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O Direito de Intervenção

A Escola Penal de Frankfurt é um dos maiores expoentes críticos do processo de modernização do direito penal. Dentre os seus renomados autores, como Naucke e Prittwitz, destaca-se a figura de Winfried Hassemer. Combatente do processo de modernização do direito penal, o douto teutônico busca uma alternativa científica para as transformações sociais, sem que tal fato desnature as bases epistemológicas da ciência criminal.

Para entendermos essa nova proposta, antes de qualquer coisa é necessário que analisemos as bases argumentativas utilizadas pelo autor. Inicia o professor dissertando que a modernidade fez com que surgissem novos bens jurídicos, gerando a necessidade e tutela estatal de tais preceitos.

Essa necessidade impulsionou a uma expansão legislativa. A questão é que outros fatores foram desencadeados por esse crescimento de tipos penais. O princípio da proteção de bens jurídicos deixou de ser um critério negativo de punição para se tornar um conceito positivo de incriminação423. Isso significa que não mais se utiliza o bem jurídico penal como critério de exclusão de condutas irrelevantes, mas sim como meio de incriminar ações que sejam consideradas inadequadas em face do Poder Estatal.

Como consequência, o direito penal é aplicado de forma pedagógica. O legislador utiliza dos bens jurídicos para promover uma política criminal com o objetivo de moldar o comportamento dos cidadãos de forma a adequá-los aos interesses dos governantes. Assim, por meio de uma sensibilização social, se promove o controle populacional de condutas. Com fulcro em tal assertiva, Hassemer afirma que o direto penal se transformou em soft law, um mero instrumento de condução social424.

Tais fatores ampliam significativamente a área de abrangência do direito penal, ao mesmo tempo em que restringe o seu núcleo. Esse aumento provoca o que o autor

423

HASSEMER, 2007, p. 194.

424

denomina de déficit de execução425: o Estado não é capaz de processar e reprimir o grande número de infrações penais; a um grande aumento na área obscura do direito penal, com o incremento de tipos penais abertos; as normas são aplicadas de maneira desproporcional e injusta, impondo-se severas penas a delitos de menor gravidade.

Por esses e outros motivos é que o mestre teutônico postula a ineficácia do direito penal em face das novas necessidades da sociedade moderna. Segundo o ilustre professor, o direito penal deve se ater a proteção do que ele denomina de núcleo duro, que são os bens jurídicos mais importantes dentro da sociedade (vida, integridade física, liberdade, propriedade426). Os novos bens jurídicos, por sua vez, requerem uma proteção especial, um ramo jurídico novo: o Direito de Intervenção. Nas palavras do ilustre professor427:

É de grande significado que se afasta do direito penal os problemas que nos tempos atuais foram nele introduzidos. Poder-se-ia aconselhar, quanto àqueles problemas da sociedade moderna, que provocaram a modernização do direito penal, de que fossem regulados em um direito de intervenção especial, o qual está situado entre o direito penal e o direito da contrariedade à ordem pública, entre o direito civil e o direito público, o qual dispõe, na verdade, de garantias e de regramentos processuais menos exigentes que o direito penal, mas que, em contrapartida, está equipado com sanções menos intensas diante do indivíduo. Um direito de tal natureza “moderna” não seria somente menos grave normativamente, ele seria também, de fato, mais adequado para recepcionar os problemas especiais da sociedade moderna428.

Esse novo ramo do direito possui algumas características peculiares. Devido a dificuldade de individualização de condutas e consequentemente da delimitação de imputação na prática desses novos delitos, o direito de intervenção apresentaria regras processuais mais flexíveis, de modo a facilitar a persecução estatal. Por outro lado, com essa flexibilização de garantias processuais429, não seria possível a imposição de penas severas, como as penas privativas de liberdade.

Tal transformação atende ao postulado constitucional da proporcionalidade. Isso porque no caso da possibilidade de punições severas, assegura-se o individuo todo o rol de garantias processuais fundamentais a que ele tenha direito, ao passo que quando não

425

Ibidem, p. 201.

426

HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 2, n. 8, p.41-51, out./dez. 1994. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/228287602/Hassemer-Perspectivas-de-Uma-Moderna-Politica- Criminal>. Acesso em: 10 fev. 2017.

427

HASSEMER, op. Cit. P. 207.

428

Ibidem, p. 207.

429

há possibilidade de imposição de sanções drásticas, as garantias processuais sofrem ponderação em face dos princípios da efetividade processual e do principio da proibição de proteção deficiente, promovendo uma tutela real dos bens jurídico-penais.

As regras do direito de intervenção seriam compostas por uma mistura de dispositivos provenientes dos mais variados ramos jurídicos. Diogo Mentor, em obra derivada de sua brilhante tese de mestrado430 exemplifica como se daria essa integração de normas: o direito de intervenção teria regras sancionatórias advindas do direito administrativo; do direito civil, principalmente na parte de responsabilidade civil; do direito do trabalho; do direito tributário; e do direito penal, no tocante principalmente ao que concerne a proteção dos bens jurídicos.

No entanto, a característica mais marcante do direito de intervenção seria a elaboração de um conjunto de normas de prevenção técnica431. Tais normas nada mais seriam que resultados de investigações empíricas transmutadas para regras, com o intuito de prevenir lesões a bens jurídicos. Destarte, ao contrário do que acontece com o direito penal, um ramo jurídico de caráter majoritariamente repressivo, o direito de intervenção atuaria mais assiduamente na prevenção de lesões.

Essa prevenção se dá por variadas formas. A princípio, as decisões políticas devem ser claras e acessíveis a todos os cidadãos. Dessarte, existe maior transparência das decisões governamentais, o que possibilita a fiscalização efetiva por parte do cidadão, passando este último de simples objeto para ser tornar um verdadeiro fiscal do estado democrático de direito.

Também seria adequada a instauração de um novo perfil de polícia432. Segundo o douto alemão, a polícia não mais pode ser vista sobre o único enfoque de prevenção de delitos e de controle de risco433. A atividade policial vai além. Com o aumento da delinquência, a polícia tem papel fundamental na promoção da ordem social e também na manutenção da integridade estatal, com o objetivo final de extirpar o sentimento de insegurança que vem assolando a sociedade moderna.

Outra característica marcante do direito de intervenção seria o controle e prevenção de riscos. Diante da rápida velocidade das relações entre os indivíduos, o

430

Ibidem, p. 88.

431

OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Direito de intervenção e direito administrativo sancionador: o pensamento de Hassemer e o direito penal brasileiro. 2012. 256 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Faculdade de Direito - USP, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, P. 51 e ss.

432

MENTOR, 2016, p. 87.

433

HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: Bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1999, p.273-274.

Estado deve gerir os riscos gerados pelas atividades de produção434. Principalmente na seara da responsabilidade pelo produto, é mais significativo o controle político de atividades potencialmente lesivas do que a reprovação de condutas lesivas ao bem jurídico. Como expresso alhures, é de muito mais valia a prevenção do que a repressão. O direito de intervenção também se mostraria mais eficaz no combate a criminalidade empresarial. Isso se deve porque este ramo do ordenamento não exige a responsabilização pessoal do agente, já que aqui não vigora o princípio da pessoalidade, inerente a ciência penal. Ao mesmo tempo, é possível a imposição de penas pecuniárias severas em face dos crimes praticados pelas pessoas jurídicas. Neste sentido:

Nesse mesmo diapasão, outra característica que seria inviável de ser aplicada pela teoria clássica do direito penal, mas que foi incorporada ao direito de intervenção com o fito de proporcionar maior eficácia na tutela estatal é a dispensa da exigência de responsabilização pessoal, passando-se a admitirem-se responsabilidades coletivas, o que vai ao encontro da necessidade de incremento dos mecanismos de proteção e prevenção de ilícitos praticados por pessoas jurídicas435.

É por este motivo que parte da doutrina postula que o direito de intervenção seria uma alternativa viável a responsabilização dos entes coletivos, o que preservaria os princípios e garantias fundamentais do direito penal e promoveria uma maior eficácia na repressão da criminalidade empresarial.

O próprio Hassemer alude a essa função do direito de intervenção. Além de ser a forma mais indicada para a tutela do novo modelo social436, qual seja, a sociedade de risco, o direito de intervenção ainda cumpriria uma função de preservação do direito penal e do processo penal. Com a implantação do primeiro, nenhuma garantia processual necessitaria de relativização, nenhum principio penal perderia força. Os ilícitos cometidos por pessoas jurídicas não restariam impunes, ao passo que o direito penal se manteria íntegro.

434

HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1995, p. 197.

435

MENTOR, 2016, p. 85.

436“Acho que o Direito Penal tem que abrir mão dessas partes modernas que examinei. O direito penal

deve voltar ao aspecto central, ao Direito Penal Formal, a um campo no qual pode funcionar, que são os bens e direitos individuais, vida, liberdade, propriedade, integridade física, enfim, direitos que podem ser descritos com precisão, cuja lesão pode ser objeto de um processo penal normal”. In: HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 2, n. 8, p.41-51, out./dez. 1994. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/228287602/Hassemer-Perspectivas-de-Uma-Moderna-Politica- Criminal>. Acesso em: 10 fev. 2017.