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A ação negativa e as doutrinas baseadas na evitabilidade

O modelo de ação negativo inverte as bases conceituais da conduta. Ao passo que as teorias vistas acima partem de um conceito positivo, baseado no agir comissivo do agente, o mesmo não ocorre com a ação negativa, cuja base está no não agir do autor. Definida como a evitável não evitação de um resultado na posição de garantidor, a ação ocorre quando o autor age quando não deveria agir, ou quando não age quando teria que agir. Este é o magistério de Juarez Cirino dos Santos:

Ação é a evitável não evitação do resultado na posição de garantidor, compreensível como omissão da contradireção mandada pelo ordenamento jurídico, em que o autor realiza o que não deve realizar (ação), ou não

realiza o que deve realizar (omissão de ação): um resultado é atribuível ao

autor se o direito ordena sua evitação e o autor não o evita, embora possa evitá-lo160.

Por tal conceito, o autor tem o dever de impedir a concretização do resultado, seja de forma comissiva ou omissiva, garantindo a preservação do bem jurídico. O homem tem uma posição centralizada em relação ao domínio do processo causal: quanto mais próximo de evitar o resultado, maior é o seu domínio e a sua posição de garantia, consequentemente sendo também acentuada a sua responsabilidade; quanto mais externo o fato é do agente, menor será o seu domínio sobre ele, enfraquecendo a sua responsabilidade161. 160 SANTOS, 2010, p. 92-93. 161 BACIGALUPO, 2005, p. 222.

Esse conceito de ação possui algumas variantes, como a proposta por Behrendt162: o autor defende uma posição psicanalítica do conceito negativo de ação, associando a evitável não evitação do resultado com a destrutividade humana. Para explicar sua teoria, o autor utiliza o aporte do aparelho psíquico formulado por Freud, dissertando que a destrutividade decorre de pulsões do id, as quais não são controladas pelo superego.

Seja qual for a vertente negativa do conceito de ação, a evitabilidade constitui a sua espinha dorsal. Como bem pondera Juarez Tavares163, a evitabilidade não é um conceito objetivo, ela não se resume a um agir desvinculado de elementos internos do agente. Muito pelo contrário, a evitabilidade liga-se a motivação do autor, estando o resultado atrelado à decisão que ele toma no momento da ação ou omissão. Por essa visão, difícil seria enxergar uma possível conduta criminosa de entes morais.

No entanto, o movimento funcionalista e sua interpretação do direito rompem com alguns paradigmas dos antigos sistemas, o que enseja certa modificação na leitura sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. No funcionalismo radical, Jakobs164 utiliza o conceito de evitabilidade165 como essência166 de sua teoria da ação:

A ação é fruto de um resultado individualmente evitável. No dizer de Jakobs,

ipsis verbis, “a ação é, portanto, a expressão de um sentido. Essa expressão

de sentido consiste na causação individualmente evitável, isto é, dolosa ou individualmente culposa, de determinadas consequências; são individualmente evitáveis aquelas causações que não seriam produzidas se concorresse uma motivação dirigida a evitar as consequências”167

.

Sob influência da sociologia de Luhmann, o eminente jurista alemão utiliza da teoria dos sistemas sociais para explicar a ação delitiva. O mais importante não é o indivíduo considerado em sua singularidade, como as teorias acimas vistas o fazem, mas sim a posição dele no sistema. Por meio da interação do sistema interno do agente com o sistema social é que se poderá verificar, com base na capacidade individual, se o autor poderia ter evitado o resultado. Nesse norte:

162

SANTOS, op. cit., p. 94.

163

TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 251.

164

BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 132-133.

165

Apesar de fundamentar a sua teoria da ação no postulado da evitabilidade, a doutrina de Jakobs não se insere em um conceito negativo de ação. A teoria defendida pelo douto alemão é conhecida como Global, na qual se enxerga a ação como fenômeno total.

166

PUIG, 2007, p. 159.

167

Ao contrário do que sugere o finalismo, na hora de combinar ser humano e curso causal por meio da imputação para obter a ação humana, isso não pode ser feito utilizando-se exclusivamente a antecipação psicológica individual de cursos causais, nem tampouco pelo mero fato de que se conheça geralmente a existência de tais acontecimentos psicológicos individuais que produzem tal combinação: essa vinculação somente se obtém aplicando um esquema de interpretação, e a configuração determinante desse esquema deriva da construção da sociedade, e não de uma compreensão exclusivamente individual168.

É com base nesta doutrina que Silvina Bacigalupo, brilhante professora de direito penal da Universidade Autónoma de Madrid, em uma das obras mais influentes sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica, expõe como a ação penal de Jakobs pode ser utilizada para fundamentar a conduta delitiva dos entes coletivos.

Ao contrário do que ocorre nos modelos de ação baseados na vontade, o modelo funcionalista de Jakobs parte do sistema como um todo, situando o agente dentro de um meio social. Em outras palavras, não se parte do indivíduo para se determinar o sujeito, mas sim se determina o sujeito em função de seu sistema.

O sujeito não precisa ser formado necessariamente de psique e corpo. Ele pode possuir outros elementos constitutivos, que no caso das pessoas jurídicas seriam os estatutos e os órgãos. Os primeiros são o que conferem as pessoas jurídicas a capacidade de ação

.

Já os órgãos são os responsáveis pelo controle da conduta, com base neles se auferirá se a ação poderia ter sido evitada individualmente. Em palavras iluminadas:

Este modelo permite fundamentadamente falar de diferentes sujeitos de

direito penal. Aqui não se parte só de um individuo para determinar o que é

um sujeito, mas sim se determina o sujeito em função de seu próprio sistema. As características do sistema que compõem um sujeito de direito penal, são as que determinam como se configura a <evitabilidade> da produção do resultado e as que determinam a existência de uma ação relevante. A <evitabilidade pessoal> deverá se determinar no caso da pessoa jurídica de acordo com as capacidade que se reconhecem aos órgãos e seus estatutos169 (Tradução livre)170.

168

JAKOBS, Gunther. Fundamentos do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 58.

169

BACIGALUPO, Silvina. La responsabilidad penal de las personas jurídicas. Barcelona: Bosch, 1998, p. 154.

170 “Este modelo permite fundamentalmente hablar de diferentes sujetos del derecho penal. Aquí no se

parte sólo de um individuo para determinar lo que es um sujeto, sino que se determina el sujeto em

función de su proprio sistema. Las características del sistema que componen al sujeto del derecho

penal, son las que determinan cómo se configura la <evitabilidad> de la producción del resultado y las que determinan la existencia de uma acción relevante. La <evitabilidad personal> se deberá determinar en el caso de una persona jurídica de acuerdo a las capacidades que se le reconocen al órgano en sus estatutos”.

Por isso, a autora defende, em consonância com os ensinamentos do professor teutônico, que o sujeito penal poderá ser formado por diferentes sistemas171. Sejam quais forem os seus elementos, psique e corpo ou estatutos e órgãos, ambos são capazes de produzir um resultado penalmente relevante que poderia ser evitado pelo agente.

Pelo exposto, a autora espanhola entende que é plenamente possível a configuração de uma capacidade de conduta das pessoas jurídicas. Contudo adverte172, com base em Zugaldía, que para a legitimidade de uma responsabilidade penal dos entes coletivos é necessário ir além de uma reformulação do conceito de ação. Também é preciso reanalisar todos os pressupostos do direito penal e da legitimação da pena, levando-se em consideração novas formulações acerca da culpabilidade e das funções da sanção criminal.