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澳门人群特征问题暨量化存在之经验

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 156-162)

Paulo José Miranda

Escritor

Recentemente numa entrevista dada ao jornal Hoje Macau, o artista plás- tico José Drummond dizia que uma das coisas que muito influenciava o seu trabalho era a noção de isolamento, e que essa é também uma condição dos ocidentais que estão na China. Embora possa não se sentir tanto em Macau, porque a comunidade portuguesa é, ainda assim, bastante grande e vai se entreajudando, esbatendo de algum modo essa sensação, mas quando se vai para dentro da China existe um isolamento maior, com a sua carga de solidão e com a questão do sentido da existência. Há um problema de existência, na medida em que não se sabe de onde se é e de se começar a perder as raízes por se querer fazer parte de qualquer coisa. A jornalista Isabel Castro pergunta- -lhe então, de modo mais preciso: “Sente isso? Veio para Macau há já muitos anos. Começa a sentir as raízes distantes e, ao mesmo tempo, que não pertence aqui?” Ao que José Drummond responderá: “Sinto essa batalha quase diaria- mente, com a agravante de ter feito a parte mais importante da minha edu- cação em inglês, e de ler e escrever muito em inglês. É quase a minha língua diária. Enquanto pessoa e autor, torna-me ainda mais fragmentado. Um dos aspectos que os curadores em Berlim e Nova Iorque apontam no meu trabalho é precisamente esse nível de fragmentação e de os trabalhos serem um híbrido estranho, porque já não são ocidentais, mas também não são asiáticos”.

Temos nestas palavras de José Drummond três linhas fundamentais para iluminarmos o problema da identidade humana e da sua fragmentação, que é uma experiência universal, embora haja lugares no mundo que são como que amplificadores da mesma, como é o caso de Macau. A primeira é a noção de isolamento, a segunda a de perda da língua e a terceira a de transformação do artista num ser híbrido, que já não é ocidental, mas também está longe de ser oriental.

O isolamento a que alguém está votado em Macau não será o mesmo de alguém no interior da China, como o próprio artista reconhece, devido à pre- sença de uma comunidade portuguesa, ou talvez de várias pequenas comuni- dades portuguesas, que se ajudam uns aos outros a esquecerem que não estão em terras de Portugal, em terras onde a língua e os costumes do seu país de origem não estão efectivamente ali. São nessas pequenas ilhas de portugueses que a língua ainda se mantém, pois fora disso a língua de troca é o inglês. Mas sendo o inglês língua de ninguém, ao fim de algum tempo passa-se a sentir a vida também como sendo de ninguém, isto é, à imagem da língua com que se fala, começa-se a ver a vida como se ela não fosse a nossa própria vida, mas uma vida de troca, uma vida que usamos para estar aqui, uma vida que usa- mos para estar em Macau, embora essa não seja a nossa própria vida. Essa vida que se faz sentir, que na realidade é a vida mesma, a que somos ao caminhar do Leal Senado até ao café Caravela, faz-se sentir como se estivesse longe de si mesma. Aquele que caminha do Leal Senado ao Caravela, mais cedo ou mais tarde, irá sentir uma dobra temporal em si mesmo; um eu que caminha e que existe aqui e agora, e um eu que existe na projecção que faz de um ter sido do lugar de onde veio. Macau produz em nós uma experiência quântica, uma mul- tiplicação da existência. Somos o que somos em Macau, mas também somos o que poderíamos ter sido de onde viemos.

De um modo leigo, podemos dizer que a mecânica quântica é a teoria que descreve o comportamento da matéria e da energia ao nível do microcosmos. Esse comportamento é definido como uma onda de probabilidades, através do princípio de incerteza, de Heisenberg. A teoria quântica tem três interpretações que tentam explicar aquilo que, fora do mundo da física, parece ser esquizofre- nia: a interpretação de Copenhaga, os universos paralelos e as variáveis escon- didas. A primeira diz que o observador é o responsável pelo colapso da função de onda, a segunda que todas as probabilidades se efectivam em numerosos universos e a terceira que existem propriedades desconhecidas da matéria que

impedem que percebamos o que realmente se passa. E a que aqui nos interessa é a interpretação dos universos paralelos, tal como foi definida por Hugh Everett III (1930 - 1982), físico dos Estados Unidos da América, que propôs a interpre- tação de muitos mundos da física quântica, na qual ele chamou formulação do “estado relativo”. Segundo ele, todos os sistemas isolados evoluem de acordo com a equação de Schrödinger. Se a teoria quântica indica que átomos podem estar deteriorados e não deteriorados ao mesmo tempo, então a interpretação de muitos mundos conclui que devem existir dois universos: um em que a partícula está deteriorada e outro em que isso não aconteceu. O universo, portanto, se ramifica cada vez que um evento quântico ocorre, criando um número infinito de universos quânticos. Fazendo uma analogia, é como se alguém ao decidir ir viver para Macau, nos anos 80 do século passado, continuasse ainda a viver em Lisboa, ou na Covilhã, hoje em dia, com a vida que teria tido se tivesse decidido não partir. Independentemente de isto ser ou não mais ficção científica do que ciência, não impede que produza uma pujante metáfora acerca da existência humana, em determinadas situações da vida, como é o caso daquele que vive em Macau uma vida, depois de ter começado a viver uma outra em Portugal.

Num romance que escrevi, O Mal (Cotovia, 2002) centrado em Macau, o narrador começa a sua narrativa um dia após o handover, a passagem da admi- nistração portuguesa para a administração chinesa. Trata-se de alguém que, ao tempo, vivia há quase quinze anos no território e tinha ido para lá leccionar e fazer uma tese sobre Camilo Pessanha, acabando por se perder em drogas e sexo. E à página 58 do livro, ele fala desta experiência quântica da identidade humana: “Será que se nunca me tivesse mudado para este Oriente longínquo a minha vida seria à imagem do que um dia desejei que fosse? Lisboa, ter con- tinuado a viver lá, poderia ter sido não acordar com esta vida de total desinte- resse que hoje sou. Sinto que estes quase quinze anos em Macau, no Oriente, foram mais decisivos na minha vida do que se tivesse o mesmo tempo de casa- mento com quem quer que fosse, em Lisboa. Uma pessoa não se nos impõe tanto quanto um lugar, especialmente se esse lugar for nos antípodas, e não só geográficos, do primeiro lugar que deixámos (o casamento em si não implica necessariamente renúncia). Mais tarde, essa vida que poderíamos ter tido no lugar de onde viemos nunca mais deixará de se aproveitar das fraquezas da vida que vamos tendo aqui. Vivo aqui como se com uma vida de empréstimo, que, mais cedo ou mais tarde, vou ter de, ou querer, devolver. Sem dúvida, nesta experiência alarga-se o horizonte humano, mas com isso também aumenta a

angústia.” E agora escute-se também o que o narrador escreve à página 66 do mesmo livro: “A distância espacial acaba por produzir uma maior deturpação nos juízos acerca das realidades a avaliar do que a distância temporal. Quan- tas vezes não cheguei a gastar manhãs a pensar em pessoas que tinha conhe- cido em Portugal, com quem a vida poderia ter sido diferente, querendo este diferente dizer “melhor”! Pessoas de quem, sei-o muito bem, se tivesse ficado em Lisboa, não me lembraria nunca. Tudo o que está à mão não exerce tanto poder. Mas uma pessoa no outro lado do mundo não é apenas uma pessoa, é uma efectivação perdida; uma ferida que não fecha. Vive-se essa lembrança como um crime cometido. Deste lado do mundo consegue-se preservar um amor do outro lado dele”.

Como se pode ver, pelas reflexões deste narrador, ele sente como se expe- rienciasse uma existência quântica, que parece ser tão típica de Macau, como também vimos pela entrevista de José Drummond, ou típica de quem troca de lado do mundo. Em Ser e Tempo, de Hiedegger, ficamos a saber que quase toda a nossa vida é feita de outros, feita do ambiente onde crescemos, da lín- gua com que crescemos, dos erros que herdamos. O Dasein, que podemos traduzir livremente por existência, está desde sempre lançado no mundo, no mundo que é aquele onde nasce, onde cresce, onde aprende. O português que aos vinte ou aos trinta anos vai para Macau viver, encontra-se consigo mesmo sem si mesmo. Evidentemente, isso só se faz sentir ao fim de algum tempo, não é imediato. O português que vai viver para Macau, aos poucos deixa de ser português, nunca deixando totalmente de o ser, mas jamais será chinês, pois não foi ali que o seu ser se abriu ao mundo. E a dificuldade radical da língua lembra-nos isso a cada instante, a cada esquina, a cada sonho.

Por outro lado, a distância aqui é um elemento preponderante para esta experiência quântica da existência. Pois se pudéssemos viajar até Lisboa em duas horas, não sentiríamos Macau como o outro lado do mundo, como se real- mente as nossas vidas se tivessem partido em duas. A distância, aqui, faz com que o tempo se faça sentir como uma pedra, um muro enorme e intransponí- vel, à imagem do muro da china na antiguidade. O tempo, aquilo que somos, encontra na barreira do espaço a impossibilidade de se ver a ser por inteiro. É evidente que há sensibilidades mais ou menos propensas para sentir isto, acerca do qual estou aqui a falar, mas que alguém não sinta, por exemplo, saudade, não implica necessariamente que esse sentimento não exista ou que ele não se faça sentir na maioria dos seres humanos. Saudade foi a palavra que se arranjou

para dizer que sentimos a vida a fugir-nos. Por isso a saudade dói tanto. Porque o que dói mais é o que já não somos. E se este já não somos, que para alguém que vive toda a sua vida em Lisboa, para além das viagens de negócios ou de férias, é passado, para aquele que mudou a sua vida para Macau é actual; o já não sou em Macau existe ainda na modalidade de poder ter sido diferente se não tenho vindo para cá. A saudade que se sente em Macau, além da saudade do passado é a saudade do agora, a saudade do que poderia estar a ser, se não tenho mudado de lado do mundo. Sentirmos a nossa vida, a nossa existência como se fosse em outro lugar que não o nosso, onde estamos, como se pudesse, não o ter sido, mas estar neste momento a ser, como se não existisse interrupção na minha existência com a decisão da partida, é o que chamo de experiência de existência quântica. Mas há outros modos de assim nos sentirmos, mesmo sem mudar de lado do mundo. Quem assistiu ao filme Café Society, de Woody Alan, pôde assistir a algo muito semelhante.

Um jovem de Nova Iorque vai para a Califórnia e apaixona-se por uma jovem que trabalha no escritório do tio dele e que é amante deste. Quando estão para casar, o jovem e a jovem, o tio deixa a sua mulher e pede a jovem em casamento, ao que ela aceita, deixando o jovem de coração partido, que regressa a Nova Iorque, e abre um Night Club, com o seu irmão gangster. Ao fim de algum tempo, consegue esquecer a outra jovem e ao conhecer uma mulher deslumbrante, casa-se com ela e tem uma filha. Passados uns anos, a jovem que se casara com o seu tio entra pelo seu night club adentro, com o tio a tiracolo. E não só o jovem volta a sentir o que antes sentia pela jovem, como também a jovem passa a querer viver o que nunca fora vivido, isto é, experimen- tar a outra decisão que acabou por não fazer. Deste momento, e até ao fim do filme, adivinha-se que até ao fim das vidas desses dois personagens, aquilo que poderia ter sido passa a ser vivido diariamente ao lado do que está realmente a acontecer. A vida fragmenta-se, ou talvez melhor seja dizer, a vida quântico-

-ifica-se. E esta experiência de viver o que nunca foi, como sendo ainda possível

ser vivido, como se a vida depois da escolha pudesse ser recuperada naquele instante, como se pudéssemos rebobinar a vida, é uma experiência que para nós portugueses tem um lugar privilegiado chamado Macau.

NO CONTEXTO DA POLÍTICA RÉGIA

No documento Diálogos Interculturais Portugal-China 1 (páginas 156-162)