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O “A REPÚBLICA”

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 42-46)

PLATÃO INTRODUÇÃO

O “A REPÚBLICA”

Estudamos com alguns detalhes esses dois diálogos porque neles é exposta a opinião platônica madura. De agora em diante, seremos menos detalhados. De qualquer modo, o A República é um diálogo em que, de algumas maneiras, o tema geral assume mais importância que os detalhes. Os seus livros intermediários (V-VII), porém, contêm os fundamentos epistemológicos e metafísicos de uma teoria de educação que se supõe revestir-se de importância moral e política. Eles surgem, no fim do livro V, com uma distinção entre conhecimento e crença que tem sido muito discutida. São seguidos por três símiles – as do Sol, da Linha e da Caverna – que têm o objetivo de esclarecer um tema de educação para os Guardiões de um Estado ideal, que é por seu turno descrito com alguns detalhes. É digno de nota que a distinção entre conhecimento e crença parece reservar o primeiro para as Formas, de modo que só temos crença em coisas sensíveis. Significa isto, por outro lado, que não há possibilidade de transformar crença em conhecimento, como sugeriu o Mênon. Temos

simplesmente que substituir crença por conhecimento e o esquema de educação reflete esse fato.

Conforme veremos que mostra a símile da Caverna, a educação é interpretada como um processo de obtenção progressiva de novas introvisões, o reconhecimento de uma realidade da qual o homem comum não tem conhecimento. A mudança em relação ao Mênon ocorre, acreditamos, porque a metafísica do Fédon contaminou a epistemologia. Platão acredita que o conhecimento é reservado às Formas, porque a Forma F não pode ser outra que

F. Pensa, em conseqüência, que não podemos nos enganar a respeito da Forma, e

o conhecimento tem a impossibilidade de erro como sua precondição. O erro é possível no caso das coisas sensíveis, de modo que não podemos ter conhecimento das mesmas. Mas a concepção de conhecimento como implicando a impossibilidade de erro, e a crença da incapacidade da Forma de ser outra coisa do que é, tornando o erro em seu caso impossível, são equivocadas. Estes erros, no entanto, são essenciais à conclusão a que chega Platão.

O restante do A República envolve o núcleo de sua filosofia política, embora parte do mesmo terreno seja explorado de uma maneira mais austera, mais monótona e mais pessimista no As Leis. O A República é aparentemente sobre justiça e o Livro I constitui em si um diálogo tipicamente socrático. Trata principalmente de um debate entre Sócrates e um sofista, Trasímaco, que nega as convenções tradicionais de justiça, tais como a obediência às leis, sobre o fundamento de que elas são elaboradas apenas no interesse do mais forte. Muito melhor é agir no próprio interesse. O tema principal do diálogo inicia-se no Livro II, quando Glauco e Ademinanto, os principais protagonistas, exigem que Sócrates demonstre que a justiça é uma boa coisa tanto em si mesma quanto por suas conseqüências, e mostram a justiça como escolhida apenas como segunda melhor alternativa e de tal modo que a reputação da justiça vale mais do que sua realidade. Por “em si mesma”, dizem eles, entendem “em e por si mesma residindo na alma”. A resposta de Sócrates a esta parte do pedido é dada no livro IV, onde demonstra que justiça (que descobrimos significar alguma coisa como retidão ou virtude completa) na alma equivale à harmonia nela e que é obviamente melhor do que desarmonia. Só no Livro IX é que Sócrates passa a falar sobre os efeitos da justiça, nesse momento interpretada como o prazer ou a dor que produz.

O procedimento de Sócrates consiste em traçar uma analogia com uma situação em que a mesma coisa é escrita com letras pequenas e grandes, de modo que é mais fácil ler o que está escrito com estas últimas. A analogia é curiosa, uma vez que Sócrates argumenta que, se queremos ter uma visão de justiça no indivíduo, é melhor examiná-la no Estado – este último sendo, por assim dizer, um indivíduo ampliado. Nessa base, passa a construir o Estado ideal. Descreve inicialmente um Estado mínimo mas austero, no qual todos desempenham apenas uma única

função e onde não há luxos. Amplia-o em seguida para torná-lo mais realista. Um espaço considerável é reservado à discussão do lugar, se algum, das artes em tal Estado. Nos livros anteriores, Platão cuidava de impor severas restrições ao lugar de tais artes, alegando que elas acabavam por ser freqüentemente corruptoras, de uma ou de outra maneira. No Livro X, volta à questão, adotando um ponto de vista mais metafísico e tentando excluir inteiramente as artes, dizendo que elas são mera cópia de uma cópia da autêntica realidade constituída pelas Formas. Na discussão anterior, ele descrevia a formação e educação de uma classe de Guardiões, que deviam governar o Estado. Postula que deve haver três classes no Estado – os Guardiões propriamente ditos, os que devem prestar assistência aos Guardiões, os chamados Auxiliares, responsáveis pela defesa, e os Artesãos, que, sem exceção, devem cuidar de suas funções próprias. Embora admita a possibilidade de poder haver movimento entre as classes, Platão obviamente pensa que isto é indesejável, e menciona mesmo a existência de uma “nobre mentira”, que diz que os membros das três classes procedem de raças distintas, a saber, de ouro, prata, e ferro ou latão.

A respeito disto, o Livro V entra em detalhes consideráveis sobre as instituições sociais, que ele pensa que devem existir a fim de impedir o aparecimento de facções e a desorganização do Estado. Deve haver comunidade da propriedade, das mulheres e crianças, e da vida corporativa em geral, isto com o objetivo de impedir disputas sobre toda e qualquer coisa. O Estado deve ser uma unidade orgânica que, diz ele, será semelhante a um corpo que, quando um membro sofre, todo o corpo sofre também. Antes de chegar a esse ponto, porém, ele completa o paralelo entre o Estado e a alma, argumentando a partir dos fatos do conflito mental para a tese de que deve haver três partes na alma, paralelas às três classes do Estado. Todas as classes existentes no Estado têm sua própria virtude – os Guardiões a sabedoria, os Auxiliares a coragem, e os Artesãos a prudência. A justiça é a virtude de todo o Estado trabalhando em conjunto (conclusão esta a que Platão chega por eliminação, dada uma lista inicial de quatro virtudes cardeais). Analogamente, alega que há uma virtude vinculada a cada parte da alma – a sabedoria à razão, à coragem à parte espiritual e a prudência à parte sensual em relação às outras. A justiça na alma surge quando todas as três partes trabalham juntas sob a orientação da razão. Esta unidirecionalidade é mostrada como a saúde da alma; o conflito corresponde à doença. A desejabilidade óbvia da saúde sobre a doença é julgada suficiente para mostrar que a justiça na alma é o melhor estado de coisas.

Há problemas sobre a maneira como essa justiça interna da alma é julgada como relacionada à justiça no sentido mais comum, que diz respeito às atividades de um indivíduo em relação aos demais. Platão tem muito pouco, se é que alguma coisa, a dizer a este respeito. A implicação geral é que justiça na alma depende de justiça no Estado e que esta última depende de vários aspectos da organização social, que ele especifica. Ao fim da discussão de tudo isto, um certo pessimismo

é manifestado a respeito da possibilidade de justiça e é neste ponto que Platão diz que ela provavelmente se realizará apenas se filósofos se tornarem reis. Esta conclusão leva-o a uma discussão da base epistemológica e metafísica da educação dos Guardiões, sendo os filósofos distinguidos dos homens comuns (que Platão chama de “amantes das vistas e dos sons”) pela familiaridade (conhecimento direto) com as Formas e, destarte, por possuírem conhecimento, em contraste com a mera crença. É importante reconhecer que os Guardiões, quando educados, devem governar o Estado, em todos os casos, mediante essa introvisão. Não haverá leis, como tais. Em diálogos posteriores, como no O Estadista e no As Leis, volta o reconhecimento do lugar da lei, mas apenas como segunda melhor alternativa.

A símile da Caverna descreve, em termos alegóricos, o esclarecimento progressivo de pessoas que estão inicialmente confinadas apenas à sua experiência de sombras (embora não reconheçam essa descrição da situação). Têm que ser libertadas das correntes que as agrilhoam e reconhecer os objetos que, através da luz de uma fogueira atrás delas, lançam as sombras sobre a parede dos fundos da caverna. Devem ser, em seguida, tiradas da caverna para a luz do dia, para o reconhecimento dos objetos no mundo iluminado e, finalmente, para a capacidade de olhar para o próprio Sol. Era nisto que consistia a educação para Platão – um processo de iluminação. Subseqüentemente, descreve -lhe a natureza – anos de música e ginástica, anos de matemáticas dos vários tipos e, finalmente, na maturidade, anos de dialética (presumivelmente, filosofia, embora ele pouco diga em que ela consiste – talvez a classificação e divisão lógica das coisas segundo o padrão estabelecido nos diálogos posteriores). Só então, após chegar ao que Platão chama de a Forma do Bem, podem elas descer para a Caverna, voltar ao Estado para governá-lo.

Depois de tudo isto, Platão fornece uma descrição da patologia das instituições políticas – uma patologia que ele parece acreditar que forçosamente se tornará realidade. Haveria uma deterioração a partir do Estado ideal, passando pelas etapas de aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia e tirania. Por analogia com essas formas cada vez piores de organização política, ele descreve também formas progressivamente mais vis de organização da alma, terminando com o homem tirânico, que não é necessariamente um tirano, mas um indivíduo inteiramente governado pelas paixões. Isto o leva à discussão do volume de prazer a ser tirado de possíveis vidas. Há três argumentos em apoio da tese de que a vida justa é também a mais agradável: o primeiro do diagnóstico do homem tirânico; o segundo das supostas crenças sobre a superioridade dos prazeres intelectuais e racionais sobre os demais; e o terceiro da tese sobre a natureza do próprio prazer. Esta última sustenta que todos os prazeres corporais resultam do atendimento de uma carência prévia e que por isto contêm um elemento de dor. Afirma que os prazeres racionais são puros e, portanto, os únicos prazeres reais (embora Platão estrague seu argumento ao admitir que

prazeres sensuais, tais como o do aroma, são também puros). Há outra discussão detalhada do prazer e de seu lugar na boa vida em um diálogo posterior, o Filebo. O A República termina, após mais uma discussão das artes e outro argumento sobre a indestrutibilidade da alma, com outro mito, no qual o renascimento ocorre após a purificação de antigos pecados. Mas todas as almas têm que escolher uma nova vida, e muitas escolhem mal. Só a filosofia pode gerar a sabedoria necessária para se fazer a escolha certa. Após a escolha, as almas cruzam o rio Letes, esquecem o que aconteceu e, assim, começa uma nova vida. Devemos tomar cautela. O A República constitui, de várias maneiras, um trabalho curioso, mas nenhuma dúvida há que representa o pensamento maduro de Platão, bem como sua habilidade mais refinada na elaboração de diálogos. Se o Timeu for posto na mesma classe, obtemos um trabalho muito diferente – uma obra que é, em certo sentido, um único longo mito, uma história da criação e uma descrição do mundo físico. Mas é coerente com, pelo menos, parte do A República. O mundo sensível é criado por um Demiurgo, ou Artesão, como cópia do mundo das Formas, de modo que, neste mundo, há uma Forma para tudo. Mas este mundo é imperfeito, sujeito a um fluxo heraclitiano constante e eleva-se sobre o caos apenas porque possui um mundo-alma que lhe dá a racionalidade que possui. Neste caso, racionalidade tende a significar regularidade e ordem e os corpos celestiais que se movem em órbitas fixas proporcionam a melhor indicação nesse sentido. A descrição que Platão nos dá de tudo isso, da cosmologia, do lugar da matemática nela, de tempo e eternidade, e assim por diante, até mesmo do lugar do homem e de outros seres vivos, é fascinante em seus detalhes, mas complexa demais para registrar aqui.

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 42-46)