• Nenhum resultado encontrado

A pena como retribuição – As teorias absolutas

A noção de pena como retribuição é antiga na sociedade e extravasa a área do próprio direito penal. Antes de o Estado se consolidar como órgão de pacificação social, os conflitos entre os indivíduos eram resolvidos pela força bruta. As penas, se assim podemos chamá-las, eram impostas pelas próprias vítimas e, como tal, inegável era o seu caráter de retribuição. Este era o período conhecido como vingança privada323.

Contudo, apesar do caráter retributivo, essas sanções não eram impostas pelo Estado, já que a solução de conflitos por meio de um poder central somente consolidou- se com o advento da jurisdição. A partir desse momento o Estado passou a ser o único e exclusivo detentor do jus puniend.

O exercício desse direito de punir, para ser legítimo, exigia fundamentação teórica convincente. Surgem então as teorias absolutas dos fins da pena, que apesar de terem seu ápice no Estado Absolutista, onde era forte a influência da religião324, possui diversos adeptos nos dias atuais. A despeito de existirem posicionamentos específicos, de uma forma geral todas elas enxergam a sanção como uma forma de retribuição pelo mal causado pelo delito, buscando a justiça por imposição de um castigo ao criminoso –

punitur quia peccatum est325.

Talvez o maior expoente da doutrina absoluta se encontre em Kant. Mundialmente conhecido como um dos maiores filósofos de todos os tempos, o autor prussiano defendia que a pena não poderia ser vista sob um viés utilitarista326, como

323

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo.29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 29.

324

PUIG, 2007, p. 58-59.

325

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte geral - culpabilidade e teoria da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 64.

326

CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de penas, dogmática jurídico-penal e política criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002, p. 40.

postulado por Cesare Beccaria327, pois se assim o fizéssemos trataríamos o homem como meio, algo veementemente combatido por Kant, que entendia o individuo sempre como um fim em si mesmo.

O eminente filósofo entendia a pena como uma punição ao culpado. O autor, ao perpetrar o delito, ocasionou um mal, o qual deve ser combatido na mesma proporção da lesão gerada. A pena é um castigo pela prática do crime. É até por essa razão que Kant era favorável a aplicação da pena capital, já que ela impunha o mesmo sofrimento causado pela ação criminosa328. Nesta mesma linha temos o posicionamento de Hegel:

A teoria de Hegel tem ponto de contato com a visão kantiana da pena, quanto ao caráter retributivo, mas desta se diferencia por ter uma fundamentação jurídica, enquanto para Kant a fundamentação é ética. A reafirmação da vigência do direito está relacionada com a intensidade da negação deste Direito e determinará a intensidade da pena que o afirmará329.

Portanto, em Hegel a pena é a negação do delito, que por sua vez é a negação do direito330. O indivíduo, ao infringir a norma, atenta contra o estado democrático, o que por consequência ofende a vontade geral da população. Para combater tal comportamento, a pena emerge como a reafirmação da vontade popular e como resposta jurídica ao crime, ela é a negação da negação do direito331. Hegel, assim como Kant,

também era um defensor da pena de morte332.

327

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 7. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 18.

328 CAMARGO, 2002, p. 40. 329 Ibidem, p. 41 330 SANTOS, 2010, p. 422. 331

ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: Uma fundamentação para o direito penal. Curitiba: Lumen Juris, 2010, p. 64.

332 “Os dois maiores filósofos da época, Kant e Hegel – um antes, outro depois da revolução francesa –,

defendem uma rigorosa teoria retributiva da pena e chegam à conclusão de que a pena de morte é até mesmo um dever. Kant – partindo da concepção retributiva da pena, segundo a qual a função da pena não é prevenir os delitos, mas simplesmente fazer justiça, ou seja, fazer com que haja uma perfeita correspondência entre o crime e o castigo (trata-se da justiça como igualdade, daquela espécie de igualdade que os antigos chamavam de “igualdade corretiva”) – afirma que o dever da pena de morte cabe ao Estado e é um imperativo categórico, não um imperativo hipotético, fundado na relação meio- fim. Cito diretamente o texto, selecionando a frase mais significativa: “Se ele matou, deve morrer. Não há nenhum sucedâneo, nenhuma comutação de pena que possa satisfazer a justiça. Não há nenhuma comparação possível entre uma vida, ainda que penosa, e a morte; e, por conseguinte, nenhuma outra compensação entre o delito e a punição, salvo a morte juridicamente infligida ao criminoso, mas despojada de toda maldade que poderia, na pessoa de quem a padece, revoltar a humanidade”. Hegel vai além. Depois de ter refutado o argumento contratualista de Beccaria, negando que o Estado possa nascer de um contrato, afirma que o delinquente não só deve ser punido com uma pena correspondente ao crime cometido, mas tem o direito de ser punido com a morte, já que somente a punição o resgata e é somente através dela que ele é reconhecido como um ser racional (aliás, ele é “honrado”, diz Hegel). Num adendo, porém, ele tem a lealdade de reconhecer que a obra de Beccaria teve, pelo menos, o efeito de reduzir o número de condenações à morte”. In: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 151-152.

Outro estudioso que também defendeu a concepção retribucionista de pena foi Francesco Carrara. Este grande escritor italiano entendia o delito como um ente jurídico, uma infração à ordem vigente. Melhor dizendo, o crime consistia em uma violação do

direito como exigência racional333, e a pena, por consequência, visa retribuir

juridicamente o crime com fulcro na norma infringida.

De um modo geral, toda a Escola clássica (a qual tinha como autores, dentre outros, Beccaria, Carrara, Rossi, Filangieri, Feuerbach) adotava um conceito retributivo de pena, não moral no sentido de Kant, mas sim jurídico, como negação do crime, com base na violação da norma.

Com o advento do Estado democrático de direito, a grande evolução da teoria dos direitos fundamentais e principalmente a mudança de perspectiva sob a ótica dogmática, a pena como retribuição já não mais figura no centro da ciência jurídico- criminal. Porém, é incontestável a influência das teorias absolutas no direito penal moderno, como nos expõe Alamiro Neto:

Atualmente, sob a vigência de um Estado Democrático de Direito, não parece ser razoável a aceitação de uma perspectiva exclusivamente retributiva da pena, uma vez que sua racionalidade é abstrata, no sentido de realizar um ideal de justiça ou de recompor o Direito enquanto sistema normativo abalado. Isso não leva a crer que a visão retributiva não traga benefícios para um sistema penal moderno. Sua vinculação estrita ao princípio da proporcionalidade entre crime e pena é, sem dúvida, uma conquista essencial para a limitação do poder de punir do Estado (justiça distributiva)334.

7.1.1 Crítica às teorias absolutas da pena aplicadas as pessoas jurídicas

Mesmo que se aceite a retribuição como uma função válida da pena, a situação se complica quando transladamos o sujeito ativo de uma pessoa física para um ente coletivo. Como já demostramos em capítulos pretéritos, a pessoa jurídica não pode ser tratada da mesma forma que uma pessoa natural, o que inviabiliza a aplicação de certos institutos penais clássicos. Quando entendemos a pena como retribuição no sentido kantiano, realmente é clara a sua inaplicabilidade aos entes morais.

Isso porque, como exposto, a retribuição moral pressupõe que o apenado seja suscetível de sofrimento. O sujeito é castigado pelo cometimento do delito e deve penar com o mesmo mal que causou. Como o ente coletivo é um sujeito abstrato, sem

333

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 90.

334

NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Finalidades da pena: conceito material de delito e sistema penal integral. São Paulo: Quantier Latin, 2009, p. 214.

aparelho psíquico, é impossível falarmos em sofrimento no sentido moral. Claras são as palavras de Juarez Cirino dos Santos:

Primeiro, a reprovação de culpabilidade medida pela pena retributiva do crime não pode incidir sobre a vontade coletiva ou pragmática da pessoa jurídica, porque a psique impessoal e incorpórea da pessoa jurídica é incapaz de sofrimento ou de arrependimento, estados afetivos exclusivos do ser humano pressupostos na função de retribuição penal335.

Por essa visão, a retribuição não teria efeito algum sobre o ente moral. A imposição de um mal equivalente ao gerado pelo cometimento do delito teria repercussão apenas sobre as pessoas físicas componentes do ser coletivo, o que constitui uma séria lesão ao princípio da personalidade das penas, já que a sanção extravasaria à pessoa do condenado.

Porém, o desenvolvimento da dogmática penal trouxe novas formulações e alterou o modo de interpretação do direito penal. Desde a escola clássica a retribuição não mais é vista como uma resposta moral ao delito, mas sim como uma reação jurídica a prática da ação criminosa. Além disso, as novas teorias comunicativas possibilitaram que o ente moral seja reconhecido como sujeito responsável, com vontade própria e capaz de ser culpável, independentemente da ação das pessoas físicas que o integram.

É nesta senda que atualmente, no cenário penal empresarial, surge a teoria da

retribuição comunicativa da pena336. Amplamente ligada com a doutrina da culpabilidade construtivista, apresentada no capítulo anterior, a retribuição comunicativa é aquela que visa contribuir para o restabelecimento comunicativo da norma. A pena constitui-se em uma resposta ao delito e possui como intento reforçar a fidelidade ao direito, tanto por parte do condenado como da sociedade (temos aqui certa ligação com a prevenção geral).

Portanto, a possibilidade de consideramos a retribuição como uma função válida da pena nos crimes cometidos por pessoas jurídicas variará de acordo com o posicionamento científico adotado. Se nos ativermos à visão moral, realmente impossível consideramos a retribuição como válida na criminalidade das empresas. Contudo, essa doutrina encontra-se ultrapassada. As recentes formulações, tanto da função da pena como das estruturas da pessoa jurídica, abrem azo para novas

335

SANTOS, Juarez Cirino dos. Responsabilidade penal da pessoa jurídica In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coord.) Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação subjetiva. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 281.

336

interpretações penais, fundamentando de forma coerente o fim retributivo da pena sobre os entes coletivos.