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A ÉTICA E A POLÍTICA

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 63-65)

ARISTÓTELES

A ÉTICA E A POLÍTICA

A mesma ambivalência afeta a ética de Aristóteles, conforme já tivemos oportunidade de notar, mas com complicações adicionais, porquanto ele insiste em que o homem é um animal político. Nessa medida, a ética faz parte da política. A posição oficial de Aristóteles a respeito desses assuntos é que eles constituem ciências práticas, não teóricas, da mesma forma que a Poética e a Retórica referem-se a ciências produtivas. A ciência prática não é uma ciência teórica sobre a prática, mas a arte da prática, da mesma maneira que uma ciência produtiva não é uma ciência teórica sobre a produção de obras de arte ou discursos, mas a arte de produzi-los. Não obstante, se queremos adquirir a arte de produzir coisas desse tipo, precisamos de conhecimento de certos elementos básicos. Por isso, a Retórica contém um volume considerável de dados sobre as várias emoções (algo que brilha quase pela ausência no De Anima), uma vez que a retórica interessa-se profundamente por explorar as emoções. Analogamente, a Poética contém alguns diagnósticos sobre o papel e forma de tragédias e comédias, incluindo a conhecida descrição do papel da tragédia como produzindo catharsis de piedade e medo. Mas o objetivo geral continua a ser prático no sentido o mais amplo possível.

O mesmo é verdade, em teoria, a respeito da Ética a Nicômaco (que em geral é considerado o principal trabalho de Aristóteles sobre ética, embora alguns prefiram a Ética eudemiana). Começa Aristóteles dizendo que todas as ações são empreendidas com o objetivo de realizar algum bem e passa a estudar se há algum bem que seja desejado por si mesmo e não por qualquer outro bem. Passa em revista várias opiniões sobre o assunto e conclui que há acordo geral sobre o fim da vida, mesmo que pessoas discordem sobre aquilo em que ela consiste. É a eudaimonia, geralmente traduzida como “felicidade”, o que é uma boa tradução enquanto se compreender que a felicidade que ele tem em vista é a ligada à vida completa. Eudaimonia significa literalmente “ter um bom daimon, um bom espírito guardião”, ser bem dotado ou, poderíamos dizer, abençoado. Realisticamente, ele observa que isto implica possuir pelo menos um mínimo de bens materiais. Após algum estudo crítico de outras opiniões sobre o assunto, incluindo as de Platão, ele procura elucidar a idéia via análise da função de homem. A eudaimonia está corretamente associada à realização, ou concretização, devida dessa função – ao, poderíamos dizer, florescimento humano. Isto alude à noção de função do homem que tem sido muito criticada por aqueles que desejam reservar a função para objetos feitos pelo homem que são projetados com uma função, ou para partes de sistemas teleológicos, tal como o coração no sistema vascular do organismo. Não está claro se, ao falar de uma

função humana, ele com isto a elimina; a idéia, de qualquer modo, não é original. Platão usou-a a respeito da justiça no A República.

Aristóteles passa a definir o bem para o homem – a eudaimonia a que os homens visam – como a atividade da alma de acordo com a excelência (a melhor forma de vida, poderíamos talvez dizer). A palavra aqui traduzida como “excelência” é arete, a qualidade que tanto interessava Sócrates. Se a traduzimos como “virtude” corremos o risco, como aconteceu com Sócrates, de dar a questão como respondida. Entendemos por “virtude moral” o tipo de excelência de que falava Aristóteles? Teria ele mesmo entendido por “excelência” a virtude moral? A dificuldade para responder a essas perguntas surge da falta de certeza sobre o que realmente é moralidade. No tocante a certas concepções de moralidade, há pouco dela no que Aristóteles tem a dizer. Ele apenas diz claramente que há essa boa vida em algum sentido dessas palavras e que um homem é considerado eudaimon, feliz, na medida em que a atinge. Se perguntamos o que devemos procurar como padrão de bem, ele deixa claro que nada do tipo que Platão tem a oferecer servirá. Realmente, em um trabalho anterior, Protrepticus, escrito como uma espécie de manifesto para a Academia, mas que sobreviveu apenas em fragmentos, ele pergunta diretamente que padrão desse tipo temos, salvo o que é fornecido pelo homem praticamente sábio. Para conseguir a boa vida, precisamos de caráter reto, algo que Aristóteles acredita que seja produzido por treinamento, mas também de sabedoria prática, que em geral se pode obter pela aprendizagem. Daí porque, quando após certo volume de psicologia moral e estudo da deliberação e da opção, ele passa a considerações práticas sobre a boa vida, define a virtude como um meio-termo entre extremos no tocante a paixões e ações. É um meio-termo relativo, contudo, e a ser determinado apenas por um homem dotado de sabedoria prática. Esta doutrina de meio-termo provocou abundantes comentários críticos. Aristóteles chega a ela por analogia com o que prevalece em várias artes, achando que evitar extremos é característica de sucesso nas mesmas. Mas, por trás dessas considerações, encontra-se sem dúvida o tradicional costume grego de pensar sobre opostos e a ênfase na medida e proporção, que vimos também nos pré-socráticos como em Platão. O que quer que pensemos disso – e Aristóteles desce a detalhes consideráveis em relação a várias virtudes comumente aceitas -, a obtenção do meio-termo, é importante notar, pressupõe tanto o estado certo de caráter obtido através de treinamento, como a virtude intelectual da sabedoria prática, que só o ensino pode fornecer. Esse ensino não tomará, nem poderá tomar, a forma de demonstração, como pode ser possíve l em algumas ciências teóricas. Temos que recorrer a exemplos e às intuições morais que talvez ocorram a pessoas, mas que não ocorrerão se elas não possuírem o caráter certo e experiência de vida. Por isso mesmo, diz Aristóteles, a ética não é assunto para jovens, cuja experiência de vida é insuficiente. Essa alegação mostra como são práticos os interesses de Aristóteles.

Mais ou menos sistematicamente, ele analisa as várias virtudes e dedica um livro à justiça, que não se ajusta inteiramente ao contexto das demais virtudes. Neste particular, observa que, em um sentido, “justiça” é equivalente ao “todo da virtude”. Este é talvez o sentido que interessava a Platão. Aristóteles, porém, reconhece que há outro sentido de justiça, aquele em que estamos interessados em eqüidade. O Ética a Nicômaco contém muito mais. Há um capítulo sobre virtudes intelectuais, cuja importância para as nossas finalidades presentes reside na descrição que ele nos dá do intelecto prático, ou sabedoria. Examina também a akrasia, ou o fracasso, o ficar aquém daquilo que sabemos que se espera de nós. Neste particular, Aristóteles começa manifestando perplexidade com a alegação de Sócrates de que não há realmente tal coisa, embora termine com uma solução notavelmente socrática do problema.

Em duas discussões sobre o prazer e seu papel na vida moral, sua concepção de prazer como atividade revela grande analogia com o que descreve como eudaimonia. Da mesma maneira que a eudaimonia é um aspecto de uma vida inteira, o prazer não é apenas um estado transitório, mas um aspecto de um curso inteiro de ação ou atividade. Discorre longamente sobre a amizade e o papel que ela tem na boa vida. Finalmente, volta ao bem para o homem e, surpreendendo- nos um pouco, descobrimos que ele defende a reivindicação da contemplação filosófica a esse título. Isto acontece porque pensa que o que é específico ao homem é o intelecto e que aquilo em que, no fim, deve consistir a excelência humana, é a virtude do intelecto. Na busca disso, aproximamo-nos o mais possível do divino. O bem para o homem de que nos ocupamos antes é um bem que pressupõe desejo e os vários estados que apenas o corpo torna possíveis. Aristóteles reconhece tudo isso, mas, no fim, sente atração para o que considera a atividade mais assemelhada à divindade em nós – a razão e suas manifestações mais altas na filosofia.

Tudo isso parece estar a quilômetros de distância do homem como animal político, e de fato está, embora, nas páginas finais do Ética a Nicômaco dê indicações nessa direção e nos remeta ao Política. Mas essa obra (se é uma obra única, isolada) é rigorosamente prática. Há nela algumas análises das várias formas de instituições políticas, incluindo, para desapontamento de muitos, a instituição da escravatura. Ele analisa igualmente várias formas de Constituição e discute, seguindo o exemplo de Platão, o que seria o Estado ideal. Grande parte da discussão, porém, concentra-se em questões práticas de governo, incluindo um tratamento algo maquiavélico das revoluções, e a maneira de evitá-las e reprimi- las. De modo geral, o A Política é talvez muito mais obviamente um trabalho em ciência prática do que o Ética a Nicômaco.

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 63-65)