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Segundo período de tensão, na última década da primeira metade do século XIX, no tempo do imperador Tao Kuang

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 132-138)

Dois períodos críticos nas relações luso-chinesas

2. Segundo período de tensão, na última década da primeira metade do século XIX, no tempo do imperador Tao Kuang

O território mantinha-se igual a si próprio, sem mais uma casa aqui ou um acrescento acolá, para que o mandarim não mandasse demolir. As leis não permitiam que se acrescentasse uma só pedra às já existentes, por ser Macau terra da China. Mas nos últimos anos muita coisa havia mudado no quadro geopolítico do Delta do Rio das Pérolas.

O comércio do ópio atingiu níveis inconcebíveis ao longo do século XIX, por conivência dos mercadores com as autoridades sínicas, facto que levou o

tso-tang, mandarim destacado para vigiar os moradores, a instalar casa den-

tro dos muros da cidade. O negócio ganhou nova dimensão na mão dos ingle- ses, situação que o imperador não tolerou, tendo proibido a importação desse produto, por ter uma população viciada e um exército inativo na província de Guangdong.

Desde há muito que os estrangeiros de várias nações, além da Casa da Companhia das Índias, tinham casas em Macau para residirem as famílias e os negociantes repousarem no intervalo das feiras de Cantão. Ali recebiam a ajuda dos macaenses intermediários na venda do ópio à China, que carrega- vam da Índia, mais precisamente o de Damão e Diu de melhor qualidade, ali pretendiam instalar-se os súbditos britânicos, vivendo na cidade para facilitar as transações a pretexto de serem aliados de Portugal.

Os mercadores de Macau tinham poucos barcos no porto, desprovidos de artilharia para aguentar um negócio de grande envergadura, estando os mares infestados de pirataria. Nem por isso os macaenses deixavam de traficar. Com- pravam parte da carga aos ingleses e revendiam-na aos chineses, conseguindo um lucro superior ao que teriam se fizessem a viagem à Índia, tendo em conta os custos mesmo não prevendo os naufrágios.

Aos poucos, o Sul da China tornou-se palco de grandes transações e causa de graves conflitos. Os ingleses desobedeciam às leis sínicas e traficavam o ópio em alto mar.

O imperador Tao Kuang empreendeu uma série de medidas para acabar com o negócio do anfião. Entre elas, enviou para Cantão o alto comissário imperial Lin, que ao chegar mandou publicar editais para que todo o ópio lhe fosse entregue, incluindo o que estivesse carregado nos navios. Como ninguém se acusou, Lin fez queimar 20.000 caixas dessa mercadoria, incidente que viria a dar início à I Guerra do Ópio. Expulsou os ingleses da China, que se refugia-

ram em Macau, embora o governador Silveira Pinto se recusasse a proteger os que estivessem envolvidos nesse trato.

Os portugueses também foram notificados pelo mandarim da Casa Branca para entregarem todo o ópio que houvesse entre os moradores e levassem para fora da China os navios que o tivessem, sob a ameaça de encerrarem o porto à navegação e cortarem o abastecimento à cidade. O governador enviou para Manila todo o ópio que fora encontrado, enquanto editais do Senado proibiam o tráfico e o consumo, para aliviar a pressão das autoridades chinesas. A cidade voltou a entrar numa nova crise, que agravou a miséria económica e social dos moradores dependentes dessas traficâncias.

Vencedores da Guerra, os ingleses ocuparam a ilha de Hong Kong com total independência e soberania, abriram a Ilha ao comércio de todas as nações, exigiram privilégios no Tratado de Paz e passaram a controlar o porto de Can- tão. A partir daí alteraram-se as tradicionais relações que a China mantinha com os potentados europeus.

Macau perdeu a exclusividade de intermediário nos negócios dos estran- geiros em Cantão, continuava sujeito às leis imperiais chinesas, limitado ao número de 25 barcos em comércio, vendo-se numa situação de inferioridade que não se ajustava à realidade.

O reino atravessava uma fase de instabilidade política desgastante, desde as invasões francesas à Revolução de 1820, agravada com as consequentes revoluções entre liberais e constitucionalistas, até ao Cabralismo. Mal podia controlar as sucessivas rebeliões, quanto mais acudir às colónias, ficando Macau em parte tão distante.

A necessidade de encontrar um homem com perfil adequado para enfren- tar as discrepâncias nas relações da China com Portugal, face a outras nações que ganhavam força no Extremo Oriente, fez recair a escolha dos ministros do Reino na pessoa de João Maria Ferreira do Amaral. Este destemido e ousado liberal, já com uma carreira brilhante na defesa dos interesses do Estado, pode- ria responder ao desafio de manter a ordem em Macau e dignificar o nome de Portugal. Capitão-de-mar-e-guerra da confiança do governo, foi nomeado para o biénio de 1846/48, tendo ficado até 1849, por falta de substituto.

O assassinato deste governador antes de sair do território, findo o seu man- dato, veio envergonhar as relações diplomáticas entre os dois países.

João Maria Ferreira do Amaral destacou-se pela autoridade que imprimiu no cargo durante os três anos de governação, conseguindo inverter os poderes de soberania.

Usou da força contra a revolta dos faitiões, afastou os mandarins na gerên- cia interna do território e demarcou uma certa igualdade de tratamento entre os representantes das duas nações. Estabeleceu a Alfândega portuguesa e extinguiu as chinesas, retirou do Senado a pedra com as leis sínicas que humi- lhavam o governo português, alargou a posse sobre o território que pagava o foro-do-chão e ainda mandou construir na ilha da Taipa uma casa defensiva contra os ataques da pirataria, onde se passou a arvorar a bandeira portuguesa. Aos poucos, foi tomando o poder sobre toda a cidade. Mandou romper uma estrada até às Portas do Cerco e ocupar terras em Monh-há, projeto que exigiu remover as sepulturas chinesas dispersas nesta zona fora das muralhas. Avi- sado do melindre da situação pelo seu ajudante de campo, o governador usou de toda a cautela na transladação das sepulturas e comparticipou nos custos aos mais necessitados. Todavia, não evitou ferir suscetibilidades em chineses mais conservadores das suas tradições.

Determinado a cumprir com todas as etapas a que se propôs como gover- nador, Ferreira do Amaral reformou a Administração, dotou o contingente militar com melhores meios de defesa, determinou a participação de todos os homens válidos em caso de guerra, restringiu as funções dos senadores ao executivo camarário, aplicou impostos a todos os moradores, incluindo aos chineses que anteriormente pagavam às autoridades sínicas, cortou despesas e criou receitas, dignificou o cargo de governador como representante da cidade e não de um simples chefe militar.

Enfrentou uma série de dificuldades: a falta de apoio financeiro prometido pelo governo de Lisboa, vendo-se obrigado a instituir o exclusivo do jogo e da venda de carne; a adversidade da edilidade, que governara a cidade com pode- res absolutos; dos militares de Goa, que iam para Macau subir de posto sem nada defenderem; dos mandarins locais, que viam nele um intruso insubmisso às leis do império; a animosidade de alguns chineses obrigados a impostos; a hostilidade dos vice-reis de Cantão, que não lhe perdoavam a arrogância de se igualar aos distintos funcionários imperiais.

As autoridades sínicas, habituadas ao servilismo dos moradores e à pouca relevância dos governantes, sempre dispostos a usarem de uma cordialidade fictícia em chás de cortesia, não aceitaram as imposições de um capitão-de-

-mar-e-guerra, igual a muitos outros que havia na China, ignorando que ele representava o poder da rainha de Portugal no desempenho das funções de governador. Ferreira do Amaral insistiu neste ponto para alcançar os seus objetivos em detrimento da soberania imperial no território, à semelhança do vice-rei de Cantão que defendia os interesses de Tao Kuang.

As incompatibilidades agravaram-se com a extinção da Hopu pequena, situada na Praia Grande, quando a província de Guangdong era já governada pelo novo vice-rei, Xu Guangjin. Ofendido com o encerramento dessa Alfân- dega, o Suntó passou a enviar sucessivas chapas, sendo constante a troca de correspondência entre ambos.

Mais ultrajado ficou Xu Guangjin, quando Ferreira do Amaral, que o Suntó considerava de uma “loucura contra toda a razão” (Carmo, M. H. 2014), mandou encerrar a Hopu grande, mais antiga e no centro da cidade, junto ao Bazar. O governador ordenou ainda a destruição do mastro com estandartes, símbolo do poder sínico, ouvindo-se uma voz no meio do silêncio: Acabou Macau!

Os moradores, habituados à mentalidade oriental, reconheciam a impor- tância de usar maior diplomacia para continuarem em Macau. Uma chapa do Suntó terminava com este aviso:

Em uma palavra nós devemos prezar muito a paz, com razão tudo se con- cilia sem ela nunca se pode obrar. Não diga pois que não se lhe antecipou a tempo. (Carmo, 2017, p. 286)

Indiferente às ameaças de morte, desprezou os conselhos de Assan, um velho criado do palácio que se prostrou a seus pés para que não fizesse o seu passeio a cavalo. Ferreira do Amaral nessa tarde de 22 de agosto atreveu-se a passar para lá das Portas do Cerco. Convencido de que nenhum chinês lhe faria mal, fez o trajeto habitual acompanhado apenas pelo seu ajudante de campo. De regresso, já no Istmo, não suspeitou de um grupo de falsos mercadores que lhe solicitou atenção, sendo logo assassinado. Tudo se passou em menos de cinco minutos. No local onde se encontra hoje uma pedra gravada (Carmo, 2014, p. 328), cortaram-lhe a cabeça e o braço esquerdo que levaram pela Porta do Cerco, deixando toda a cidade de luto.

Pouco depois, começou um tiroteio fronteiriço entre as tropas portuguesas, que ocuparam o posto da guarda das Portas do Cerco, abandonado pela fuga dos guardas chineses, quando a tropa sínica fez fogo do forte de Passaleão. Os macaenses ripostaram, destacando-se Vicente Nicolau Mesquita em valentia ao tomar o forte chinês com mais 32 soldados. Foi Guerra de poucas horas, tendo Macau ganho a batalha.

Seguiu-se outra guerra, desta vez diplomática, entre a comissão gover- nativa da cidade e o vice-rei de Cantão para que a China devolvesse os res- tos mortais do governador para ser sepultado condignamente. Alguns meses depois, Macau recebeu a cabeça e o braço do governador Ferreira do Amaral dentro de um balde.

Os dois incidentes referidos assinalam os períodos mais gravosos veri- ficados nas relações de Portugal com o império da China. Mas não foram os únicos. Recorde-se o fracasso da primeira embaixada à Corte de Pequim por Tomé Pires, devido a atitudes arbitrárias dos navegadores portugueses nos Mares do Sul, e outros que se seguiram com a implementação de novos regimes políticos na República Popular da China. Ainda na segunda metade do século XX, o caso conhecido por “1, 2, 3” provocou desequilíbrios nas relações luso- -chinesas, sempre recorrendo ambas as partes a negociações para se encontrar na cedência um clima de paz propício à convivência.

Contudo, a aplicação das leis sínicas à população de Macau no controlo de procedimentos e no comércio durante um século, como o assassinato do governador João Maria Ferreira do Amaral, marcaram a quebra dessa cordia- lidade habitual que sempre se pretendeu manter no relacionamento entre as duas nações.

Referências bibliográficas

Carmo, M. H. (1999). Os Interesses dos Portugueses em Macau na primeira metade do século XVIII. Macau: Universidade de Macau.

Carmo, M. H. (2006). Uma Aristocrata Portuguesa no Macau do Século XVII – Nhóna Catarina de Noronha. Lisboa: Fundação Jorge Álvares.

Carmo, M. H. (2012). Mercadores do Ópio – Macau no tempo de Qianlong. Lisboa: Editorial Tágide.

PIRES: IMIGRANTES CHINESES NA

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 132-138)