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FILOSOFIA MEDIEVAL II SÃO TOMÁS DE AQUINO

DUNS SCOTUS

Passar das obras de Aquino para as de John Duns Scotus (c. 1266-1308) é, estilisticamente falando, mudar de águas claras para águas extremamente turvas. Scotus é um autor difícil e não menos como pensador. O emaranhado de seu estilo tornou-lhe o nome a origem da palavra inglesa “dunce” (burro, asno). Recebeu ele o título honorário de “Doctor Subtilis”, o que é sem dúvida uma maneira mais polida de dizer a mesma coisa. Por outro lado, O. S. Peirce, filósofo americano do século XIX, considerava-o um “dos metafísicos mais profundos até hoje surgidos”. Uma avaliação justa do mesmo em nada é facilitada pelo fato de que muitas obras que lhe são atribuídas vieram a ser consideradas espúrias e que as principais nada contenham da clareza de forma possuída pelas Summas de são Tomás de Aquino. Suas duas principais obras são

talvez o comentário das Sentences, de Peter Lombard (uma coletânea de opiniões teológicas dos Padres da Igreja, formuladas na primeira metade do século XII, e que receberam muita atenção e numerosos comentários) intitulada Ordinatio, ou Opus Oxoniense, e o Quaestiones quodlibetales (registros, presumivelmente editorados, de respostas a perguntas e objeções sobre quaisquer assuntos, feitas no curso de debates formais em Paris), obra esta escrita ao fim de sua vida. Elas de modo algum constituem leitura fácil.

Duns Scotus quase certamente nasceu na Escócia. Ingressou na Ordem Franciscana, estudou em Oxford e aí - e subseqüentemente em Paris - lecionou. Durante um período, foi exilado de Paris, época em que pode ter ensinado em Cambridge, mas voltou mais tarde à capital da França. Em 1307, no entanto, foi transferido para a casa de estudos franciscana em Colônia, onde faleceu no ano seguinte. Tal como Aquino, escreveu comentários sobre Aristóteles. Criticou até certo ponto Aquino em relação a Aristóteles e exibiu a tendência de ignorá-lo e, passando por Avicena, chegar a Agostinho. Muitas das críticas constantes de suas obras são, contudo, dirigidas contra contemporâneos não identificados, fato este que pode ter excitado seus alunos, mas que, para nós, torna difícil a interpretação. As provas que Scotus fornece da existência de Deus são extraordinariamente complexas, em parte por causa de sensitividade à questão de como uma prova a posteriori, do tipo usado por Aquino no “Cinco Maneiras”, poderia ser demonstrativa se suas premissas se baseassem em questões de fato, que, por essa própria razão, não eram necessariamente verdadeiras. Tentou ladear esse ponto fazendo com que as premissas tratassem de possibilidades – para que certos fatos contingentes sejam possíveis deve haver alguma coisa necessária. Sua prova mais complexa desse tipo diz respeito a Deus como primeira causa e ser infinito, sendo o passo final argumentar que uma causa sem causa (necessária a fim de evitar um retrocesso infinito de causalidade) não poderia ser simultaneamente possível e incapaz de ser causada, a menos que fosse também real. Até mesmo esse curto esboço do argumento dá alguma indicação de sua complexidade. O principal ponto nesta área, sobre a qual Scotus divergiu de Aquino, refere-se à doutrina da analogia. Pensava Scotus que “ser” era unívoco e que o mesmo se aplicava a outros chamados termos transcendentais, tais como “uno”, “verdadeiro” e “bem”. Se não fosse assim, seria impossível o conhecimento de Deus. Obtemos nossa compreensão do significado desses termos da experiência com coisas sensíveis. Se os termos adquirissem um significado diferente quando aplicado a Deus, não teríamos maneira de compreender esse significado diferente. Por outro lado, admite Scotus que embora ao aplicar tais termos a Deus expressemos um conhecimento geral dele, não temos, por esse motivo, conhecimento dele em sua individualidade e perfeição.

Neste conceito, utilizou uma idéia pela qual ganhou certa notoriedade, embora não fosse seu autor. Trata-se da noção de distinctio formalis a parte rei (distinção

formal no lado da coisa), uma distinção que tem a ver com a forma ou características essenciais de uma coisa e que é nesse sentido objetiva. (“Formal” não deve ser interpretado como “lógico” ou “meramente formal”: a formalidade é um aspecto objetivo de uma coisa que é menos do que a natureza ou essência totais dessa coisa.) Scotus, como certos outros filósofos de sua época, queria alguma coisa entre uma distinção real, ou ontológica, na qual as coisas distinguidas podem, na verdade, existir separadamente, e uma distinção meramente conceitual, na qual as coisas distinguidas são separáveis apenas em pensamento, sem serem capazes de existir separadamente. No caso interveniente, a distinção deve, em certo sentido, ser imposta ao pensamento por motivo de sua base na realidade. Segundo a teoria aristotélica de alma, que Scotus aceitava nos seus pontos essenciais, a razão não pode existir separadamente das outras faculdades (ignorando-se no momento quaisquer objeções decorrentes de considerações sobre a razão ativa). Há, apesar disso, uma distinção real entre as faculdades que não é simplesmente uma questão de como acontece pensarmos nelas. Este é um exemplo da distinção formal que Scotus tinha em mente. É uma distinção bem autêntica e nela não há muita razão em si para disputa. Ela se torna interessante apenas quando se deixa implícito que a distinção é necessária, caso em que a necessidade é de re (em coisas e não apenas uma necessidade conceitual).

A situação pode ser diferente com os usos que Scotus quer dar a esta distinção. Isto porque ele sustenta que há uma distinção formal neste sentido entre os atributos divinos, que em Deus são de fato inseparáveis entre si e é por isso que Deus é uno. Esta consideração, quando generalizada, introduz outra idéia característica de Scotus. Ele era um realista no tocante aos universais, na medida em que acreditava que devia haver alguma base objetiva para atribuir uma natureza comum a certo número de indivíduos, mesmo que naturezas comuns não possam existir separadamente de indivíduos. Scotus chamava a individualidade particular de uma coisa a sua haecceitas (isto em si), idéia esta que caberia a Leibniz ressuscitar. Rejeitava a tese tomista de que o princípio da individuação é fornecido pela materia signata (pela, com efeito, posição espacial-temporal) sustentando que devia haver alguma coisa intrínseca ao indivíduo que lhe conferisse sua individualidade. Esta haecceitas talvez não seja de nosso conhecimento e talvez não apelemos para ela ao distinguir coisas, mas ela existe e é conhecida de Deus. É muito obscuro o ponto aonde isto leva em Scotus. Para Leibniz, a individualidade de qualquer dada coisa era garantida pelos alegados fatos de que nenhum dos dois indivíduos tem todas as suas propriedades em comum e que o número de propriedades de qualquer dada coisa é infinito. Scotus, na verdade, rejeita essa idéia. A distinção entre a haecceitas de uma coisa e a natureza comum que pode compartilhar com outras é para ele uma distinção formal.

Scotus acha que Aquino sustenta que temos apenas conhecimento indireto de particulares devido à necessidade do processo de conversio ad phantasmata (embora seja vulnerável à dúvida se isto é uma interpretação correta das implicações da teoria tomista). Vê o intelecto como interagindo com fantasmas, mas mantém, como faria também Guilherme de Occam, que temos cognição intuitiva da existência de objetos. O conhecimento de suas naturezas, de suas naturezas comuns, depende do funcionamento do intelecto em relação a fantasmas, ao passo que o conhecimento de suas haecceitas não é possível nesta vida. O conhecimento de sua existência, contudo, é uma questão de intuição. Scotus, mais uma vez como Occam, distingue igualmente entre cognição intuitiva e abstrativa, esta última dizendo respeito a um objeto com abstração de sua existência ou não-existência. O importante, porém, é a possibilidade de cognição intuitiva, livre da ação do intelecto. Exceto que ela se limita simplesmente à existência de coisas, ela corresponde ao “conhecimento por familiaridade” (contato direto) em que Russell insistiria neste século. Scotus vê também um lugar para a intuição no reconhecimento da certeza de algumas verdades.

Já estudamos algo da opinião aristotélica de Scotus sobre a alma. Achava ele que havia certa incoerência na posição tomista a esse respeito, pelo menos na medida em que, quanto mais a alma era interpretada como a forma do corpo, menos se tornava possível provar-lhe a imortalidade. Não que ele duvidasse que ela fosse imortal. Havia ainda mais uma dimensão em que ficavam visíveis os limites do que pode ser provado. Scotus assumia uma atitude muito mais positiva da liberdade humana, e não meramente relativa, ao que o indivíduo considerava como os fins a serem buscados. Daí afirmar o primado da vontade sobre o intelecto, em contraste com a relação oposta mantida por Aquino de uma maneira que retroagia a Agostinho. A mesma doutrina levou-o na direção da tese de que aquilo que o homem deve fazer moralmente depende daquilo que Deus quer. Embora não declare categoricamente que as coisas são boas na extensão em que Deus as quer (porquanto, de fato, insistia na razão correta e em considerações de conveniência), certamente denotava uma tendência nessa direção.

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 100-103)