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1 O QUE É A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

1.3 Percepções Ilimitadas

O que é um acontecimento ideal? É uma singularidade. Ou melhor: é um conjunto de singularidades [...].30

Gilles Deleuze

Ao caráter eminentemente transitório da dança contemporânea acompanham processos físicos que alargam as possibilidades de sua produção e recepção, e marcam uma percepção que mira, sobretudo, a composição de uma experiência. Não se visa, então, uma interpretação, pois que essa ―se faz sempre em nome de alguma coisa que supõe estar faltando‖ (Deleuze, 1992, p.183). O acontecimento diz respeito a fenômenos ligados a multiplicidade (e não a unidade), processos que são devires e que, portanto, não se julgam por um resultado final, mas pela qualidade de seus percursos e pela potência de seu prolongamento. ―Não existem universais, mas apenas singularidades‖ (Deleuze, 1992, p.183). Deste ponto de vista, cada composição de dança contemporânea pode ser tomada como um conjunto de singularidades. E em tal contexto de produção do novo, para um espectador, o experimentar toma o lugar do interpretar. A interpretação resta apenas enquanto impasse que dificulta o desenvolvimento da dança como operação de multiplicidades.

A dança pode ser um modo de produção de pensamentos, na medida em que sua ação encarna mudanças de textura sensível ao vivo. ―Daí o poder de contágio e de transformação que é potencialmente portadora tal ação: é o mundo o que ela põe em obra, reconfigurando sua paisagem‖ (Pardo, 2011, p.286). O exercício da dança como pensamento é um modo distinto de conhecimento e reconfiguração do mundo. Mas quais os modos de relação capazes de aumentar a força de uma dança? Dentre esses modos, poderíamos pensar princípios para métodos de treinamento, procedimentos criativos e pesquisas, favoráveis a uma composição como acontecimento? Como uma dança se torna experiência de sensações?

Na etimologia da palavra experiência estão relacionados termos como tentativa, aventura, risco, passagem, transporte, perigo (Turner, 2005, p. 178). A dança contemporânea se sujeita à experiência, posto que vive numa zona de indeterminação e indiscernibilidade, impõe modos singulares de existência e inventa seus próprios afetos. Uma experiência é, quando se apresenta de modo desconcertante e interrompe comportamentos rotinizados e repetitivos, por isso inicia-se ―com choques de dor ou prazer. Tais choques são evocativos: eles invocam precedentes e semelhanças de um passado consciente ou inconsciente – porque o incomum tem suas tradições, assim como o comum‖ (Turner, 2005, p. 179).

A dança aqui compreendida como contemporânea tem vida na experiência e, sobretudo, existe no acontecimento. Está na ordem de um fazer que produz efeitos de estranhamento em relação ao familiar, da ação que gera deslocamentos, que suscita desvios, que provoca a percepção. A dança contemporânea enquanto acontecimento oferece uma experiência em que a vida é intensificada, é transformada num tempo e espaço que lhe são únicos. Arte suspensa, sem começo, meio e fim, num tempo em que passado, presente e futuro se atravessam. Pensar a dança contemporânea como experiência e acontecimento é tomar distância da reprodução de modelos. No lugar da imitação do conhecido, a intensificação de padrões até o limite de uma invenção. A permissão para que uma dança trame imprevistos a nos alcançar e transformar, em jogos intensos de completude e sentido que contrastam a insuficiência de qualquer tradução e explicação verbal. ―É

como uma passagem do finito ao infinito, mas também do território à

desterritorialização. É bem o momento do infinito: infinito infinitivamente variados‖. (Deleuze; Guattari, 2010, p. 213).

No texto O corpo dançante: um laboratório da percepção, a historiadora de dança Annie Suquet (2008) aborda diferentes experimentos a partir da virada do século XIX, enfatizando aqueles que modificaram radicalmente a percepção acerca do corpo, do movimento, do tempo e do espaço. A autora descreve efeitos resultantes de criações perturbadoras, dentre elas os espetáculos da bailarina americana Loie Fuller (1862-1928), cujas experimentações cênicas alteravam a percepção do tempo e do corpo em movimento. O corpo como ressonador foi testado por Fuller em danças que por vezes contrapunham a imobilidade do corpo

com jogos animados e velozes de imagens, cores e luzes. Assim, a bailarina questionava as propriedades do movimento do corpo e da luz.

Ainda de acordo com Suquet (2008), a ligação íntima entre percepção e mobilidade foi alvo da pesquisa do pedagogo suíço Èmile Jaques-Dalcroze (1869- 1950), que propôs a existência de um sexto sentido: o muscular, mais tarde conhecido como cinestesia. Por sua vez, o sentido do movimento ou cinestesia foi explorado pelo neurofisiologista Charles Scott Sherrington (1857-1952), que reuniu comportamentos perceptivos como os de ordem articular, muscular, visual e táctil no termo propriocepção, e indicou possibilidades de mobilidade entre o consciente e o inconsciente do corpo humano. Movimentos involuntários ou o corpo como revelador de dispositivos inconscientes passam a ser investigados por alguns criadores de dança, dentre eles a própria Loie Fuller que tomou a hipnose como pretexto para composição de um espetáculo. Nesta corrente de pesquisa, a ideia de um centro fisiológico e emocional propulsor de todo movimento foi explorada por Isadora Duncan (1877-1927), Martha Graham (1894-1991) e Mary Wigman (1886-1973).

A consciência do movimento como continuidade, num trânsito entre interior e exterior do corpo, associa-se ao fluxo de transformações da vida e produz diferentes manifestações dançantes. Suquet (2008) cita Rudolf Laban (1879-1958), que solicita ao bailarino o desenvolvimento de uma sabedoria para sentir, aprendizado que deve ocorrer tanto no nível biológico quanto cultural. Experiências perceptivas inéditas são provocadas por atividades extras (como passear numa montanha-russa), com a finalidade de suscitar outros comportamentos e resgatar o humano de um empobrecimento sensorial e emocional, promovido pela exigência de instantaneidade da vida moderna. Laban elabora um método de improvisação que solicita um estado de receptividade do corpo para criação, o bailarino deve aprender a perceber. A questão da memória corporal entra em debate, ativando a noção de que registros corporais são esculpidos nas fibras nervosas e definem nossas particularidades posturais. Com a compreensão de que movimento e emoção não se separam, a dança se liberta do compromisso de expressar qualquer interioridade psicológica.

Suquet (2008) cita também os experimentos de Merce Cunningham e Steve Paxton (1939). Para Cunningham o movimento é uma questão de percepção e

sendo assim, descobrir novas potencialidades cinéticas compreende subverter a esfera perceptiva. Recorrendo, principalmente, ao I Ching ou Livro das Mutações da filosofia chinesa, o coreógrafo amplificou as possibilidades motoras então limitadas pelo sistema nervoso para controlar estruturas complexas.31 Tal estratégia compositiva alcançou novas conexões e maior flexibilidade do corpo no seu pensar em ação. Paxton criou uma forma perceptiva de dança baseada no tato, numa contínua troca de peso entre corpos: o contato-improvisação. Submetido a um diálogo de forças gravitacionais, o bailarino desenvolve comportamentos adaptativos e reflexos ligados a mecanismos de sobrevivência. A emergência do movimento nasce somente num contexto de relações. O contato-improvisação

[...] faz parte das formas de dança que, no século XX, reiventariam de maneira mais profunda a esfera perceptiva. Nessa dança do tato, o maior dos órgãos do corpo, que é a pele, desenvolve uma extrema sensibilidade que não tem nada de superficial. Não só os captores tácteis distribuídos sob o nosso envoltório cutâneo informam o cérebro sobre o estado do peso, da massa, da pressão e do esforço, mas podem, se necessário, funcionar como uma alternativa da visão [...]. Nenhuma dança neste século nega mais radicalmente a precedência cultural do olhar. (Suquet, 2008, p. 536).

O movimento na dança-contato emerge sempre num modo específico: processo, ações que se atam e desatam num decorrer que não antecipa o que virá. Neste caso, a experiência não é resultado final de um procedimento criativo, mas é a própria criação em andamento. Mas se por um lado o contato-improvisação incita os dançarinos à experiência, o que dizer dos espectadores? Como também conduzi-los à experiência? Como os movimentos dos bailarinos poderão encontrar ressonância no corpo do espectador?

No processo de aquisição de conhecimento corpo, mente e ambiente são correlacionados. Tal conexão envolve a percepção e simultâneas modificações

31 As decisões coreográficas de Cunningham não eram baseadas na intuição, gosto ou instinto, mas

na utilização de inúmeros jogos (lançamento de dados e moedas, cartas), úteis para definir variáveis como sequência, duração e direção dos movimentos. Dentre os vários métodos, o uso dos hexagramas do I Ching é considerado o mais importante para o coreógrafo. Não era, no entanto, usado em seu modo convencional - recurso para adivinhação, mas como metodologia de composição aberta ao imprevisto e caótico. Em 1989, Cunningham iniciou os experimentos com o programa de computador LifeForms e passou a utilizá-lo como ferramenta para compor dança. Para Cunningham, o acaso firma-se como recurso e garantia de liberdade criativa (Copeland, 2004).

(afecções32) do próprio corpo, numa relação dinâmica entre o dentro e o fora. O conceito de afeto é formulado pelo filósofo holandês Bento de Espinosa (1632-1677) como as afecções do corpo, pelas quais a potência de ação desse corpo são aumentadas ou diminuídas, favorecidas ou constrangidas.33 Ou seja, o afeto é uma variação contínua da força de existir e poder de ação de um corpo, modificação que é determinada por suas ideias.34 O autor valoriza o poder do corpo em afetar e ser afetado:

Aquilo que dispõe o Corpo humano de tal maneira que possa ser afectado de diversos modos ou que o torna apto a afectar os corpos externos de um número maior de modos é útil ao homem; e é-lhe tanto mais útil, quanto o Corpo se tornar por essa coisa mais apto a ser afectado de mais maneiras ou a afectar os outros corpos; e pelo contrário, é-lhe prejudicial aquilo que torna o Corpo menos apto para isto. (Espinosa, 1992, p. 396).

Ao desenvolver as proposições de Espinosa, Deleuze e Guattari reafirmam a constituição de um afeto por uma transição vivida: chamam percepção a ―um estado do corpo enquanto induzido por outro corpo‖, e afecção, ―a passagem deste estado a um outro, como aumento ou diminuição do potencial-potência, sob a ação de outros corpos: nenhum é passivo, mas tudo é interação, mesmo o peso‖ (2010, p. 183). É então sob a perspectiva do encontro que o termo afecção é compreendido nesta tese: a transformação de um corpo em relação com outros, pois num processo de afetação os corpos interagem e quando um corpo se afeta se modifica para sempre (Nunes, 2009, p. 109).

A bailarina e coreógrafa Erika Rosendo diz que gostaria que ―ninguém saísse pesado‖ após seus espetáculos. Deseja, sobretudo, que as pessoas se surpreendam positivamente e que

[...] saiam leves, que tenham algo que foi acrescentado para elas, na vida delas. Alguma coisa que ela viu em cena e que chamou muito atenção para ela, que ela achou bonito, que ela encontrou beleza e que ela encontre essa beleza nela também. [...] a intenção de surpreender é sempre de modo muito positivo, sempre. E a palavra mesmo é leve, que as pessoas saíam leves, mais alegres por causa

32 Afecção do latim afficere ad actio indica onde o sujeito se fixa e se liga; emprega-se para as ações

de afetar, tocar, comover, unir, produzir impressão, operar, agir. Afecção e afeto designam um conjunto de relações de estados, disposições e vontades; abarcam a potência de ação de um corpo.

33

Sempre que a palavra ―afeto" é empregada nesta tese, refere-se ao affectus de Espinosa. No livro

Ética, o filósofo usa os termos em latim affectio e affectus, os quais são traduzidos para o português

como afecção e afeto, respectivamente.

do encontro. Tem uma frase da Madre Teresa de Calcutá que eu acho fantástica, fala assim: ―Não devemos permitir que alguém saia da nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz‖. É basicamente isso. Que as pessoas por onde a gente passa, o lugar por onde a gente passa, que a gente consiga deixar essa tranquilidade, essa paz. Porque a gente sabe que tem muitos lugares que a gente vai que tem um clima tenso, pesado, depois de uma peça você sai acabada... Ou dependendo do espetáculo sai arrasada. Tudo bem, você se sente tocada, mas eu acho que não gostaria de fazer isso, eu queria despertar alegrias e levezas. (Rosendo, 2012).

Ao falar sobre como deseja afetar o público em seus trabalhos, Alejandro Ahmed diz que se interessa muito por algo que ele nomeia de ―vetor emocional‖. Ele explica:

Como se a coreografia fosse um conjunto de vetores emocionais. Pensar nos vetores, como essas flechas de força... e que elas sejam condutores de raciocínios emocionais e que teu corpo navegue dentro disso, e que dentro disso tu possas de alguma forma sentir a coreografia. [...] Eu acho que o que eu me preocupo no afeto agora é este aspecto afetação emocional, no sentido de que tudo que a gente faz, de alguma forma, razoavelmente e emocionalmente, passa por aí, por esses vetores. (Ahmed, 2012).

Se considerarmos um vetor como um condutor, podemos dizer que a dança de Eduardo Fukushima busca uma relação corpo a corpo, em que o movimento de um reflete ou vibra no do outro, como uma contaminação imediata entre corpo que dança e corpo que assiste dança:

Eu busco algo que bate no corpo das pessoas, que não dê muito tempo para racionalizar, digamos, é uma dança que não bate muito nas coisas da ideia, mas sim mais uma experiência compartilhada. Talvez uma dança cinestésica, não sei, que bate diretamente na sensação, no corpo, do que no mundo das ideias. Não busco que as pessoas olhem como se fosse uma história, mas sim como se fosse um manifesto de um corpo lá, que está lá experenciando ao vivo. (Fukushima, 2012).

Fukushima afasta o desejo de que o público saia de seu espetáculo procurando explicações e conceitos para sua dança: ―[...] ‗o que que ele quer dizer com isso?‘, ‗o que que ele quer dizer com aquilo?‘ Acho que eu não procuro isso, entendeu? Tudo que está lá... não têm muitas coisas por trás [...] que não esteja lá, está tudo ali, não tem muito mais, sabe?‖ (2012). De modo diverso, Micheline Torres revela pretender afetar as pessoas da plateia por meio de uma comunicação mais ligada a reflexão. Seu intento é o de provocar pensamentos e falas, algo que provenha de

[...] alguma ordem de comunicação, que eu digo, é de diálogo, ou dela com ela mesma, ou ela fala assim: ‗não entendi nada‘, ‗não me afetou em nada‘, ‗não sei para que serve isso‘; ou: ‗ai, isso é ruim‘; ou: ‗ai, isso é bom‘, ‗isso é dança‘, ‗não é dança‘, ‗isso é performance‘, ‗não, isso é teatro‘... algum tipo de diálogo, que seja interno, que seja com uma pessoa no boteco depois... [...] Tenho vontade de afetar nesse lugar, de diálogo, de relação. (Torres, 2012).

Ao mesmo tempo, Torres revela que seu trabalho coreográfico Carne (2007) costuma provoca fortes reações no público, tais como apreensão, angústia e nojo. Ela fala sobre seu impacto no público:

Eu acho que o Carne tem uma coisa que você faz assim [faz um gesto de repulsa]. [...] Mas se você passa por isso e você vai vendo... ele tem não só uma transformação do corpo, porque vai suando, porque vai brilhando, eu acho que tem humor também quando a coisa fica muito esdrúxula. [...] é uma beleza monstruosa. Mas tem pessoas que falam: ‗olha, não consegui ver‘. Eu fiz aqui no Oi Futuro num evento chamado A teatralidade do humano35, foi bem legal, tinha a Rosiska Darcy de Oliveira falando, a Marisa Naspolini e a Márcia Tiburi36. Depois a Márcia Tiburi escreveu um texto lindo37. E

ela falou para mim no final: ‗eu estava assim: eu vou embora, não vou embora, eu vou embora, não vou embora...‘ E ela foi ficando e foi se deixando passar por aquele momento e foram vindo outras coisas [...]. (Torres, 2012).

A dança contemporânea como ―bloco de sensações‖ conserva-se a si mesma como percepto e afeto: produz sensações exclusivas, faz passar de um estado a outro, desencadeia estranhos devires (Deleuze; Guattari, 2010, p. 193-200). É necessário ter claro que perceptos não são percepções, mas sensações e conexões que permanecem naqueles que os vivenciam; e afetos não são sentimentos, mas devires que transformam aquele que passa por eles (Deleuze, 1992, p. 171). Pensar num conceito de dança contemporânea implica verificar a ação de corpos em relação, que se compõe num território de fronteiras, de afetações mútuas e diversificadas. A ideia de afecção pode ser útil ao objetivo de desvendar teatralidades contemporâneas na dança, pois os dois enunciados (afecção e

35 O projeto A Teatralidade do Humano reúne ciclos de debates, espetáculos, performances e

intervenções artísticas com curadoria e coordenação da jornalista Ana Lúcia Pardo. Torres participou da segunda edição do evento no Rio de Janeiro em 2010: A Teatralidade do Humano II

Subjetividades e Políticas da Cena e do Mundo. Estas e outras informações podem ser encontradas no site www.ateatralidadedohumano.com.br. Acesso em: 20 mar. 2012. Nota da autora.

36 Rosiska Darcy de Oliveira é escritora e jornalista; Marisa Naspolini é atriz, diretora, produtora,

professora e doutoranda em Teatro (UDESC); Marcia Tiburi é professora e doutora em filosofia. Nota da autora.

37 Refere-se ao texto No tempo do culto ao corpo, quando ficamos nus? publicado no site da Revista

Cult. Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/10/nudez. Acesso em: 20 mar. 2012. Nota da autora.

teatralidade) compartilham da existência de um efeito gerado na mistura de um corpo com outro diferente. Seguindo o pensamento de Espinosa (1992), investiga-se aqui do que uma dança é capaz, qual a sua potência.