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Ação Penal nos moldes do art 225 do Código Penal e o advento do Segredo de Justiça

Já é de conhecimento que a ação penal, antes da modificação legislativa, para os delitos dos arts. 213 e 214 (revogado), ambos do Código Penal Brasileiro, possuíam, como regra, a iniciativa privada. Porém, comportava algumas exceções, a saber: quando o delito fosse praticado com abuso do poder familiar ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador; se, da violência empregada, resultasse lesão corporal grave ou morte; se resultasse lesão corporal leve, haveria a aplicação da súmula 608 do STF; se a ofendida ou seus pais não pudessem custear as despesas de um processo penal sem se privarem dos recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família. Portanto, das exceções apresentadas às três primeiras hipóteses a ação penal se daria pela via da ação pública incondicionada, enquanto a última seria uma ação pública condicionada à representação do ofendido.

Assim, o exercício da ação penal, excluindo o rol relatado acima, seria realizado somente se houvesse o oferecimento da queixa, pois a regra era a ação penal de iniciativa privada. Agora, com o advento da Lei Federal 12.015/2009, a ação penal passou a ser sempre a pública condicionada à representação, exceto se a vítima for menor de 18 (dezoito) anos ou for pessoa considerada vulnerável82, oportunidade em que a ação será a pública incondicionada.

Faz-se mister relembrar que a representação é condição específica de procedibilidade imposta a determinados delitos para que haja o exercício da ação penal. Esta representação é uma manifestação da vontade do ofendido, ou de quem legalmente seja seu representante em preceder à persecutio criminis. Tal ato deveria consistir de uma declaração escrita ou oral, dirigida à autoridade policial ou ao Ministério Público.

Porém a doutrina e a jurisprudência amenizaram este rigor exigido para que houvesse maior acessibilidade e informalidade por parte da vítima, muitas vezes já constrangida em ter que tornar pública a violência sexual sofrida, ao declarar que possui

82O conceito de vulnerabilidade não possui uma definição clara, englobando tanto os indivíduos menores de 14

(quatorze) anos de idade, como os maiores de 14 (quatorze) e menores de 18 (dezoito) anos de idade, conforme o Código Penal Brasileiro. Porém, assevera GRECO (que “quando se cuidou do crime de estupro, o novo diploma legal entendeu como vulnerável o menor de 14 (catorze) anos, bem como alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivesse o necessário discernimento para a prática do ato sexual, ou que, por qualquer outra causa, não pudesse oferecer resistência.”.

interesse na abertura do inquérito policial. Pensamento compartilhado por Cezar Bitencourt: “a representação não exige qualquer formalidade, podendo ser manifestada mediante petição escrita ou oral. A única exigência legal é que constitua manifestação inequívoca do ofendido de promover a persecução penal” 83. Ensina ainda o Superior Tribunal de Justiça84 que: “Nos crimes de ação pública, condicionada à representação, esta independe de forma sacramental, bastando que fique demonstrada, como na espécie, a equívoca intenção da vítima e/ou seu representante legal, nesta extensão, em processar o ofensor” 85.

Portanto, o art. 225 do CPB estabelece que, nos crimes enquadrados entre os art. 213 a 218-B da legislação supra, a ação penal seja procedida mediante representação do ofendido, como regra. Atenta-se somente para o caso da ação ser pública incondicionada, qual seja quando a vítima for menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável. Logo, não há falar em ação penal privada para os ditos delitos, salvo se esta for subsidiária da pública, conforme expõe o art. 29 do Código de Processo Penal (CPP)86 e art. 5ª, LIX da Constituição Federal87.

Ademais, permanecer este delito, de tamanha agressão física e psíquica, como sendo de iniciativa privada continuaria a ensejar absurdos totalmente indesejáveis para a sociedade que anseia justiça, tais como quando a vítima do estupro ou do atentando violento ao pudor vem a falecer no curso da ação penal sem deixar representante legal que possa dar continuidade, quais sejam o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão – art. 31 do Código de Processo Penal (CPP). Tal fato acarretaria a existência do instituto da perempção (art. 60, II do CPP), a extinção da punibilidade do acusado (art. 107, IV do CP) e consequentemente geraria a impunidade.

Ainda quando o delito resultar em morte ou lesão corporal grave e o ofendido não

83BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. p.329. São Paulo:Saraiva, 2002.

84BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Pesquisa de Jurisprudência. HC nº 20.401-RJ (2002/0004648-6 Rel.

Ministro Fernando Gonçalves. DJU 05/08/2002,Seção 1, p.414, Julgamento 17/06/2002. Disponível em:

http://www.stj.jus.br. Acesso em 26/05/2012.

85Entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal. HC nº 88843: “ que, de acordo com diverso precedente

desta Corte, o entendimento firmado no STF é de que não se deve exigir aobservância rígida das regras quanto à representação, principalmente quando se trata de crimes dessa natureza”. Rel. Ministro Marco Aurélio, 1ª turma do STF.

86Art. 29 do CP: “ Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo

legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal”.

87Art. 5º, LIX,CF: “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo

deixar sucessores nem possuir representante legal nos moldes do CPP, como ficaria a representação, haja vista a ação penal ser pública condicionada a esta conduta? Ao certo não foi a intenção do legislador deixar impune uma hipótese desta, já que a Lei 12.015 de 2009 foi criada para exatamente punir com maior rigor os crimes sexuais. É de bom alvitre, neste caso, fazer uma interpretação conforme a Constituição Federal para que a ação se torne pública incondicionada. Neste sentido, concorda Paulo Rangel:

Não é crível nem razoável que o legislador tenha adotado uma política de repressão a esses crimes e tornado a ação pública condicionada à representação. Ate mesmo pelo absurdo de se ter a morte da vítima no crime de estupro e não haver quem, legitimamente, possa representar para punir o autor do fato. O crime, sendo a vítima maior e capaz, ficaria impune. Com certeza, por mais confuso que esteja o Congresso Nacional com seus sucessivos escândalos, não foi isso que se quis fazer[...] Destarte, se o que se quer com a Lei 12.015/09 é estabelecer uma nova política repressiva dos crimes contra a dignidade sexual, protegendo-se a pessoa vítima do descontrole humano, em especial, quando houver morte ou lesão grave[...], é intuitivo que a ação penal seja pública incondicionada.88

Com o surgimento da nova redação aparecem questões a serem discutidas. Com relação aos processos em trâmite, pendente de sentença transitada em julgado, como proceder? É cediço a existência de dois princípios que regem o direito intertemporal em se tratando de matéria criminal: primeiramente, a lei penal não retroage, salvo para benefício do réu, assim dispõe o art. 2º, parágrafo único do CP89 e o art. 5º, XL da CF90; bem como a lei processual tem aplicação imediata – tempus regit actum- , conforme art. 2º do CPP91.

Tendo em vista estes dois princípios, a análise do disposto no art. 225 do CPB deverá ser realizada sob esta ótica. A priori, cabe definir a natureza jurídica da norma do dispositivo legal, ou seja, saber se sua natureza é material (mista) ou formal (processual). Em sendo aceita a norma como de natureza puramente processual não se deve falar em retroatividade, porém se for admitida como norma processual penal material a retroatividade se torna possível.

Desse modo, uma norma que passou a exigir a representação para que se execute

88 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. p.301-303. 17ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

89 art.2º, parágrafo único, CP “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos

anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

90

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, XL-“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

91,art. 2º,CPP: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a

a ação penal em relação a alguns crimes, possui um aspecto tipicamente material, haja vista que o não oferecimento da dita representação acarretará a decadência, bem como a extinção da punibilidade, ambos tratados no direito penal (art. 107 do CP: “Extingue-se a

punibilidade: [...]IV - pela prescrição, decadência ou perempção;”), porém, salienta-se que

também será norma processual, pois sua modificação criou uma condição de procedibilidade da ação penal, conforme dispõe o art. 38 do CPP:

Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

Observa-se que diante de tal alteração, a ação penal que teve seu início mediante queixa deverá seguir o curso normal do procedimento, nada tendo o Juiz de Direito a fazer, a saber, o dispositivo ora em análise não seria aproveitado para o réu, pois uma ação que deva ser iniciada de modo privado é “mais benéfica” do que uma ação pública (condicionada ou incondicionada), pois se aplica a ela os institutos da decadência, renúncia, perempção e perdão, todos ensejadores da extinção da punibilidade do agente. Obviamente que tal análise é feita sob a perspectiva da teoria e em uma visão da situação do acusado. Este mesmo contexto também se aplica para o processo iniciado por ação pública condicionada à representação do ofendido e passou a ser exigida a ação pública incondicionada. Portanto, havendo claro prejuízo para o acusado o novo dispositivo não deve retroagir em nenhum dos dois casos acima.

Problema também aparece na hipótese em que a ação penal era pública incondicionada e passou a ser pública condicionada à representação. Em tese, esta mudança trouxe benefício para o acusado, haja vista a persecutio criminis in judicio ter se tornado mais difícil para o Ministério Público, pois passou a depender de uma condição específica de procedibilidade, ou seja, ficou impossibilitado de agir de ofício (Princípio da Oficiosidade), além do fato de se operar neste caso a decadência, gerando a extinção da punibilidade do agente delitivo. Pelo que foi analisado acima, entendendo a norma atual ser de natureza material (mista), a retroatividade deverá se impor e atingir os casos pendentes.

Diante da discussão a respeito das possibilidades de retrocesso da nova redação do texto penal, qual seja o art. 225, há de ser ressalvado que a coisa julgada, por já ter havido o

trânsito em julgado, não se cogita a retroatividade, pois o processo já teve um final, até porque quando a norma também possui caráter processual só poderia incidir nos processos não encerrados. O contrário, porém, não ocorreria, ou seja, se a norma fosse apenas penal (como por exemplo, diminuir a pena ou descriminalizar a conduta antes tida como criminosa) o trânsito em julgado seria atingido pela lex nova ( parágrafo único do art. 2º do CP). Por fim, na hipótese do trânsito em julgado a lei mais benéfica deverá ser aplicada pelo juízo da execução penal, assim aduz o art. 66, I da LEP: “Art. 66. Compete ao Juiz da execução:I - aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;”.

Ademais, ainda há outro óbice a ser resolvido: agora que a representação passou a ser condição para o prosseguimento da ação penal, qual seria o prazo para a vítima ou se representante fizesse esta representação? Com a devida vênia, deveria a lei ter transcorrido acerca do assunto, não o fazendo deixou uma lacuna a ser preenchida e, ao que parece, devendo se utilizar do recurso da analogia. Assim, na lição de Miguel Reale: “a um caso não previsto aquilo que o legislador previu para outro semelhante, em igualdade de razões. Se o sistema do Direito é um tudo que obedece a certas finalidades fundamentais, é de se pressupor que, havendo identidade de razão jurídica, haja identidade de disposição nos casos análogos” 92

.

Surge, com relação a este prazo, divergência entre os doutrinadores. Para Guilherme de Sousa Nucci93 a vítima deverá representar de imediato, não havendo novo prazo para tanto, ou seja, de seis meses. Porém, aderindo a posicionamento diverso, postula Paulo Rangel:

Se há nos autos manifestação de vontade da vítima nesse sentido, suprida estará a manifestação. Do contrário, não havendo manifestação de vontade da vítima, dever- se-á, no prazo decadencial de 30 dias, aplicado analogicamente o art. 91 da Lei 9.099/95, ser chamada a se manifestar. Tal exigência começa a partir da entrada em vigor da Lei 12.015, 10 de agosto de 2009, devendo o Estado intimar a vítima para se manifestar, em 30 dias.94

Portanto, para o caso do prazo de representação haveria duas opções: recorrer ao art. 88 da Lei 9.099/95 quando se tratar de representação para lesões leves e culposas; ou o

92

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito.p.292. 19ªed. São Paulo: Saraiva, 1991.

93NUCCI, Guilherme de Sousa. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de

2009. p.69. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

art. 91 do mesmo diploma, devendo o ofendido ser intimado para apresentar, no prazo de 30 (trinta) dias, a representação, sob pena de decadência95. De qualquer forma, uma vez intimada, a vítima deverá manifestar de pretende prosseguir com a ação penal. Do contrário, havendo negativa expressa na continuidade do processo ou deixando o prazo passar in albis, acarretará a extinção da punibilidade do acusado.

Porém, a nova redação tornou o assunto um tanto quanto controverso, na medida que para alguns autores a Súmula 608 do STF não mais seria aplicada, enquanto outros defendem que a mesma permaneceu com plena aplicabilidade. Respeitando os diversos entendimentos, opta-se pela não mais aplicação desta súmula, vez que a mesma acaba por limitar a interpretação quanto à ação penal em todos os delitos do Capitulo I e II do Título Penal “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Isto porque não deve ter sido a intenção do legislador, ao ampliar a quantidade de crimes abarcados, bem como tornar regra a ação penal pública condicionada à representação, ter a interpretação desses delitos limitada ao que diz a súmula, ou seja, valendo a ação penal pública condicionada apenas para o caso de os crimes serem cometidos com grave ameaça.

Porém, o que se vê é a tendência da jurisprudência dominante continuar a aplicar a Súmula 608 do STF, senão observa o entendimento dos nossos tribunais:

APELAÇÃO CRIME. ESTUPRO. TENTATIVA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. SÚMULA 608 DO STF. Tendo havido violência real, devidamente atestadas as lesões por laudo

produzido pelo Departamento Médico Legal, a ação é pública incondicionada. Súmula 608 do STF, que não restou alterada pelas disposições da Lei nº 9.099/95, ao

exigir, como requisito de procedibilidade, a representação da vítima nos delitos de

lesões de natureza leve, porque, no crime de estupro, que é delito complexo, as lesões corporais são absorvidas. Precedentes (ACR 70022456404 RS Relator(a)

Fabianne Breton Baisch. Julgamento: 13/07/2011. Órgão Julgador: Oitava Câmara Criminal. Publicação: Diário da Justiça do dia 09/08/2011)96.

95BRASIL. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, art. 88: “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação

especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. Art. 91 do mesmo diploma: “Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência”.

96

Tribunal do Rio Grande do Sul. Processo: ACR 70022456404 RS Relator(a) Fabianne Breton Baisch. Julgamento: 13/07/2011. Órgão Julgador: Oitava Câmara Criminal. Publicação: Diário da Justiça do dia 09/08/2011. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20239149/apelacao-crime-acr- 70022456404-rs-tjrs. Acesso em 30/05/2012.

Ainda no campo das alterações trazidas ao CP, o art. 234-Bexplicita que as ações abertas para apurar o cometimento dos crimes contra a dignidade sexual correram em segredo de justiça, sob a seguinte forma: “Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça”.