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A culpabilidade psicológico-normativa (Normativa complexa)

6.1 Evolução do conceito tradicional de culpabilidade

6.1.2 A culpabilidade psicológico-normativa (Normativa complexa)

A teoria normativa complexa da culpabilidade possui seus maiores defensores no sistema neokanstista de delito. Aqui o direito é visto como uma ciência da cultura, sendo instalado um juízo de valoração jurídica, o que ocasionou a busca de uma fundamentação normativa para as diferentes categorias sistemáticas232.

227

MASSON, 2011, p. 438.

228

Segundo a mais nova doutrina, a imprudência consiste na prática de uma ação arriscada ou perigosa, com viés omissivo (culpa in faciendo ou in committendo). Já a imperícia é a falta de conhecimento ou capacidade técnica para a execução de determinada atividade (Não se confunde com erro profissional). Por fim, a negligência (culpa in ommittendo) é a displicência no momento da ação, ocorre quando o autor, podendo tomar os cuidados necessários, não o faz. Para maior esclarecimento vide: BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, P. 226.

229 “A culpa inconsciente, (...), ocorre quando não só não se deseja o resultado lesivo, como também não

se prevê, sequer, sua possibilidade: não há a representação do perigo”. In: PUIG, Santiago Mir. Direito Penal: Fundamentos e Teoria do Delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, P. 240.

230

ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 494.

231

Neste sentido: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, P. 275; BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 319; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 469.

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GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito. Disponível em: <file:///C:/Users/rafael silveira/Downloads/Messages.pdf>. Acesso em: 07 Jul. 2016.

Essa mudança de sustentação teórica, dando azo à preponderância das ciências da cultura sobre as ciências da natureza, ocasionou transformações nos elementos categoriais da teoria do delito. Nesta ocasião, principalmente a ilicitude e a culpabilidade sofrem forte incidência de carga normativa233.

Devido a essa nova formulação dos conceitos penais, a culpabilidade sofre algumas mudanças notáveis. Contudo, vale dizer que não existe apenas uma teoria da culpabilidade, sendo que a sua formulação variará de acordo com os diversos autores, tendo em comum este novo caráter normativo.

É exatamente por isso que, para compreendermos de forma satisfatória a concepção normativa pós-positivista, é necessário que analisemos os principais doutrinadores da época, de forma singularizada. Assim, elegemos as principais autoridades sobre o tema234: Reinhard Von Frank, James Goldschmidt, Berthold Freudenthal e por fim o ilustre Edmund Mezger.

No ano de 1907, Frank repensa o conceito de culpabilidade. Partindo do modelo clássico de delito, o douto alemão insere na estrutura da culpabilidade um elemento normativo: a reprovabilidade. O autor seria reprovável na medida em que não se coibiu da realização da conduta quando deveria fazê-lo. Assim dispõe Miguel Reale Junior:

Em FRANK, a culpabilidade é um conceito composto de elementos heterogêneos: a imputabilidade (normalidade psíquica), o vínculo psicológico (dolo e culpa) e ainda a normalidade das circunstâncias que obriga o agente a omitir a ação (reprovabilidade).

Sob tal enfoque, a excepcional ocorrência de circunstâncias anormais exclui a culpabilidade, pois, inserido em tal situação, não podia o agente se comportar em conformidade com o direito, sendo exemplo disso o que sucede no estado de necessidade235.

Portanto, para o professor teutônico, a culpabilidade, com fundamento na reprovabilidade do agente, consiste basicamente em um juízo de valor236 do fato em que o autor atuou, levando-se em consideração as circunstâncias concretas presentes no momento da conduta.

Goldschmidt desenvolve o pensamento de Frank, e fundamenta sua teoria com base em dois preceitos: norma de direito e norma dever237. A primeira consiste em

233

MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal: Prescrição funcionalista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 41.

234

PRADO, 2013, p. 469.

235

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 180

236

PRADO, op. cit., p. 470.

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mandamentos imperativos destinados aos indivíduos, os quais devem atuar em conformidade com tais regras, devendo conformar-se com o direito e nunca contrariá-lo (norma dever).

A ação do agente, pautada pela noção de norma de dever, possui íntima relação com a inexigibilidade de outra conduta: o agente será reprovado na medida em que poderia agir de outro modo diante das circunstâncias, mas será exculpado quando não seria justo cobrar-lhe uma ação de acordo com a norma de dever, tendo por base a situação em que se encontra238 (Por exemplo, quando a norma de dever exigir um sacrifício maior do que a lesão geraria).

Essa noção de inexigibilidade de outra conduta é aprimorada na doutrina de Freudenthal, ganhando maior autonomia. Baseado em uma valoração ético-social, a culpabilidade para tal autor consiste na reprovação do agente “por ter agido contra o direito, quando poderia não o ter feito”239

. A exigibilidade é catapultada do âmbito da justificação para a exculpação e ganha posição central no sistema de culpabilidade. Nesse diapasão:

Nota-se, pois, que surge a exigibilidade como elemento normativo autônomo da culpabilidade, comum, inclusive ao dolo e a culpa, e relacionada com a conduta adequada à norma. Este elemento é construído sobre o livre arbítrio e sua capacidade de autodeterminação conforme o sentido240.

Assim, com base na opção que o agente possui no momento da ação delituosa, a reprovação da conduta irá recair quase que exclusivamente sobre a exigibilidade de conduta adversa, esta fulcrada na consciência popular, aproximada ao ordenamento jurídico pela normativização dos conceitos241. Caso não seja possível exigir uma ação conforme os ditames legais, impossível também seria a imputação de crime a determinada pessoa, já que ela não possui poder de decisão no momento da ocorrência do fato.

Por fim, temos a doutrina de Edmund Mezger, considerada como o ápice da teoria psicológico-normativa da culpabilidade. Para ele, a culpabilidade era entendida como “situação fática e um juízo axiológico sobre ela versado”242

. O interessante aqui é que o juízo de culpabilidade passa a recair sobre o autor e não sobre o fato. É justamente 238 SANTOS, 2010, p. 276. 239 REALE JUNIOR, 2000, p. 135 240 MACHADO, 2010, p. 63. 241 REALE JÚNIOR, 2004, p. 183. 242 PRADO, 2013, p. 470.

por isso que a personalidade do agente, o seu caráter e a sua vida social ganham grande importância para a imputação criminal. Consagra-se a denominada culpabilidade pela

condução de vida243.

Esse modelo gerou uma séria consequência para aplicação do direito penal, já que a teoria de Mezger foi utilizada para basear diversas leis de caráter racista durante a vigência do nacional-socialismo alemão244. A culpabilidade baseada no autor ampliou o arbítrio estatal, permitindo intervenções desmensuradas na esfera íntima dos indivíduos.

De um modo geral, o modelo de culpabilidade psicológico-normativa mantem as estruturas da culpabilidade psicológica, aderindo a ela elementos de índole normativa: o dolo e a culpa continuam sendo integrados a culpabilidade, contudo, não mais se confundem com ela. Aqui tais elementos são bem delimitados, de modo a propiciar uma nítida conceituação de seus predicados. Vale lembrar que o dolo ainda é normativo, albergando o elemento da consciência da ilicitude.

A questão da imputabilidade também sofre mudança substancial. Não mais ela é vista como um pressuposto fundamental da culpabilidade, a exemplo do que se tinha na teoria psicológica. Aqui, assim como ocorre com o dolo e a culpa, ela nada mais é do que um dos elementos da culpabilidade.

Além disso, como já expusemos acima, insere-se um elemento normativo no seio da culpabilidade, que poderá variar conforme o autor a ser seguido. Mas, de um modo geral, tal elemento normativo se resume a exigibilidade de conduta diversa245, cuja verificação dependerá das circunstâncias ambientais presentes no momento da ação.

Tal sistema neoclássico de culpabilidade também foi alvo de críticas pela doutrina. Apesar das mudanças, este novo modelo manteve as principais estruturas da doutrina causal-naturalista. O que se buscou foi apenas uma reinterpretação dos conceitos sob um viés normativo246. Por isso, surgiu a necessidade de um novo pensamento penal, capaz de solucionar as falhas das doutrinas acima expostas, emergindo a teoria finalista do fato punível.

243 BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 318. 244 MACHADO, 2010, p. 65. 245 MASSON, 2011, p. 438. 246 PUIG, 2007, p. 414.