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4 COMPONENTE: TEATRALIDADE

4.2 Textos em Comum

A mediação da imagem não permite a identidade. Duas pessoas que veem o mesmo objeto acabam vendo-o diferente. O ato sensorial não se realiza in vitro, mas na complexidade de um mundo de imagens filtradas pelo prisma da sensibilidade. Por isso, não há dois homens que vejam igual, não só o mesmo quadro, mas uma paisagem, um objeto qualquer.92

Armindo Trevisan

Em seu livro O teatro é necessário?, Denis Guénoun afirma que o teatro não se restringe a uma atividade, mas a duas ações indissociáveis: fazer e ver (2004, p. 14). Sua hipótese é que o teatro só existe a partir da simultaneidade entre ambas. Lehmann compactua de suposição semelhante ao escrever que

Teatro significa um tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos no ar que respiram juntos daquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente a frente. A emissão e recepção dos signos e sinais ocorrem ao mesmo tempo. A representação teatral faz surgir a partir do comportamento no palco e na plateia um texto em comum [...]. Desse modo, uma descrição pertinente do teatro está ligada à leitura desses textos em comum. [...] a situação do teatro constitui uma totalidade de processos comunicativos evidentes e ocultos. (2007, p. 18).

―Textos em comum‖ ou teatralidades. A indicação do comum diz respeito ao que Rancière elabora como ―partilha do sensível‖, ou seja, o comum não é algo dado a priori, mas construído. Trata-se de um espaço produtivo que não descreve um plano de igualdade, homogeneidade, unidade e identidade, ao contrário, tem como condição a pluralidade e a fragmentação. O comum é constituído no encontro de

singularidades, as quais compartilham as próprias diferenças e colocam em comum algo que antes não era. Nas palavras de Rancière:

A ―partilha do sensível‖ designa o sistema de evidências sensíveis que dá a ver, em simultâneo, a existência de um comum e os recortes que definem, no seio desse comum, os lugares e as partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, simultaneamente, o comum partilhado e as partes exclusivas. (2010b, p. 13).

Tal interface tem dimensão política, pois convoca à experiência de transformação, de participação na confecção do sensível e produção de sistemas específicos de afetabilidade. Como criador, Ahmed exalta a possibilidade do compartilhar dada pela dança e questiona o significado de estar diante do outro:

Então a arte da presença apesar de tudo o que está ali se pretender como ficção, todo o contexto é um contexto real, que acontece no tempo do agora e na presença dos dois - do espectador e do artista. E tirando proveito dessa relação básica e óbvia que a gente às vezes não percebe, de que estou aqui às 21 horas e você está aqui às 21 horas, no mesmo lugar que eu, tentando se comunicar de alguma forma, ou se disponibilizando para uma comunicação, isso já é acho que a grande força da arte da presença hoje, num mundo onde a gente pode estar com uma pessoa que está... sei lá na China ao mesmo tempo no skype, no iphone, aonde for... Então quando ela está realmente na minha frente, qual é essa diferença? Qual é o valor disso? Qual é o poder que isso tem, de eu ter um corpo que está a distância do meu braço diretamente, entendeu? Ou a distância de alguns passos ou por aí. (2012).

A partilha do sensível equivale à partilha do jogo. É neste sentido que a dança contemporânea determina um espaço-tempo compartilhado e articulador da produção e do olhar. Se a teatralidade nasce de um exercício dinâmico no campo perceptivo, ou seja, se instaura num jogo entre obra e espectador, é neste plano relacional que se experimentará uma realidade outra. Mas como o espectador vivencia uma obra de dança contemporânea? Que tipo de olhar é convocado pela cena? Certamente o jogo da dança contemporânea ocorre num campo que possui leis e regras diferentes daquelas do cotidiano. Resta aprender a jogar e, indo mais longe, tentar descrever o jogo.

Guénoun (2004) ressalta que o jogo, do ponto de vista da cena, é interessante exatamente por conta da singularidade de seu campo e de suas normas. Neste sentido, o teatro se mostra como necessidade prática dos homens de jogar. Ao longo de seu livro, o autor argumenta sobre a necessidade do teatro na

vida dos homens. Num dado momento, explica que com o advento do cinema, os heróis do teatro se refugiaram nas imagens. Assim, os espectadores de hoje não vão mais ao teatro em busca de personagens ou histórias (para tal, podem ir ao cinema, assistir um DVD ou ler um livro), mas vão ao teatro para ver um espetáculo, ou seja, ver uma operação própria de teatralidade (o jogo). Seu interesse são as práticas da cena enquanto práticas, quer dizer, desejam ver como fazem aqueles que se apresentam. Vão ao encontro de uma encenação, de uma operação de exibição autônoma. Argumenta que as escritas cênicas contemporâneas efetivam uma lógica peculiar de jogo dotada de rigor da existência da cena, o que equivale a dizer que

[....] o primeiro requisito do jogo provém da apresentação do corpo. Não da representação pelo corpo de alguma coisa da qual o corpo seria a figuração, mas da exibição do próprio corpo. Ora, esta mostração pretende alcançar uma verdade que não é a da adequação a uma imagem, mas a da integridade de uma presença. [...] Trata-se então de elaborar uma verdade física. (Guénoun, 2004, p. 133).

Para o autor os métodos são variados e têm exigência apresentativa (e não representativa), o jogo é procurado como exibição íntegra (inteira) e honesta (ética e técnica juntas). A dança seria um recurso potente para testar a precisão cênica do movimento, liberto do mimetismo. E cada elemento posto em cena - cenário, figurino, luz, som, vídeo, entre outros – funcionaria como mais um elemento de diálogo (Guénoun, 2004). Na esteira destas colocações, uma pluralidade de enunciadores é posta em relação por meio de processos que ativam a produção de diferentes poéticas cênicas.

Para Féral (2003, p. 28), a polifonia enunciativa é um princípio da teatralidade, o que nos lembra a impossibilidade de existir um único significado no texto da dança, mas, ao invés disso, a presença de intertextualidade. De maneira intencional os criadores contemporâneos desestruturam os moldes da recepção, levantando a necessidade de problematizar e mudar a perspectiva do observador, de modo a torná-la apropriada aos fenômenos cênicos. Em um campo onde não há um único centro, um olhar totalizador em busca da compreensão torna-se falível e parcial, se contradiz, falha, retorna, vibra, torna-se experiência (Lehmann, 2008). A interatividade aparece como condição de fruição na contemporaneidade, onde a

cena não tem a dizer, mas a mostrar. Uma exibição que corre para alcançar o sensível e gerar uma nova percepção, nada uniforme.

Quando uma obra de arte recorre à sugestão do espectador para sua elaboração, pode ocorrer que ao invés do reconhecimento e da troca, implante-se a desilusão, a insegurança, a solidão e o silêncio. As percepções individuais isolariam os espectadores e impediriam a pergunta e o diálogo com ou sobre as obras. A falta de referências do espectador, recluso na impossibilidade de encontrar nexos nos discursos da obra, tem efeito perturbador. Neste caso, pode-se retornar a um comportamento meramente contemplativo.

A necessidade do olhar teatral é, tanto quanto a do fazer, necessidade do jogo. [...] O olhar sobre o jogo, por não ser nem olhar cognitivo nem investimento imaginário, se articula aos jogos possíveis que cada um ativa para si. [...] os que olham não vão ao teatro. Porque o teatro é regido e pensado segundo pressupostos e ritos que são os da época da representação. Ou então vão muito pouco: ali não há lugar pra eles. (Guénoun, 2004, p. 150).

Dedicada à prática do experimento e disposta a correr riscos (portanto vulnerável também ao fracasso), uma dança contemporânea firma-se como ponto de encontro provocador de novos modos de percepção. Do corpo que enuncia ao corpo que observa. E vice-versa. O caráter heterogêneo, paradoxal e distorcido pertence à contemporaneidade, que solicita uma renovação acerca das perspectivas da recepção. Neste contexto, a sinestesia aparece como traço marcante de suas propostas cênicas. Lehmann explica que

O aparato sensorial humano dificilmente suporta a falta de referência. Privado de seus nexos, ele procura referências próprias, torna-se ―ativo‖, fantasia ―descontroladamente‖, e o que lhe ocorre então são semelhanças, conexões, correspondências, mesmo as mais remotas. O rastreamento de conexões anda junto com a desamparada concentração da percepção nas coisas que se oferecem. [...] A sinestesia imanente ao acontecimento cênico, [...] não mais consiste em um elemento implícito do teatro como obra de encenação oferecida à contemplação, mas em uma oferta explícita da atividade no teatro como processo de comunicação. (2007, p. 141).

Esta percepção sinestésica é ainda produzida pela estruturação não- hierárquica dos elementos compositivos e a simultaneidade, capazes de sobrecarregar o aparato perceptivo. Como não há possibilidade de apreender tudo que se oferece num mesmo instante, a percepção é fragmentada e cabe ao

espectador escolher e acompanhar não a totalidade do espetáculo, mas aquilo que ele mesmo selecionou. Sua liberdade tem cunho excludente e limitado (Lehmann, 2007, p. 147). Berthoz afirma que a percepção é ativa, pois perceber implica selecionar e coordenar um repertório de ações possíveis e um conjunto de informações disponíveis. ―De fato, decidir é vincular o presente ao passado e ao futuro, é ordenar‖ (Berthoz, 2003, p. 10).

A dança contemporânea derruba paradigmas e se instaura como situação instável e provocativa, atuação em processo (e não como produto pronto e finalizado). Contrariando as tradições, solicita uma percepção flutuante e encoraja a percepção por outras vias sensoriais. ―Uma poética da compreensão é substituída por uma poética da atenção que armazena o estímulo e o mantém na pré- consciência; que lhe possibilita uma inscrição efêmera no aparelho perceptivo sem permitir que ele se dissipe num ato de compreensão: um rastro de memória ao invés de consciência, a compreensão fica adiada‖ (Cohen, 2006, p. 143; 146).

Neste contexto, a percepção é sempre tomada como algo particular, sempre ―em relação a‖. Pois a significação da dança ocorre tanto no corpo daquele que faz, quanto no corpo daquele que observa. Godard explica que

O movimento do outro coloca em jogo a experiência de movimento própria ao observador: a informação visual provoca no espectador uma experiência cinestésica (sensações internas dos movimentos de seu próprio corpo) imediata. As modificações e as intensidades do espaço corporal do dançarino vão encontrar ressonância no corpo do espectador. O visível e o cinestésico, absolutamente indissociáveis, farão com que a produção de sentido no momento de um acontecimento visual não deixe intacto o estado do corpo do observador: o que vejo produz o que sinto e, reciprocamente, meu estado corporal interfere, sem que eu me dê conta, na interpretação daquilo que vejo. (2001, p. 24).

Cada dança proposta na cena como jogo pede o interesse das partes em jogar. E implica o uso de estratégias, quer dizer, procedimentos compositivos, os quais promovem a emergência de teatralidades.