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O “MÊNON” E O “FÉDON”

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 37-42)

PLATÃO INTRODUÇÃO

O “MÊNON” E O “FÉDON”

O Mênon começa como se devesse ser uma continuação da discussão contida no Protágoras e no Górgias, se a virtude pode ou não ser ensinada. Após alguns circunlóquios “socráticos”, porém, Mênon menciona um dilema (denominado de “sofístico” por Sócrates, mas, ainda assim, tratado com seriedade) a respeito de como pode o indivíduo realizar absolutamente tal indagação. Isto porque ou o indivíduo já conhece a solução, caso em que a aprendizagem não está em jogo, ou não a conhece, e nesta situação não sabe o que procurar. O dilema depende da aceitação da proposição de que, a respeito de qualquer coisa, a pessoa sabe ou não sabe, tema este colocado em pauta em um contexto diferente, e com um fim diferente, no Teeteto. É um dilema que parece plausível, mas que não leva em conta o fato de que o indivíduo pode conhecer algumas coisas, e até certo ponto, a respeito de algo, mas desconhecer outras ou não as conhecer completamente. É defensável que sua aceitação dependa de certa maneira de encarar o conhecimento – o conhecimento implica ter um objeto diante da mente -, mas que é uma questão controversa. De qualquer modo, não é assim que Sócrates responde à questão. Em vez disso, refere-se a uma doutrina aceita por sacerdotes e poetas, no sentido de que a alma é imortal, já passou por numerosas vidas e que, por isso, tudo sabe. Mas, ao renascer, esquece, e precisa ser lembrada do que outrora soube. Esta é a primeira menção de uma das grandes doutrinas platônicas – a doutrina da recordação, que conhecimento é uma questão de recordar o que o indivíduo outrora soube e que aprendizado consiste em tal recordação.

Trata-se, na verdade, de uma doutrina incoerente porquanto dá origem a uma regressão infinita: se todo conhecimento é recordação não pode haver conhecimento inicial. Isto, contudo, não é algo que Platão dê a mínima indicação de ter compreendido. Como solução do dilema, a doutrina encerra também algumas coisas muito estranhas, uma vez que, na realidade, diz que nunca aprendemos realmente coisa nenhuma, apenas recordamos o que já sabemos implicitamente. Essa doutrina reaparece apenas mais duas vezes em forma explícita – no Fédon, onde se diz que recordamos o que Platão chama de “Formas”, uma idéia à qual voltaremos, e no Mênon, onde é dada como explicação dos efeitos da percepção artística. No Mênon, Sócrates faz uma

espécie de demonstração da doutrina, levando um rapazola a chegar à solução de um teorema geométrico: qual o comprimento do lado de um quadrado que tem duas vezes a área de outro dado quadrado? Ele realiza isso adotando a técnica de perguntas e respostas e, em certa altura, referindo-se a uma construção adicionada a um diagrama, desenhado na areia. Isto leva o rapaz a compreender que o comprimento perguntado é a diagonal do quadrado inicial. Sócrates alega, embora isto tenha sido recebido com cepticismo por um conjunto inteiro de comentaristas, que não esteve ensinando ao rapaz, mas apenas extraindo o que ele já sabia. No fim, diz que o rapaz tem apenas uma convicção autêntica, porque ele se assemelha a alguém que acabou de despertar do sono, mas que a convicção verdadeira poderia ser transformada em conhecimento pela repetição do mesmo procedimento.

O exemplo é de fato favorável ao argumento de Sócrates, uma vez que, com certo conhecimento de assuntos matemáticos (o que evidentemente acontece no caso do rapaz), alguém poderia chegar concebivelmente à solução, talvez com um pouco de ajuda. Isto é o que significaria o conhecimento matemático. É aquilo que uma geração posterior de filósofos chamou de “a priori”. Por causa disso, alguns comentaristas disseram que Platão está propondo a tese de tal conhecimento a priori – alegando, na verdade, que ele implica alguma forma de conhecimento inato ou, de qualquer maneira, um substituto do mesmo. Da forma como Sócrates apresenta inicialmente a doutrina, somos informados que a alma veio a conhecer tudo e que se alguém recordar uma parte do conhecimento pode, desde que determinado a tanto, solucionar o resto. Daí haver certo conflito entre dois aspectos da maneira como Platão coloca a questão. Ao fim do exemplo geométrico, a discussão volta ao que é ostensivamente o tema do diálogo – a possibilidade de se ensinar virtude. Sócrates, pela primeira vez, invoca a idéia da hipótese, dizendo que, na hipótese de virtude ser conhecimento, este pode ser ensinado. Argumenta então que é conhecimento porque depende de sabedoria prática. Ao fim disto, porém, lança dúvida sobre a hipótese, sobre o fundamento empírico de que as pessoas não parecem capazes de ensiná-la.

Diz em seguida que há, de fato, um substituto para o conhecimento – a convicção autêntica. Se o indivíduo quer ir a Larissa, chegará lá se tem autêntica convicção sobre qual é a estrada certa, tenha ou não conhecimento. O problema com as convicções verdadeiras é que elas não persistem na mente do indivíduo e precisam ser amarradas pelo “cálculo da razão”, de modo a se transformarem em conhecimento – e é isto o que significa recordação. São essas verdadeiras crenças, e não conhecimentos, que sacerdotes, poetas e estadistas possuem. Da forma como são as coisas, por conseguinte, a virtude não chega pelo ensino, mas por algo mais parecido com a inspiração. Há muitas coisas nessa tese que provocam controvérsias, em especial o que queria ele dizer com “cálculo da razão”. Em outro contexto, Platão vincula conhecimento a logos, como o entender a razão por quê, e talvez tenha sido isto que ele teve em mente nesse

caso. É menos claro que o próprio Sócrates jamais teria sugerido que crença verdadeira fosse um substituto do conhecimento e, na verdade, o contexto epistemológico geral do diálogo é socraticamente duvidoso. Uma coisa, porém, é clara – nesse trecho Platão sugere que crenças verdadeiras podem ser transformadas em conhecimento. À época em que escreveu A República, porém, havia chegado a uma opinião diferente.

O Fédon é, neste particular, um argumento que serve de ponte e introduz pela primeira vez, uma doutrina inteiramente ausente do Mênon – a teoria das Formas, ou Idéias, que em geral se considera como Platão essencial. O diálogo, conforme já vimos, supostamente descreve uma discussão entre Sócrates e dois pitagóricos durante seu último dia, que termina com sua morte. É contado por Fédon, desde que se diz que Platão não esteve presente por motivo de doença. Sócrates diz que não tem medo de morrer porque a morte é a libertação da alma aprisionada no corpo e das limitações corporais. O Fédon constitui uma peça literária do mais alto quilate e Sócrates mantém a discussão sobre a morte em um plano sublime. Cebes e Símias manifestam certo cepticismo sobre a sobrevivência da alma após a morte (um cepticismo filosófico, sem dúvida, uma vez que, como bons pitagóricos, eles deviam ter aceitado a doutrina com suficiente boa vontade) e Sócrates passa a oferecer argumentos sobre a indestrutibilidade da alma, todos eles orientados para a conclusão, como ele diz, de que nossa alma existe no Hades. Os argumentos são de valor desigual e é bem provável que Platão tenha reconhecido esse fato. O diálogo termina, contudo, com um “mito” sobre o que acontece à alma após a morte – e que refina, com algumas mudanças, um mito semelhante que conclui o diálogo Górgias. Em Platão, os mitos são o que o Timeu denomina de “história provável” – a apresentação daquilo em que Platão acredita quando os argumentos filosóficos chegam ao fim.

O primeiro argumento toma como premissa que tudo procede de seu oposto e leva à conclusão de que, da mesma forma que o morto procede do vivo, de idêntica maneira o vivo procede do morto, e que os mortos devem existir como almas no mundo dos mortos (Hades). Não se trata de um bom argumento, para dizer o mínimo, porquanto depende de uma confusão entre tipos diferentes de opostos e, de maneira alguma, respalda a conclusão de que vivos e mortos procedem um do outro reciprocamente, e quanto mais que nossa alma existe no Hades. É possível que Platão tenha percebido as falhas do argumento porque passa imediatamente a outro. Cebes invoca a doutrina da recordação que, nesse momento, é associada à teoria das Formas. Essa doutrina – que na verdade nunca é realmente discutida nos di álogos mas apresentada como algo sobre o qual há acordo – diz que, ao contrário de coisas particulares, a fim de dar o exemplo citado no diálogo, há algo que é belo em si ou igual em si e isto deve ser considerado como igual à beleza ou igualdade absolutas . Platão não nos esclarece como chegou a acreditar na existência de tais coisas, mas a verdade é que a maioria dos exemplos que inicialmente fornece envolve “termos relativos” –

termos tais como “belo” ou “bom”, que são relativos no sentido em que, dependendo do padrão invocado, ou a base de comparação, se ou não alguma coisa particular deve ser chamada de bela ou boa é questão relativa. “Igual” não é tanto relativo como relacional: termos relativos pressupõem uma relação implícita ou uma comparação com alguma coisa, ao passo que termos relacionais tornam a relação explícita. É provável que Platão tenha fundido os dois.

Podemos apenas formular um palpite sobre a origem dessa doutrina. É notável que a maioria dos termos relativos inclua-se em pares de opostos – bom/mau, belo/feio, e assim por diante – e é possível que o emprego por Heráclito desses pares de opostos tenha influenciado Platão. A fonte principal da doutrina, contudo, deve ter sido socrática. Não quer isto dizer que o próprio Sócrates acreditasse em tais absolutos. Mas é possível que Platão tenha pensado que as perguntas de Sócrates sobre a natureza das várias virtudes só pudessem ser respondidas postulando-se um padrão absoluto, ao qual o indivíduo pudesse apelar ao tomar decisões particulares. Na verdade, no Eutifro, Sócrates pede a Eutifro um padrão, ou paradigma, ao qual possa referir-se para decidir que coisas são piedosas e santas e quais não são. Não obstante, se tais padrões são pedidos nas perguntas “O que é?”, de Sócrates, consideradas como solicitações para orientação moral, a forma da pergunta parece sugerir que a resposta deva ser da natureza de uma essência universal, ou abstrata. Daí a Forma, na opinião de Platão, ser algo que deve fornecer um padrão e ser também uma essência ou universal abstrato – algo que, na verdade, se reflete em diferentes locuções usadas por Platão para referir-se à Forma. Ele, por exemplo, fala às vezes em Beleza e, em outras ocasiões em “A beleza em si”, locuções que em grego podem ser julgadas mais próximas entre si do que parecem em inglês. Não há, na verdade, algo que seja simultaneamente a natureza da beleza e aquilo que possa prover o padrão, em comparação com o qual julguem-se exemplos putativos de beleza. Nota-se, na verdade, uma incoerência lógica entre os dois papéis que a Forma tem que desempenhar e há também alguma razão para pensar que, à época em que escreveu o Parmênides, Platão possa ter percebido isso. A doutrina, contudo, é apresentada como opinião dada nos diálogos até a época em que escreveu o A República e o Timeu.

No que interessa ao argumento contido no Fédon, diz Platão que desde que coisas, tais como paus e pedras, podem ser consideradas como iguais em alguns aspectos, mas não em outros, elas são, segundo o padrão da Forma, defeituosamente iguais e assim consideradas (alegação esta muito discutível). Se assim, em todos os casos em que considerarmos alguma coisa como defeituosamente igual, desta maneira estamos pressupondo um conhecimento de igualdade absoluta, que não podemos ter obtido da experiência. Simplesmente nos lembramos dele pelo exemplo. Deveríamos, então, ter possuído esse conhecimento antes de termos nascido, e também existido, como conseqüência, antes de nascer. Há muito de duvidoso na epistemologia e no uso que é dado a

ela, mas, conforme observam Símias e Cebes, o argumento prova, na melhor das hipóteses, a preexistência da alma e não exclui a possibilidade de que na morte ela seja dispersa como se fosse fumaça. E a discussão passa assim a outro argumento.

Este diz respeito à analogia entre almas e Formas, por um lado, e corpos e coisas particulares, por outro. As Formas são apresentadas como unidades e como constantes em certos aspectos (a Forma igual é sempre igual). Daí, se por analogia a alma é também única e constante, ela não pode ser dividida de tal maneira que possa ser dissipada como fumaça. O argumento, no entanto, depende da força da analogia, e Cebes e Símias sugerem analogias rivais que apontam em outras direções. Símias sugere que a alma pode relacionar-se com o corpo da mesma forma que o afinamento das cordas de um instrumento musical com o próprio instrumento. Mas, quando o instrumento é destruído, o mesmo acontece com o afinamento. Cebes, por sua vez, alvitra que a analogia poderia ser com uma pessoa e as roupas que usa. Da mesma forma que uma pessoa, após usar vários trajos, pode cansar-se, a alma, depois de usar vários corpos, pode cansar-se também.

A resposta de Sócrates é complicada e concentra-se principalmente em encontrar defeitos na analogia. Em resposta, ele oferece uma espécie de “autobiografia”, explicando como veio a interessar-se pelas Formas e invocando o método hipotético mencionado no último capítulo. Define a indagação sobre as Formas como “uma segunda maneira de viajar, em comparação com a indagação direta a respeito de coisas, para descobrir por que elas são o que são. A questão do “por quê” que ele quer que seja respondida tem a ver com a finalidade das coisas, e isto não era proporcionado pelo tipo de indagação que ocupava os pré-socráticos. A teoria das Formas fornecia tal resposta, mas como uma espécie de segunda melhor alternativa. Entende-se geralmente que “a segunda maneira de viajar” consiste em pegar os remos, quando o vento cessa e não podemos usar as velas: chega-se ao mesmo destino dessa maneira, mas com maior dispêndio de esforço. Assim, a teoria das Formas fornece uma resposta à finalidade das coisas, mas indiretamente e com aumento de esforço. E fará isso, presumivelmente, porque se todas as coisas compartilham de Formas (da maneira como Platão tende a apresentar a idéia), compartilham até certo ponto de perfeição, conquanto ficando aquém dela. O mundo, como diz Platão no Timeu, é uma mistura de razão e necessidade, uma mistura de racionalidade e força bruta, cega. Mas a participação nas Formas assegura que há alguma coisa racional e intencional nele.

Dado isto, Sócrates pode passar ao argumento final do Fédon e à resposta a Cebes. Eles envolvem certo volume de aparato e uma teoria de causalidade de que trataremos apenas brevemente. Até esse momento, ele explicou um dos sentidos da pergunta “Por quê?” e que é respondido por referência a uma Forma.

Nesse momento, diz que as Formas podem existir em pares de opostos, como também as coisas que partilham delas, e alega que, quando uma dessas coisas sofre aproximação do oposto, ela pode ou ser destruída ou retirar-se. Nenhuma justificação é dada para essas alternativas exclusivas. No caso da neve, quando o calor se aproxima, ela é destruída pelo derretimento. A finalidade de Sócrates é mostrar que, quando a morte se aproxima da alma, ela não é destruída, mas se retira do corpo. Segundo a teoria da causalidade, é possível outra resposta à pergunta “Por quê?” à parte a simples referência à Forma. Isto acontece quando há coisas que são casos essenciais de uma Forma, como a neve é do frio e o fogo é do calor: são casos essenciais da Forma no sentido em que a neve tem que ser fria e o fogo tem que ser quente. O segundo tipo de explicação torna-se possível quando algo desse tipo existe em alguma outra coisa. Assim, por necessidade, o fogo leva calor a tudo em que está. De acordo com esse modelo, a alma, que é a fonte da vida, assim é porque leva vida a tudo aquilo onde está, por ser em si essencialmente viva. A alma morta não faz sentido. Ao aproximar-se a morte, ela tem que ou ser destruída ou retirar-se. Qual das duas coisas?

Nesse ponto, Platão falha lamentavelmente, isso porque permite que Cebes diga que se aquilo que é imortal, sendo eterno, não pode evitar a destruição, o que na Terra poderá? Sócrates concorda, apelando simplesmente para outras analogias a fim de reforçar o argumento. Mas o sentido em que se mostrou que a alma é imortal é que não faz sentido falar em morte nessa conexão, e que isto não explica que ela seja eterna. De modo que o argumento, talvez não surpreendentemente, fracassa. Em outros contextos (A República e Fedro), Platão fornece outros argumentos sobre a indestrutibilidade da alma, mas em nada mais convincentes. Ainda assim, a alma era alguma coisa em que ele evidentemente não podia deixar de acreditar.

No documento Uma História da Filosofia Ocidental (páginas 37-42)