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O direito penal de duas velocidades

Assim como Hassemer, Jesús-María Silva Sánchez reconhece que o advento da sociedade moderna influi significativamente na teoria do delito. No entanto, o autor espanhol opta por uma linha de pensamento distinta do douto germânico, a qual iremos analisar de maneira breve nesta obra.

Sánchez parte da premissa de que, ao contrário do que defendem os autores da Escola de Frankfurt, não é possível um retorno ao direito penal liberal437. Na realidade, esse direito jamais existiu, sendo que as referencias ao mesmo são simples exercícios utópicos realizados pelos combatentes do processo de modernização da ciência penal. Isso porque no direito penal liberal assegura-se todas as garantias individuais dos indivíduos, devido a imposição de rigorosas sanções penais. Tal sistemática, perfeita do ponto de vista garantista, jamais vigorou na prática forense.

Além dessa afirmação, o professor castelhano não enxerga a expansão do direito penal como um fenômeno que deve ser combatido até as últimas consequências. A expansão seria um acontecimento normal devido a caracterização da sociedade pós- industrial. O grande problema não seria a inflação de normas-jurídico-penais, mas sim a proliferação de tipos que preveem a cominação de penas privativas de liberdade438.

A pena privativa de liberdade é a sanção de maior gravidade dentro de um Estado Democrático de Direito439 e, para que seja aplicada de maneira justa, os princípios e garantias do indivíduo devem ser respeitados, sem a possibilidade de nenhuma forma de flexibilização. Principalmente no âmbito processual, esse formalismo acarreta em uma rigidez que impede a efetiva proteção de bens jurídicos, estabelecendo-se o confronto direto entre as garantias individuas e o princípio da proibição de proteção deficiente.

Por isso que Silva Sánchez apenas considera maléfica a expansão do direito penal no caso dos delitos que preveem penas privativas de liberdade. Logo, a ascensão de novos bens jurídicos, tutelados por meio de penas alternativas, como multa ou prestação de serviços, é um fenômeno normal que o direito penal deve se adaptar.

437 SANCHEZ, 2013, p. 177. 438 Ibidem, p. 181. 439

Isso considerando as regras constitucionais em vigor no nosso país em tempos de paz, já que existe a possibilidade de imposição de pena de morte, nos termos do artigo 5°, inciso XLVII, alínea “a” da Constituição Federal de 1988.

Completa o douto que no atual modelo social tal expansão não pode ser barrada, pois o advento da sociedade pós-industrial trouxe alterações que não podem ser contidas440.

Inclusive, do ponto de vista criminológico, a oposição à modernização do direito penal resultaria em uma grave fonte de injustiça. A criminalização do direito penal clássico incide principalmente em ações contra o patrimônio, o que deixaria a margem do direito penal graves crimes econômicos e ecológicos. Isso geraria o que Silva Sánchez denomina de direito penal de classes441, pois a maioria das pessoas que praticam os delitos contra o patrimônio são socialmente desfavorecidas, ao contrário daqueles sujeitos que cometem os conhecidos White Collor crimes, sendo estes pertencentes à alta sociedade. Tal fato apenas agravaria a desigualdade social, incentivando a impunidade dos economicamente poderosos.

Portanto, cabe ao direito penal responder a tais mutações sociais, de modo a desenvolver instrumentos dogmáticos que possibilitem a incriminação de novas condutas lesivas ou potencialmente perigosas para os bens jurídico-penais. Mas, ao mesmo tempo, deve-se preservar a imputação clássica nos casos de delitos que cominem penas privativas de liberdade.

Nesta senda, o professor espanhol propõe uma bifurcação do direito penal, sendo que cada uma das partes desta divisão ele denomina de velocidade. O direito penal de primeira velocidade seria aquele direito penal clássico, de viés garantista, no qual é possível a imposição de pesadas sanções privativas de liberdade e, por isso, todas as garantias materiais e processuais devem ser respeitadas, sem nenhuma possibilidade de flexibilização.

Por sua vez, o direito penal de segunda velocidade se aplicaria a essa nova face da sociedade, aos delitos surgidos com o fenômeno da pós-modernidade. Aqui a proposta de Silva Sánchez se aproxima do direito de intervenção, dado que também se admite um afrouxamento das garantias processuais desde que impossibilitada a aplicação de penas privativas de liberdade.

Contudo, a grande distinção entre o douto espanhol e a proposta de Hassemer é que a punição dessa nova criminalidade se mantem dentro do direito penal. A princípio, isso ocorre porque Silva Sanchez considera os novos bens jurídicos tão importantes quanto o chamado núcleo do direito penal. Logo, delitos econômicos são considerados tão gravosos quanto crimes contra a liberdade ou o patrimônio.

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SANCHEZ, 2013, p. 185.

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Além disso, mantendo-se a tutela desses novos bens jurídicos dentro do direito penal, mantem-se a função simbólico-comunicativa da aplicação de pena, ou seja, preserva-se a função de prevenção geral, já analisada no capítulo anterior, inerente a pena criminal. Sobre todos esses pontos, são nítidas as palavras do mestre castelhano:

Para resumir, pode ser dito que, à medida que a sanção seja a de prisão, uma pura consideração de proporcionalidade requereria que a conduta assim sancionada tivesse uma significativa repercussão em termos de afetação ou lesividade individual; ao mesmo tempo, seria procedente - exatamente pelo que foi aludido – manter um claro sistema de imputação individual (pessoal). Mas, vejamos, à medida que a sanção não seja a de prisão, mas privativa de direitos ou pecuniária, parece que não teria que se exigir tão estrita afetação pessoal. A ausência de penas “corporais” permitiria flexibilizar o modelo de imputação. Contudo, para que atingisse tal nível de razoabilidade, realmente seria importante que a sanção fosse imposta por uma instância judicial penal, de modo que preservasse (na medida o possível) os elementos de estigmatização social e de capacidade simbólico-comunicativa próprios do Direito Penal442.

Assim como o direito de intervenção, a teoria do direito penal de segunda velocidade também busca um fortalecimento dogmático do direito penal. Porém, essa bifurcação de um ramo científico pode se mostrar problemática devido ao fato de aplicação diferenciada do direito penal conforme o tipo de relação que se visa tutelar (Clássica ou pós-moderna). De qualquer forma, Silva Sánchez nos traz um interessante ponto de vista, que não merece passar despercebido.