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Percepção Física – Alejandro Ahmed 58 e Cena 11

2 COMPONENTE: CORPOREIDADE

2.1 Percepção Física – Alejandro Ahmed 58 e Cena 11

O acontecimento por si mesmo é problemático e problematizante. Um problema, com efeito, não é determinado senão pelos pontos singulares que exprimem suas condições. Não dizemos que, por isto, o problema é resolvido: ao contrário, ele é determinado como problema.60

Gilles Deleuze

57Agenciamento é ―um dispositivo que opera por princípios de conexão e heterogeneidade – qualquer

um de seus pontos pode ser conectado a qualquer outro‖. Desprovido de centro, o agenciamento propaga-se por prolongamentos, variações e linhas. É um espaço feito de direções movediças, sem começo e fim, apenas um meio pelo qual o mesmo cresce e transborda (Peixoto, 2010, p. 241).

58 Alejandro Ahmed Lamela Adó nasceu em 22 de maio de 1971 em Montevidéu, Uruguai. Iniciou

seus estudos em dança no início da década de 1980 em Florianópolis (SC), aprendendo break dance e jazz dance. Compôs o elenco que originou o Grupo Cena 11, inicialmente coreografado por Anderson Gonçalves (1964-2010). Nos anos de 1990 e 1991 integrou o Grupo Raça Cia. de Dança, dirigido por Roseli Rodrigues em São Paulo (SP). Participou do American Dance Festival, nos Estados Unidos em 1997, quando frequentou aulas da técnica Flying Low com David Zambrano. O curso foi importante para impulsionar Ahmed à criação de uma técnica de dança autoral. Como coreógrafo residente e diretor do Cena 11 desde 1993, recebeu diversas premiações, dentre elas:

Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia (2007) e Prêmio Bravo! Prime de Cultura (melhor

espetáculo de dança de 2007) para Pequenas Frestas de Ficção sobre Realidade Insistente (PFdFSRi); Prêmio Mambembe (melhor coreógrafo 1998) para A Carne dos Vencidos no Verbo dos

Anjos; Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (melhor concepção cênica 1997) para In´Perfeito; Prêmio Mérito Cultural Cruz & Souza (destaque na área cultural catarinense em 1997).

59 Criado por Rosângela Matos em Florianópolis (SC) no ano de 1986, como grupo amador para

representar sua academia – Rodança, em mostras e festivais. Com a direção de Alejandro Ahmed conquistou o status de companhia profissional. Hoje ocupa lugar de grande destaque no mapa da dança contemporânea brasileira.

Solicito ao diretor e coreógrafo Alejandro Ahmed que me fale sobre uma experiência fundamental em sua vida, que tenha transformado seu modo de lidar com a dança. Ele me conta sobre o momento em que saiu de São Paulo e retornou para Florianópolis ao final de 1991, quando começou a construir uma nova trajetória. Lembra que não foi aprovado em audições para integrar o elenco dos grupos 1º Ato (MG), Balé da Cidade de São Paulo (SP), Balé Stagium (SP) e Corpo Cia. de Dança (MG). Como a tentativa de ingressar profissionalmente como bailarino nestas companhias falhou, viu-se obrigado a iniciar algum processo independente de trabalho e descobertas criativas. Ahmed recorda que:

[...] tinha que começar a criar alguma coisa. Foi a exigência de autonomia e auto-suficiência em função daquilo que eu comecei a ver que eu precisava fazer, porque não tinha nenhuma outra chance de fazer qualquer outra coisa, nem dinheiro, nem... Eu voltei para cá no final de 91, a gente fez o nosso dueto do Caetano em 9261, comecei a tentar coreografar

a partir daí e ver de novo como... ainda muito vinculado com as coisas que a gente fazia de balé, de jazz, nesse lugar, já pensando em como sair daí. Não dá para dar um grande salto né, impossível. (Ahmed, 2012).

Um novo início. A década de 1990 será fundamental para o nascimento de uma importante companhia contemporânea no mercado nacional, o Grupo Cena 11 Cia. de Dança de Florianópolis (SC). Junto com ela, ganha vida e solidez a carreira de Ahmed como diretor, coreógrafo e artista-pesquisador da dança. ―Pensar é agir‖, sentencia Ahmed (2012). Com constância e dedicação, o coreógrafo permanece obstinado em manter ativa a possibilidade de criar danças, desvendando outros pensamentos para um corpo-ambiente chamado Cena 11. Nesta história, que já soma cerca de 20 anos, a inquietação e o desassossego permanecem, tal qual um turbilhão a (re)começar. ―Pensar é destruir‖, escreveu Fernando Pessoa (1888-1935) (1986, p. 249). Não poderia a frase servir de mote para o grupo em pauta? É fato que Ahmed abdica de qualquer modo de conformação e preserva as qualidades de um grande artista: aquele insatisfeito, que nunca consegue. Como exímio líder, arrasta outros tantos parceiros para cada uma de suas aventuras. Não irei detalhar os tantos espetáculos e turnês realizadas, prêmios e reconhecimentos conquistados,

61 Refere-se ao duo Enquanto estou aqui... (1992), coreografia de sua autoria com música de

trabalhos acadêmicos, artigos e livro publicados a respeito do grupo62, pois neste ponto interessa observar os meios pelos quais se desenha uma possível corporeidade do Cena 11.

Percepção Física é a denominação do trabalho técnico de pesquisa autoral centrado no conhecimento do corpo e do movimento desenvolvido por Ahmed com o Cena 11. Quando o coreógrafo assumiu a direção do grupo, em 1993, iniciou uma investigação com o propósito de estabelecer uma metodologia de trabalho e de ensino própria. Instituiu um laboratório para experimentação e escolheu o termo Percepção Física para nomear modos de comportamento e de ação do corpo. O diretor adverte que o método não se configura como um modelo fechado com regras fixas, mas

[...] tem por prerrogativa ser mutável na sua estrutura. Acho que a necessidade de dança para o meu corpo ativou a necessidade de um corpo para minhas ideias. Assim, junto ao Cena 11, venho construindo maneiras de instaurar ideias no corpo que nos façam um grupo pela força das nossas diferenças, fragilidades e vigores. (Collaço; Ahmed, 2006, p. 104).

Dar forma a um trabalho técnico próprio significou abandonar um modo de dançar insuficiente e precário e, assim, beneficiar a concretização de um projeto criativo autoral. Ou seja, ganhar independência. Percepção Física expressa a identidade de Ahmed e do Cena 11, os quais constroem, dia após dia, uma solução tangível, rigorosa e disciplinada para conquistar a ―sua‖ dança. O sistema sublinha a maneira de aprender (como operar por meio de estímulos63) e estrutura-se em três elementos: percepção, adaptabilidade e controle. A investigação destes elementos surge em consonância às pesquisas de Ahmed sobre as ideias do psicólogo Frederic Burrhus Skinner e de neodarwinistas como Richard Dawkins, cujos debates sobre determinismo e estratégias adaptativas estimularam a pesquisa de um ―corpo sujeito-objeto‖ no Cena 11 (Collaço; Ahmed, 2006, p. 103).

Dançar para Ahmed

62 Ver site www.cena11.com.br; livro: Maíra Spanghero. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo:

Itaú Cultural, 2003; dissertação: ABRÃO, Elisa. O Corpo in'perfeito: Cena 11 e as relações entre arte, ciência e tecnologia. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Desportos. Departamento de Educação Física, 2007. São muitos os artigos e textos publicados a respeito do grupo, e algumas referências se encontram nesta tese.

[...] é estar em crise. Sou crítico já aos poucos minutos após ter encontrado algo que parece ser valioso naquele momento. Mas aprendi a perseverar na investigação para encontrar algo de valia no que me proponho. Entendendo que o meu gosto e desejo são fatores a mais e não objetivos nessa busca. A crise tornou-se um constante estado de pergunta no qual as respostas são construídas na prática da dança que está sendo questionada. (Collaço; Ahmed, 2006, p. 106).

Quando não está em turnê, a rotina do Cena 11 consiste em treinos e ensaios por cerca de cinco horas todos os dias, de segunda a sexta-feira. No papel simultâneo de professor e bailarino, o diretor da companhia orienta e realiza as próprias proposições de aula. Para ele, os estudos têm funções artísticas, e a pergunta sobre qual o objetivo estético da companhia é sempre atual.

A preparação traduz formulações presentes nos espetáculos do grupo e distancia-se de uma aula ―típica‖ de dança. Os bailarinos calçam tênis e botas. Não há música, e a sonorização vem da rua, invade o ambiente e alia-se ao silêncio e à respiração dos que habitam o espaço. As repetições dão-se somente em sequências que permitem alterações temporais e acomodam as necessidades e possibilidades físicas de cada corpo. Não existe cópia ou reprodução de poses nem um único modo de fazer. A ação ―correta‖ é o que o próprio corpo realiza no instante, com suas qualidades diferentes e singulares. O espaço da dança permanece como continuação e fragmento da realidade. Todos os espelhos são cobertos. O caminhar e correr integram a aula em diversas direções, posturas e velocidades. Não há uma frente exclusiva; cada um opta por seu lugar no espaço, sempre instável, móvel e inconstante. Tal estratégia busca gerar um estado de vigília no corpo.

O método visa afinar percepções do próprio corpo, do corpo do outro, da arquitetura do espaço, do ambiente com seus muitos elementos e da ocorrência de relações entre todos os aspectos citados. Hubert Godard (apud Menicacci, 2009, p. 104) afirma que ―a percepção é um gesto‖ e ―cada gesto inventa um corpo‖. No campo da psicologia o gesto perceptivo-motor diz respeito à capacidade do indivíduo de adaptar seus movimentos físicos à informação sensorial recebida.

A prática do Cena 11 acentua um modo particular de conhecer e decidir, além de solicitar e aguçar um estado de atenção e presença do corpo. A ideia é a de que quando um corpo percebe o meio ambiente, ele se altera

ativamente de maneira a obter a melhor interface possível. Ele cheira, saboreia, toca, ouve, vê, e atua a todo o momento para formular respostas adequadas ao que foi sentido. A percepção significa tanto atuar sobre o meio ambiente quanto receber sinais deste.

Os exercícios combinam alongamento muscular, arremesso das articulações, trabalho com apoios e pesos do corpo, sendo este submetido de forma rigorosa à força da gravidade. A busca de intensidade e maleabilidade no contato com o chão, a tentativa de anular qualquer tipo de tensão, a procura pelo controle e pela segurança do jeito de fazer operam para tornar o corpo confortável naquilo que faz. Problemas e restrições são apresentados (por exemplo, levantar do chão sem apoiar as mãos ou uma das pernas) a fim de ativar a inteligência e a sensibilidade do corpo.

Ao observar os bailarinos numa sequência de corridas e saltos, Ahmed (2010a) declara: ―O salto acontece, ele não é programado. O corpo não deve planejar‖. A abordagem orgânica da mente encarnada integra a proposição do coreógrafo. Damásio considera a interligação entre cérebro e corpo para apoiar uma compreensão na qual

[...] não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com um ambiente físico e social. (1996, p. 282).

Corpo e procedimento no grupo são entendidos à luz de processos coevolutivos, nos quais a ação do corpo depende sempre da sua estrutura na relação com o ambiente. Este constrói o corpo e vice-versa, simultaneamente. Assim, ambos – corpo e ambiente – são ativos o tempo todo (Greiner, 2008, p. 43). Alejandro enuncia:

O ato de adaptar-se pressupõe algumas questões que me interessam: equipamento inato (o corpo com suas predisposições genéticas e seu fenótipo), instrumentação adquirida (o conhecimento contraído através da experiência revelando estratégias para melhor sobreviver no ambiente em que este corpo está inserido em dado momento), propriedade do contexto (as características do ambiente com o qual este corpo se relaciona). (Collaço; Ahmed, 2006, p. 103).

O diretor explica que o treinamento não visa produzir passos de dança, mas alcançar um ―estado de adaptação ao que se está trabalhando‖. Ele opta por trabalhar com o medo, o risco, o ruído, enfim, com ―tudo o que é descontrolado e inevitável‖ e treina para administrar o controle (Ahmed, 2010b). Em um exercício de aula, propõe que todos formem um círculo e que individualmente cada bailarino vá ao centro e se movimente durante 1 minuto com base em um parâmetro (máquina, boneco, bicho e mímica). Requisita que não inventem uma história, porém criem um ―estado do corpo‖ e questiona: ―Como é o vocabulário da coisa?‖ (Ahmed, 2010a).

Atividades em dupla sugerem a busca de soluções interativas para o corpo em ação. Tarefas simples como puxar, derrubar e arrastar contemplam diferentes possibilidades criativas, sublinhando-se como experiências com vistas a estimular novas conexões. A aquisição da competência fundamenta-se na disposição ao fazer. Aristóteles explicava téchne como ―razão prática‖, quer dizer, o conhecimento amarrado à necessidade de um fazer dinâmico.

De acordo com Aristóteles, a arte, sendo um conhecimento de ordem prática e processual, é adquirida pelo exercício próprio da atividade. No terreno artístico, o fim não será plenamente conhecido até a consecução da forma. A finalidade emergirá conjuntamente com a matéria, por obra de uma intenção que não é causa final absoluta, mas probabilidade, pois só fazendo a coisa se poderá compreender plenamente o que se busca. (Nunes, 2009, p. 126).

―Quero falar do que me preocupa‖ (Ahmed, 2010b). Ahmed disserta sobre o envelhecimento do seu corpo e a crença de que é necessário ser jovem para dançar. Está interessado em corpos que façam do ruído uma construção de significados, corpos que envelhecem e encontram meios de agir pelo comportamento atual. O coreógrafo considera importante ―estar sempre atento à inteligência particular que cada corpo tem de resolver um problema a ele proposto‖ (Collaço; Ahmed, 2006, p. 104).

Ahmed tem preferência por um corpo que age de modo ―particular‖ e ―inteligente‖. Para o diretor do Cena 11, o corpo que dança não precisa necessariamente ser magro, longilíneo, esguio (padrão ideal difundido pela técnica da dança clássica). Cada corpo é um mundo singular de possibilidades e descobertas, pois conforme o diretor, no ―estereotipo do bailarino parece que na maioria das vezes o problema tem uma solução prévia a ser encontrada, ou seja, só

será solucionado se encontrarmos o corpo que se encaixe a esses preceitos propostos a priori‖ (Collaço; Ahmed, 2006, p. 104). Ahmed também distingue improvisação e adaptação. Ele afirma que a improvisação ―parece brincar com algo que já foi feito‖ e explica:

O conhecimento que proponho no procedimento da adaptabilidade não pode se institucionalizar, em algumas ações de improvisação os resultados formais parecem estar dados a priori, o corpo revela seu desejo de operar no ambiente e não seu modo de operar no ambiente. [...] a diferença é como dirigir as restrições para construir filtros para determinado objetivo. A improvisação pode servir sim para desvendar esses filtros, mas ao utilizá-los a adaptabilidade me interessa mais como design, ela não é um fim, mas o próprio design do movimento.64

A mera escolha do termo adaptação em detrimento a improvisação seria insuficiente para deixar de institucionalizar um fazer. Seria preciso ir além: alterar de modo efetivo a relação corpo-ambiente e testar variações para que possa ocorrer uma adaptação e, consequentemente, um novo modo de comportamento. As propostas adaptativas de Ahmed se encarregam de selecionar e formular uma dança produzida como design, quer dizer, um ajuste entre forma e função.

O elenco atual do Cena 11 acolhe além de atores - a exemplo de Marcos Klann,65 pessoas com formações diferenciadas do campo da dança. Duas bailarinas de grande destaque nas composições coreográficas do diretor - Aline Blasius e Mariana Romagnani, migraram da ginástica rítmica para o grupo. Curiosamente, antes de integrar o elenco no ano de 2007, Aline participou da Seleção Brasileira de Ginástica Rítmica Desportiva (2001). Ou seja, trata-se de um corpo virtuoso a beira da perfeição, treinado numa rotina intensiva de repetições que envolvem um grau alto de habilidade atlética: exercícios para ganhar força, flexibilidade, agilidade, coordenação, equilíbrio, destreza, resistência, adaptação rápida, poder de antecipação e, além de tudo, elegância. Aline e Mariana seriam os ―corpos ideais‖ para a dança proposta no Cena 11? O que um corpo deve saber e fazer para integrar o grupo? Qual deve ser a sua especialidade ou o seu modo de comportamento?

64 Ahmed, entrevista op. cit.

65 Formado em artes cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) com a

Vamos dizer que eu procuro um corpo com a ideia de corpo real. Qual seria o corpo real? O corpo real não significa que ele não trabalha com ficção, não significa que ele não trabalha com metáfora, pelo contrário, é um corpo que tenta encontrar dentro da sua existência e dos parâmetros que o fazem sentir vivo, e existindo, e enxergar o outro, um corpo que consegue, consegue não, pelo menos ou tenta, diariamente, a cada vez que ele se propõe a fazer isso, saber o que que é a realidade, qual é a verificação da realidade enquanto corpo, o que pode tornar esse corpo verdadeiro e a realidade verdadeira... Utilizando todos os outros recursos que você vai descobrindo, desvendando e desenvolvendo [...], enquanto pessoa que se define através do corpo que tem, que é a nossa interface para tudo. [...] Que corpo que eu procuro? Eu procuro esse corpo real, mas falar em corpo real pode ser presunçoso... tá, qual o corpo que não é real? Que que é a realidade neste sentido? A gente vai entrar num parâmetro filosófico muito vertical e pode ser muito bobo também, muito senso comum. (Ahmed, 2012).

Ao pensarmos no universo da dança contemporânea, nos deparamos com discursos de valorização das singularidades dos corpos dos intérpretes, cenas em que convivem corpos de formas diversas, a aproximação entre corpos treinados e não treinados, a prática de múltiplas técnicas (yoga, Feldenkrais, Alexander, Eutonia, Body Mind Centering, Bartenieff, Klauss Vianna, Beziers, Pilates, Axis Syllabus, artes marciais, capoeira, etc.). Essencialmente, enquanto o balé clássico de repertório trabalha com silhuetas similares em função da homogeneidade do corpo de baile, a dança contemporânea permite a convivência da diversidade: baixos, altos, gordos, magros, portadores de necessidades especiais, enfim, trata-se de um espaço em que corpos diferentes se unem para dançar. Porém, mesmo que a dança contemporânea se afaste de um discurso homogeneizante e do modelo de corpo perfeito, a produção atual ainda revela preponderantemente artistas moldados na magreza, força e agilidade física. Neste contexto, Jussara Belchior, uma das bailarinas do Cena 11, desvia-se da regra: tem formas arredondadas, biotipo gordo. Porém, sua condição física não a impede de realizar os mesmos exercícios e gestos executados por suas colegas de grupo. Mas, então, como se acomoda esta diferença? Como ela se impõe num treinamento coletivo? Permanece apenas na aparência? Ahmed diz que ao realizar uma audição para o ingresso de novos bailarinos, é muito mais fácil encontrar corpos magros, pois no meio da dança

[...] não se permite entrar outros corpos. A Jussara dança na companhia e ela é gordinha, e ela não passou na audição só porque ela é gordinha, ela passou na audição pelo o que ela faz com a realidade que o corpo dela tem e como ela produz com isso. Ela também é muito treinada. Só que ao mesmo tempo ela não alcança

as vezes esses outros níveis por um tipo de entendimento do próprio corpo, que talvez atrapalha inclusive ela, porque ela foi treinada a vida inteira para tentar dançar como os outros, para tentar dançar como uma pessoa magra [...] é difícil também você encontrar corpos assim, porque o próprio sistema não permite que eles cheguem até ali, sempre os coloca num outro lugar. Quantos bailarinos como a Jussara você vê dançando por aí, realmente? Em companhias que pagam para ela fazer isso de forma integral e que se dedicam a mantê-la trabalhando nesse sentido? Entendeu? Todo mundo fala, mas aonde tem? Não tem. Por quê? É um mérito dela ter continuado e é um mérito de companhias que nem a nossa de poder tentar criar teorias com isso, que as teorias não podem ficar no papel, elas tem que ir para as hipóteses, tem que ir para a prática e a prática é realmente botar alguém lá dentro que seja passível de conseguir isso. Agora, não é só botar porque ela é gorda [...]. Isso eu sou contra: botar ali só para criar uma imagem de que você é democrático, mas na verdade a pessoa está num canto ali fazendo. Não é isso. É tentar fazer produzir mesmo, e exigir tanto quanto dos outros mas da maneira que cada um pode, de alguma forma, produzir. (Ahmed, 2012).

A presença da diferença arrasta um problema paradoxal e reclama um tratamento de complexa dimensão estética e ética. De certo que não basta apenas a tolerância, que tende a ressaltar a superioridade de quem tolera; nem o respeito, que pode implicar a generalização das diferenças. A dança contemporânea pode se constituir como um lugar próprio para reinventar práticas, cutucar o dominante e defender a liberdade. Ahmed enfatiza que estimula a bailarina Jussara Belchior, e cada integrante do grupo, a dançar como si mesma. Critica o ideário igualitário e discursa sobre a responsabilidade de criação efetiva de oportunidades e experiências em que o corpo possa ser decifrado, desvelado e conhecido a cada dia. O coreógrafo deduz: