• Nenhum resultado encontrado

Primeiras viagens à China

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 66-69)

PINTO E OUTROS PORTUGUESES PELA CHINA, O MÍTICO REINO DA PERFEIÇÃO

II. Primeiras viagens à China

Nos anos imediatos à conquista de Malaca, graças à visão de Afonso de Albuquerque, os portugueses ficam a conhecer todo o imenso litoral asiático, desde o Mar Vermelho até ao longínquo Japão, aonde chegam por volta de 1543. Esta exploração geográfica, principal objectivo dos Descobrimentos Por- tugueses, vai ser acompanhada por uma enorme produção de textos de carác- ter prático e informativo sobre as civilizações dos povos que encontram, para dar a conhecer esses “novos mundos” a uma Europa que, durante séculos, se alimentara de fantasias sobre o Oriente. Além das crónicas oficiais, surgem cartas, diários, tratados, relações, itinerários e até géneros híbridos como a

Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, cuja leitura irá causar uma verdadeira

revolução intelectual e cultural na Europa

Na China, ainda mais do que na Índia, “os portugueses encontram esse

mundo novo, em muitos aspectos totalmente alheio à sua vivência tradicio-

nal. Os homens são diferentes, a sua organização política e social não segue os padrões europeus, as práticas sociais são manifestamente outras. É necessário, então, dar conta desta novidade, integrá-la nos parâmetros culturais ocidentais, incorporando-a na visão do mundo europeia” (Loureiro, 1991).

Incertos do resultado da conquista de Afonso de Albuquerque, os chineses só voltam a Malaca em 1513 e com pouca mercadoria, a fim de avaliarem as possibilidades de comércio com os novos senhores. São muito bem recebidos pelo capitão Rui Brito Patalim, que lhes confirma os direitos outorgados por Mahmud. Tomé Pires (sem suspeitar que irá ser o primeiro embaixador à China) escreve uma carta a D. Manuel informando-o de que um junco carregado de pimenta de Pegu, comandado por Jorge Álvares, seguira para a China com a frota chin, cujas despesas seriam compartilhadas, em partes iguais, entre El-Rei e o Bemdara Nina Chatu, grande mercador e o mais alto dignitário de Malaca. Jorge Álvares e o seu filho vão ser os primeiros lusos a desembarcar em terras chinesas, no ano de 1513. Não passam da ilha de veniaga (comércio) de Tamão1 (Tumon segundo Tomé Pires), no delta do Rio das Pérolas, onde desem-

barcam por ordem dos chineses e Jorge Álvares chanta um padrão, na Boca de Cantão (Guangdong), para comemorar o feito. Os portugueses são muito bem recebidos pelas autoridades e mercadores locais, “que folgaram muito na sua companhia” e Jorge Álvares regressa a Malaca, no ano seguinte, depois de

ter vendido todas as mercadorias, com enormes lucros, e de ter enterrado o seu filho junto ao padrão. Ali foi igualmente o lugar da sua sepultura, em 1521, aquando da sua terceira viagem às terras dos chins.

E peró que aquella regiam de idolatria coma o seu corpo, pois que honrra de sua pátria em os fins da terra pos aquelle padram de seus descobrimentos: nam comerá a memória de sua sepultura em quanto esta nossa escriptura durar. (Barros, 1992, II, VI)

Estabelecidos os primeiros contactos sob tão bons auspícios, em 1515, por ordem do rei D. Manuel, Rafael Perestrelo parte de Malaca, num junco de um mercador chinês, com uma tripulação composta por uns trinta portugueses (ou dez, segundo Fernão Lopes de Castanheda), para consolidar esse comércio pro- missor, mas ainda sem o propósito de estabelecer relações diplomáticas com os mandarins. Perestrelo regressa a Portugal, no Verão de 1518, depois de mais de quatro anos de viagem de ida e volta à China, inaugurando a futura carreira marítima portuguesa para a Pestana do Mundo.

Estava aberto o caminho para o estabelecimento de relações diplomáticas entre el-rei D. Manuel I e o imperador Zhengde, um projecto que se vai concre- tizar no envio de uma embaixada portuguesa, a primeira de uma nação euro- peia à impenetrável China dos tempos modernos. De Lisboa, em 1515, parte o veterano de muitas campanhas de África e Índia, Fernão Peres de Andrade, como capitão-mor de uma armada para fazer “o descobrymento da enseada de bengala e da chyna” e aqui deixar um embaixador para a corte de Pequim. A frota faz escala por Pacém para carregar a pimenta destinada à China, sofre inúmeros percalços, com incêndios e perda de navios, e só chega a Malaca no ano seguinte, em Agosto, com a frota desbaratada e no fim da monção. Andrade ainda tenta a viagem, mas o mau tempo obriga-o a regressar a Malaca e a espe- rar a monção favorável. Ali vem ter Rafael Perestrelo, de regresso a Lisboa, que lhe fornece preciosas informações de tudo o que vira e passara.

Andrade parte finalmente para a China, em Junho de 1517, com uma armada de oito navios, pela primeira vez todos portugueses, embora com pilotos chine- ses, acompanhado por Jorge Álvares. Pelas suas qualidades e experiência admi- nistrativa, o boticário e naturalista Tomé Pires, antigo escrivão da feitoria de Malaca, contador e vedor das drogarias e autor do tratado Suma Oriental, foi escolhido pelo capitão-mor para embaixador ao Imperador Zhengde, a quem leva cartas e presentes de D. Manuel.

A 15 de Agosto, a armada surge na ilha de Tamão, onde acha ancorado o junco de Duarte Coelho, com quem Andrade fizera a sua frustrada viagem do ano anterior. Os portugueses causam estranheza aos naturais, por serem um “outro” nunca antes visto:

As embarcações bárbaras que arribavam dentro dos prazos estabelecidos para elas, podiam desembarcar os seus tripulantes que eram escoltados pelos soldados sob alçada do Beiwo2 até à Repartição da Administração

Civil, onde eram conferidas as suas Kanhe3 e verificados os prazos esta-

belecidos. Caso tudo estivesse em ordem, seriam apresentados ao Supe- rintendente do Comércio Marítimo, ao Eunuco do Comércio Marítimo e outras autoridades, tais como o Censor e o Comissário da Administração Judicial e depois enviados para a Capital mediante memoriais ao Trono. Se houvesse alguma transgressão, seriam detidos e sujeitos a interrogató- rios, remetidos à deliberação do Tribunal dos Ritos. (Barros, 1992, II, VIII)

Fernão Peres de Andrade pede aos mandarins autorização para desembar- car o embaixador, a fim de ser enviado ao imperador, sendo-lhe prometido “que logo se daria auiamento pera ser agasalhado em terra, & tãto que elles reçebes- sem a entrega delle, escreueriam a el rey seu senhor a causa de sua vinda, pera saber o que mãdaua que nisso fizessem, por quanto sem recádo seu nã podia daly partir” (Barros, 1992, II, VIII). Esta versão dos cronistas portugueses é contrariada pelos textos chineses:

No 12º ano [1517] do reinado de Zhengde, alguns estrangeiros [Folangji] entraram sem aviso no Distrito de Dongguan. Wu Tingju, o Buzhengshi [Comissário da Administração Civil Provincial] de então, decretou a auto- rização da recepção de tributos e viabilizou a comunicação à Corte, o que constituiu uma culpa por não ter consultado as leis vigentes 4

Andrade vai permanecer catorze meses na região de Cantão, aproveitando para fazer tratos comerciais e enviar Jorge de Mascarenhas a espiar a costa chi-

2 Comandante da defesa contra os piratas japoneses. O “Pio” das fontes portuguesas. 3 Documentos de identificação.

4 Gu Yanwu (S.d). Estudos sobre as Vantagens e Desvantagens de Todos os Países do

Mundo (vol. 120, p.14). S.l.: Edição Fuwenke, da Dinastia Qing; transcr. In Zhiliang, 1999, pp. 34-35.

nesa, para oriente, até Quanzhou. Durante um assalto de corsários às povoa- ções na boca do rio das Pérolas, os navios portugueses acodem às populações, desbaratam os inimigos e conquistam grande reputação entre os chineses.

Desconhecendo-se, então, a mentalidade e morosidade da burocracia chinesa, depois de alguns jogos diplomáticos com o “Pio”, o dignitário chinês, Andrade, impaciente pela demora da resposta quanto à ida para Cantão, parte sem autorização pelo rio acima, com dois navios e vários escaleres embandei- rados, entrando na cidade de Cantão, em Outubro, ao som de uma festiva fan- farra e a disparar todas as bombardas do navio em saudação, provocando um incidente diplomático que quase lhe foi fatal:

O Tutão que patrulhava a costa com a sua própria armada, tomou aquelas salvas e estandartes por um acto de guerra e preparou-se para o combate, perseguindo a nossa frota com alguns tiros. O poder de fogo chinês era fraco e Fernão d’Andrade não ripostou e fez tocar as suas fanfarras em som de festa. Por sorte, Duarte Coelho, que chegara a Tamão um mês antes com a sua nau e ficara a ajudar a cidade a defender-se dos cossairos, mandou recado ao almirante chim, de que a frota portuguesa vinha em missão de paz. (Barroqueiro, 2011)

Esclarecido o incidente, e apesar de alguma desconfiança natural, o capi- tão-mor acaba por desembarcar Tomé Pires com os presentes destinados ao imperador e, julgando terminada a sua missão, regressa a Malaca “muy próspero em honrra & fazenda”, graças aos produtos que trouxe da China. No entanto, ainda em resultado da ruidosa entrada em Cantão, o embaixador vê embargada a desejada viagem para Pequim, cuja autorização só lhe chegará em Janeiro de 1520, dando início à sua terrível e dolorosa peregrinação por terras da China.

III. A Embaixada de Tomé Pires – uma trágica peregri-

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 66-69)