaliam os trabalhos alheios sem nunca terem experimentado. Há anos agarrado ao Epos, olhando ao seu redor e vendo a degradação moral da cobiçosa lusa gente, Camões desfalece em ânimo e pede apoio às Ninfas, garantindo que, em troca desse apoio, ele não cantará senão os justos e virtuosos, premiando com a imorredoura memória que o seu canto assegura os que alcançam a fama por feitos próprios.

Vede:

78

Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego, Eu, que cometo, insano e temerário, Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, Por caminho tão árduo, longo e vário! Vosso favor invoco, que navego Por alto mar, com vento tão contrário Que, se não me ajudais, hei grande medo Que o meu fraco batel se alague cedo. 79

Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos danos: Agora o mar, agora experimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Cánace, que à morte se condena, Nũa mão sempre a espada e noutra a pena; 80

Agora, com pobreza avorrecida, Por hospícios alheios degradado; Agora, da esperança já adquirida, De novo mais que nunca derribado; Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado Que não menos milagre foi salvar-se Que pera o Rei Judaico acre[s]centar-se. 81

E ainda, Ninfas minhas, não bastava Que tamanhas misérias me cercassem, Senão que aqueles que eu cantando andava Tal prémio de meus versos me tornassem: A troco dos descansos que esperava, Das capelas de louro que me honrassem, Trabalhos nunca usados me inventaram, Com que em tão duro estado me deitaram! 82

Vêde, Ninfas, que engenhos de senhores O vosso Tejo cria valerosos,

Que assi[m] sabem prezar, com tais favores, A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores, Pera espertar engenhos curiosos, Pera porem as cousas em memória Que merecerem ter eterna glória! 83

Pois logo, em tantos males, é forçado Que só vosso favor me não faleça, Principalmente aqui, que sou chegado Onde feitos diversos engrandeça: Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado Que não no empregue em quem o não mereça, Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido. 84

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Imigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios; 85

Nenhum que use de seu pode bastante Pera servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio. Nem, Camenas, também cuideis que cante Quem, com hábito honesto e grave, veio, Por contentar o Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo! 86

Nem quem acha que é justo e que é direito Guardar-se a lei do Rei severamente, E não acha que é justo e bom respeito Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito, Razões aprende, e cuida que é prudente, Pera taxar, com mão rapace e escassa, Os trabalhos alheios que não passa. 87

Aqueles sós direi que aventuraram Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, Tão bem de suas obras merecida.

Apolo e as Musas, que me acompanharam, Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento, descansado, Por tornar ao trabalho, mais folgado.

Parece ainda estar imbuído desta atitude de virtude oriental quando, já no final do Canto X (145-156), ainda de Lira destemperada e voz enrouquecida por cantar a gente surda e endurecida, desesperado com a pátria metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza, se atreve a dirigir ao jovem rei que se rodeie apenas dos mais experimentados, daqueles

que a experiência tornou competentes para orientar; que favoreça apenas, em seus ofícios, os que exerçam a atividade, e só essa, para que sejam efetivamente competentes e, enfim, que em vez da Fantasia dos que sonham, imaginam e comandam sem nunca terem experimentado, antes prefira aos que viram, tra- taram e pelejaram.

Vejamos apenas as oitavas 145 a 153: 145

Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza

Dũa austera, apagada e vil tristeza 146

E não sei por que influxo de Destino Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Que os ânimos levanta de contín[u]o A ter pera trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divino Conselho estais no régio sólio posto, Olhai que sois (e vêde as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes. 147

Olhai que ledos vão, por várias vias, Quais rompentes leões e bravos touros, Dando os corpos a fomes e vigias, A ferro, a fogo, a setas e pelouros, A quentes regiões, a plagas frias, A golpes de Idolatras e de Mouros, A perigos incógnitos do mundo, A naufrágios, a pe[i]xes, ao profundo.

148

Por vos servir, a tudo aparelhados; De vós tão longe, sempre obedientes; A quaisquer vossos ásperos mandados, Sem dar re[s]posta, prontos e contentes. Só com saber que são de vós olhados, Demónios infernais, negros e ardentes, Cometerão convosco: e não duvido Que vencedor vos façam, não vencido. 149

Favorecei-os logo, e alegrai-os Com a presença e leda humanidade; De rigorosas leis desalivai-os,

Que assi[m] se abre o caminho à santidade. Os mais exprimentados levantai-os, Se, com a experiência, têm bondade Pera vosso conselho, pois que sabem O como, o quando, e onde as cousas cabem. 150

Todos favorecei em seus ofícios, Segundo têm das vidas o talento; Tenham Religiosos exercícios De rogarem, por vosso regimento, Com jejuns, disciplina, pelos vícios Comuns; toda ambição terão por vento, Que o bom Religioso verdadeiro Glória vã não pretende nem dinheiro. 151

Os Cavaleiros tende em muita estima,

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 84-100)