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JOÃO ESCOTO ERÍGENA

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 85-90)

FILOSOFIA MEDIEVAL

JOÃO ESCOTO ERÍGENA

A grande figura seguinte da filosofia medieval só surgiu 300 anos depois, época em que o conhecimento do mundo grego estava praticamente morto, embora permanecesse alguma coisa de sua tradição. João Escoto Erígena (nascido c. 810), originariamente monge irlandês, possuía alguns conhecimentos de grego e conseguiu traduzir trabalhos de Gregório de Nissa (um dos padres da Igreja do século IV, que considerava a criação das coisas como procedente de Idéias divinas, sendo os corpos formados de qualidades reunidas na forma dessas idéias – idéia esta que foi considerada como um tipo de idealismo, ponto este que poderia dar margem a muita discussão). Traduziu também as obras do Pseudo- Dionísio, um autor de fins do século IV e princípios do século V, que exerceu grande influência sobre o pensamento cristão primitivo, mas que se acreditou erroneamente ser um convertido ateniense de são Paulo, Dionísio, o Areopagita, e por isso teve talvez uma fama imerecida. Esses dois autores em particular influíram muito no pensamento de João, o Escocês. Em sua principal obra, On

the Division of Nature (Da Divisão da Natureza), ele divide a natureza, ou as coisas em geral, em quatro tipos, ou fases (e temos que falar em fases porque João considerava as divisões como formando, em parte, uma seqüência, sendo a última a volta final a Deus, ao fim das coisas).

As quatro divisões são: a natureza que cria mas não é criada (Deus), a natureza que cria e é criada (as causas primordiais, ou Idéias), a natureza que é criada e não cria (a natureza no sentido convencional), e a natureza que nem é criada nem cria (o fim último das coisas, o retorno a Deus). A denominação de “natureza” dada à primeira divisão levou alguns a ver em João uma espécie de panteísmo que lembrava o “Deus ou Natureza” de Spinoza, embora não esteja claro que era isso o que ele pretendia. João utilizou idéias do Pseudo-Dionísio para descrever o conhecimento de Deus – as maneiras afirmativa e negativa (vide affirmativae et negativae) – com grande ênfase na última. Trata-se de uma tentativa de determinar a natureza de Deus em termos do que ele não é. Este enfoque retroage ao neoplatonismo e enfatiza a transcendência de Deus acima e além das coisas naturais. Sua natureza é superessencial.

A segunda divisão da natureza, que diz respeito às causas primordiais, constitui uma tentativa de explorar como esse Deus transcendente pode realizar-se e manifestar-se em um mundo pluralista. Fornece um elo, ou tenta, entre a primeira e a terceira divisões da natureza. Entre as causas primordiais é encontrada a Idéia do homem – um homem primordial, livre mas carecendo da maioria das características que acompanham corpo e vida no mundo material. João faz uma descrição alegórica da história bíblica da criação, na qual a queda de Adão constitui o surgimento do homem material e de todo o mundo material juntamente com ele. A divisão final da natureza só pode ser considerada como última etapa de tal processo, interpretado seqüencialmente – a volta final a Deus, cuja natureza deseja, e uma espécie de descanso em Deus. Claro está que a descrição de João tem caráter altamente místico. Foi considerada como uma grande construção metafísica e, interpretada como uma descrição, tem de fato algo dessa qualidade. Sua motivação, contudo, foi primariamente religiosa.

OS ÁRABES

Adiantamo-nos mais duzentos anos e chegamos a uma ocasião em que já haviam mudado as ênfases. Há maior interesse pela lógica. Abelardo e João de Salisbury, por exemplo, escreveram obras com títulos derivados da lógica ou da dialética. Não é de todo fácil explicar essa mudança de ênfase, embora parte do interesse pelo status dos universais, ou espécies, e gêneros, e como estes se expressam na linguagem, tivesse algo a ver com a doutrina da Trindade e a relação das três pessoas em uma só. Entrementes, e com inteiro desconhecimento do Ocidente, ocorria um florescimento da filosofia no mundo árabe, com recrudescimento do conhecimento e interesse por Aristóteles, ainda que um Aristóteles misturado com neoplatonismo. Alfarabi [Mohamed ibn-Mohamed ibn-Tarkhan ibn-Uzala

al-Farabi] é o mais antigo entre os mais conhecidos filósofos islâmicos do século X. Utilizou ele idéias aristotélicas para provar a existência de Deus, alegando que, Nele, existência e essência são iguais: Deus é igual à sua essência e fonte do ser de outras coisas. O maior filósofo islâmico do período, contudo, foi Avicena [Abu Ali al-Husain ibn Abdala ibn Sina], que elaborou um vasto sistema de filosofia baseando-se em Aristóteles, via Alfarabi. Em sua opinião, Deus é um ser necessário e a fonte de outras coisas, desde que elas emanem dele como resultado de Seu conhecimento de si. Postulou também certo número de intelectos que dele derivavam, incluindo dez em um reino celestial, além das estrelas fixas, responsáveis pelo movimento dos corpos celestiais, de acordo com um sistema ptolomaico modificado. É impossível em um curto espaço fazer uma descrição adequada da complexidade do sistema, embora um de seus pontos fundamentais seja a ênfase no intelecto ativo, ou razão, postulado por Aristóteles. Refinamentos dessa tese e sua relação com o denominado intelecto passivo foram levados mais adiante por Averróis [Abu al-Walid Mohamed ibn Ahmad ibn Mohamed ibn Ruchd], filósofo árabe do século XII, cujos trabalhos eram do conhecimento de são Tomás de Aquino. Voltaremos posteriormente a este filósofo. Outro filósofo árabe dos séculos X e XI que talvez valha a pena mencionar foi Al Ghazali [Abu Hamid Mohamed al-Ghazzali]. Ele foi principalmente uma figura religiosa; tudo fez para resistir ao que considerava desvios da ortodoxia aceita por seus predecessores. Uma doutrina pela qual se notabilizou, porém, é uma visão de causalidade que o transforma em uma espécie de predecessor de Hume, ao considerar a relação entre causas e efeitos como apenas contingente. Mas adotou essa opinião por razões que o aproximam mais dos ocasionalistas do século XVIII. Queria defender a possibilidade de milagres executados por Deus e, na verdade, a agência causal de Deus em geral. A atribuição de causas e efeitos baseia-se na ligação constante que notamos entre certos eventos, embora a eficácia causal, rigorosamente falando, pertença a Deus. ABELARDO

Abelardo e os lógicos dos séculos XI e XII no Ocidente nada sabiam a esse respeito. No Ocidente, esse período presenciou o início de uma discussão filosófica sobre o status dos universais, tendo por origem observações de Porfírio a que Boécio dera curso, conforme vi mos antes. Abelardo (1079-1142) estudou com Roscelino de Compiègne, cujos escritos não sobreviveram, mas, que se diz ter sustentado que um universal era uma simples palavra (flatus vocis). Parece que manteve também a versão de “três deuses” da doutrina da Trindade, alegando que toda coisa existente é particular – doutrina esta pela qual foi acusado de heresia e teve que se retratar. O campo oposto do realismo extremo sobre os universais foi ocupado principalmente por Guilherme de Champeaux (1070-1120), embora santo Anselmo, a quem voltaremos em outro contexto, fosse também um realista. Abelardo fez críticas contundentes a Guilherme de

Champeaux, perguntando como uma espécie substancial idêntica poderia ser encontrada simultaneamente em dois lugares. A própria teoria de Abelardo é um tanto obscura. Tradicionalmente, ele tem sido considerado um conceitualista sobre o fundamento de que, a despeito de sua oposição ao realismo extremo, ele negou também que os universais fossem palavras (voces), usando, em vez delas, o termo “sermo”. Contemporâneos, incluindo João de Salisbury, pensaram que ele era um nominalista, apesar de tudo (porque, afinal de contas, “sermo” não significa fala?). Finalmente, embora negasse que os universais fossem coisas, reservando esse termo para particulares, não negou que nossos pensamentos gerais tenham algo a ver com o que há no mundo, porquanto formulou uma teoria de abstração das coisas, baseando-se na ocorrência de imagens gerais, que representam o que é comum a elas. Mais uma vez, cont udo, não parece que Abelardo tenha considerado imagens como coisas em si.

A verdade é que o principal interesse de Abelardo era como dialético e lógico e o que queria esclarecer era o status lógico, ou papel, dos predicados. Expressões predicativas não significam coisa alguma em si mesmas. Sua função deve ser vista no que contribuem para as proposições de que fazem parte. Neste particular, um comentador notou uma similaridade disso com as idéias de um lógico do século XX, Gottlob Frege. Segundo ambos os filósofos, perguntar que tipo de objeto um predicado distingue é um erro, uma vez que a função lógica de predicados não é distinguir objetos. Diz Frege que predicados referem-se a conceitos, embora Abelardo não admita nem mesmo isso. Se um predicado tem um significado, ou conteúdo, este conteúdo pode ser esclarecido apenas via sua função em uma proposição, na qual ele afirma alguma coisa sobre algo. Poder-se- ia dizer, por conseguinte, que Abelardo não tem uma teoria de universais, uma vez que qualquer uma delas tende a identificar o conteúdo de um predicado com o objeto, seja a natureza real, palavra, ou entidade mental, e Abelardo rejeita todas elas. Se conceitualista, Abelardo o foi em um sentido muito sofisticado e não é de surpreender que outros, com uma estrutura mais tradicional de idéias, tenham-no interpretado de maneira diferente – como nominalista ou mesmo como realista moderado.

ANSELMO

Já nos referimos a Anselmo (1033-1109) como um realista no que interessava aos universais. Sua principal reivindicação à fama, contudo, reside em outra esfera. Embora nascido em Piedmont, Itália, Anselmo tornou-se finalmente arcebispo de Canterbury, onde vigorosamente defendeu os direitos da Igreja contra o rei. Foi também defensor do lugar da razão em relação à fé e é este espírito que permeia suas duas obras, Monologium e Proslogium, nas quais se propõe a formular argumentos racionais sobre a existência e natureza de Deus. O Monologium expõe certos argumentos a posteriori, isto é, argumentos que, em certo ponto, dependem de uma premissa derivada do que sabemos da experiência do mundo. Esses argumentos lembram outros encontrados em Platão e

Aristóteles. Anselmo argumenta – como fizera Aristóteles em trabalho mais antigo, o De Philosophia – a partir de graus do bem, alegando que deve haver alguma coisa que constitua o bem perfeito e absoluto (e sabedoria, também) e que é a causa do bem de outras coisas. Esta coisa, Deus, naturalmente, é o exemplo do universal autêntico, o bem. Anselmo argumenta analogamente no caso da existência, sustentando que embora, como geralmente acontece, coisas existam apenas através de outras coisas, tem que haver alguma coisa que exista em si e por si mesma – ou seja, Deus. O resultado desses argumentos (que se antecipam a argumentos formulados por são Tomás de Aquino, as denominadas “Cinco Maneiras”) não é apenas, na opinião de Anselmo, que deva haver um Deus, mas também que ele deva ser considerado como o mesmo que bem, sabedoria, ser etc., absolutos. Os argumentos não são formalmente válidos, uma vez que dependem da idéia – comum a muitos outros filósofos, entre eles Aristóteles – de que tem que haver um termo final em uma escala de grau, ou dependência. E dependem também de premissas factuais, conforme notamos. O Monologium apresenta a concepção de Deus com que trabalha Anselmo. O Proslogium, na verdade, pressupõe essa concepção, mas oferece um argumento independente, o denominado “argumento ontológico”, que tem provocado discussões repetidas desde então. Coloca o argumento no contexto de uma fala a Deus. O argumento diz, na verdade, que Deus é aquilo que maior não pode ser concebido (a concepção do que é entendido por “Deus” derivada do Monologium), mas que é também independente da mente (uma vez que algo que existe apenas mentalmente não é tão grande como algo que tem também existência independente). Por conseguinte, Deus deve existir (porque temos o conceito de Deus e faz parte desse conceito que ele existe e, na realidade, tem que existir independentemente de nossos conceitos). Até mesmo o tolo que diz “Não há Deus” deve perceber que sua própria negação de Deus é uma contradição. Isto porque a própria concepção de Deus que ele emprega tem como implicação a Sua existência. Trata-se de um argumento que, se descrito dessa maneira, afigura-se implausível. Há séculos tem sido objeto de ataque, mas, por alguma razão, continua a reemergir e se alega repetidamente que ele, ou algo parecido, pode ser defendido.

O argumento mereceu uma objeção imediata de um monge, Gaunilo, que insistiu em que um raciocínio semelhante demonstraria que teria que existir uma ilha perfeita e imensamente bela, caso se suponha que a existência se segue da perfeição. Anselmo replicou alegando que os dois casos não eram semelhantes. Sua resposta reveste-se de certa coerência, especialmente quando se reconhece que as considerações no Monologium fundamentam o que ele tem a dizer no Proslogium. Em uma data muito posterior, Leibniz argumentou contra uma versão do argumento ontológico proposta por Descartes, que não sabemos que a idéia de Deus, como ser absolutamente perfeito e infinito, não envolve uma contradição, e se envolve, a idéia de um Deus assim concebido não seria a idéia

de um ser que poderia possivelmente existir. Mais tarde ainda, Kant argumentaria que existência não era um predicado, de modo que a idéia de um ser que possuísse todos os predicados em perfeição não poderia ser a idéia de um ser cujo um dos atributos fosse a existência. Argumentou-se que essa consideração não se aplica à existência necessária porque, o que quer mais que Deus possa ser concebido como sendo, ele não pode ser concebido (como Hume viria de fato sugerir que poderia) como um ser cuja existência poderia ser simplesmente contingente, de modo que poderia existir em um tempo e não em outro. Como quer que possa ser tudo isso, o argumento de Anselmo não foi adotado por muitos de seus sucessores imediatos e são Tomás de Aquino, pelo menos, rejeitou-o.

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 85-90)