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CAPÍTULO 3 ALÉM DA NORMA

3.1 A ABORDAGEM LINGÜÍSTICA E SEUS LIMITES

O conhecimento não nasce como uma fagulha de luz incandescendo nas trevas de um intelecto sombrio. Não é um momento isolado e definitivo que espalha razão como sementes por um solo deserto.

Tampouco é uma brisa passageira, que vem não se sabe de onde e se insinua para quem tem a sorte de inspirá-la. Não é uma encomenda que se traz de fora, pronta e embalada como um presente, aguardando liberação na alfândega.

Não há caminhos simples para o conhecimento. Discutir se o conhecimento nasce fora do indivíduo ou dentro do intelecto é apenas metade da questão. Melhor dizendo, é apenas o início da questão.

Este trabalho, pisando nas pegadas deixadas por Peirce, adota uma fenomenologia de matriz mais ontológica. A partir daí começam as discussões sobre o conhecimento. Mesmo para quem segue um entendimento diverso, as dificuldades enfrentadas provavelmente serão as mesmas.

Além das discussões sobre percepção, experiência e categorização, já sugeridas nos capítulos anteriores, um estudo desse assunto implica questões sobre a comprovação e a transmissão do conhecimento. As possibilidades de validação ou comprovação do conhecimento orientam ainda uma série de discussões ligadas principalmente ao método e ao cientificismo. A epistemologia trata deste tópico com muito mais propriedade.

A transmissão é um elemento fundamental de uma teoria do conhecimento. Somente após a verificação dessa característica é possível aplicar as idéias sobre o conhecimento ao contexto em que ele mais costumeiramente se manifesta – o social68. Por mais que as discussões sobre método e ciência interessem a quem mais de perto se dedica à

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Segundo Tobias Barreto (2001, p. 20), “a sociedade é a categoria do homem, como o espaço é a categoria dos corpos”.

pesquisa, as implicações das questões sobre transmissão afetam todo o espectro de indivíduos integrantes da rede social. Até mesmo quem produz conhecimento sem saber que o faz.

Despindo, assim, todos os preconceitos cientificistas e toda exigência formal de método, é preciso reconhecer que o conhecimento, sob qualquer forma, é produzido por todos, a todo momento, como uma pulsão humana de explicar a realidade que o cerca. O que se verifica na sociedade, portanto, é um entrelaçamento constante de noções de realidade, sendo superpostas, adaptadas, resistidas, formando um grande tecido representativo da tendência de um grupo a explicar o seu mundo.

Para esse encontro de idéias, é preciso que as vias estejam desobstruídas. É necessário um canal de transmissão que seja suficientemente abstrato para conter toda a gama de conhecimento possível e concreto o bastante para ser entendido por todos os indivíduos. Além disso, requer um conjunto de regras socialmente ancoradas, ou seja, com mecanismos de atualização constante sem que se perca a identidade do sistema.

A língua foi o meio que se mostrou mais propício a essa função. É um sistema de símbolos relativamente simples e intuitivo, de fácil assimilação. Conta com uma dupla articulação (no caso das línguas ocidentais) – em fonemas e morfemas, por exemplo – que permite a formação de um número infinito de textos com uma quantidade reduzida de símbolos elementares. Ainda, como sugerido no capítulo anterior, é um sistema que se fortalece mais, conquista maior legitimidade, na medida em que é usado.

Não se pode negar que é muito usado. A generalidade da língua permite que seja o canal padrão para qualquer tipo de debate. Este trabalho, por exemplo, redigido em vernáculo em forma escrita, dificilmente poderia ser de outra forma. A língua domina a comunicação social.

Por esse motivo, a filosofia contemporânea (assim como uma lingüística mais apurada e uma teoria da comunicação) passou a dar destaque à língua como fenômeno digno

de estudo. Não é de forma alguma uma descoberta recente, mas é como se no passado a maioria dos pensadores tivesse feito uso de lentes sem perceber que estavam lá. No estágio atual, as lentes passam a ser o objeto de análise, em um movimento chamado de “virada lingüística”69.

Este momento representa a superação de um paradigma na discussão filosófica70. O foco anterior, em uma filosofia da consciência, já demonstrava sinais de saturação, enquanto questões de ordem mais concreta trouxeram à tona o debate sobre a transmissão de idéias71.

A partir de então, a análise comunicacional produz frutos dos mais variados matizes e sabores. A linguagem passa para o centro do palco, na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann72, na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas73, só para citar os mais conhecidos neste âmbito da filosofia jurídica. Trazendo a contribuição estritamente lingüística, desde as posições mais estruturalistas até a análise da enunciação, vale a pena ressaltar o trabalho da escola da Análise do Discurso74 francesa, reconhecendo o papel da língua como veículo de transmissão de ideologias, em uma definição bastante sucinta.

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A “virada lingüística” não apenas transforma o debate filosófico, mas principalmente o lingüístico: “de mais a mais, a guinada lingüística colocou o filosofar sobre uma base metódica mais segura e o libertou das aporias da teoria da consciência. Neste processo configurou-se, além disso, uma compreensão ontológica da linguagem, que torna a sua função hermenêutica, enquanto intérprete no mundo, independente em relação ao processos intramundanos de aprendizagem e que transfigura a evolução dos símbolos lingüísticos inserindo-os num evento poético originário” (HABERMAS, 1990, p. 16).

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Sobre os paradigmas – do ser, da consciência e da linguagem – na filosofia, vale a pena verificar a consideração de Habermas (1990, p. 21-22).

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Sobre isso, convém ressaltar que a “virada lingüística” é uma proposta de superação desses sinais de esgotamento: “uma solução mais sólida delineia-se ao abandonarmos a pressuposição um tanto sentimentalista da perda do abrigo metafísico e entendermos o vaivém entre a consideração transcendental e a empírica, entre a auto-reflexão radial e o imemorial inalcançável por meio da reflexão, entre a produtividade de uma espécie que gera a si mesma e o originário que precede toda produção – se entendermos portanto o jogo enigmático dessas duplicações como aquilo que realmente é: um sistema de esgotamento. O que está esgotado é o paradigma da filosofia da consciência. Se procedermos assim, certamente devem se dissolver os sintomas de esgotamento na passagem para o paradigma do entendimento recíproco” (HABERMAS, 2000, p. 413-414).

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Especialmente em relação às expectativas cognitivas (LUHMANN, 1983, p. 53).

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A importância das estruturas simbólicas e da comunicação foi relacionada por Jürgen Habermas (1990, p. 97), quando afirma: “considerada em sentido mais amplo, como um mundo da vida estruturado simbolicamente, a sociedade se forma e se reproduz apenas através do agir comunicativo”.

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É importante mencionar que “nos anos 60, a Análise do Discurso se constitui no espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise” (ORLANDI, 2002, p. 19). Ainda sobre a Análise do Discurso, “pode-se

Por tudo isso e tantas outras revelações que restaram implícitas, não é exagero admitir que não se pode tratar da transmissão de conhecimento sem analisar a língua. Como este trabalho adota a posição de que o conhecer está ligado ao transmitir, a língua conformaria muito da forma humana de pensar.

No cenário atual, o que justifica o resgate da semiótica, especificamente na sua matriz peirceana, é uma conclusão silenciosa mas latente que alguns estudos da comunicação já começam a apontar. Ao assumir seu papel de destaque na transmissão de conhecimento, a língua foi reconhecida como única, como um sinônimo lógico de linguagem.

Ao desconsiderar a desinência plural das linguagens, a maioria das obras relacionadas à “virada lingüística” toma uma parte – a linguagem de articulação verbal – pelo todo – o universo comunicativo75. Em suma, a língua, a linguagem verbal, impõe às demais formas de linguagem a mesma transparência e obscuridade a que foi condenada no passado.

A língua sempre é um meio de comunicação, mas a recíproca dessa afirmação não é verdadeira. Séculos atrás, Charles Sanders Peirce já sinalizava para a necessidade de considerar outros sistemas de signos, impulsão que se concretizou na sua teoria semiótica. Esta é a razão pela qual a semiótica peirceana, menos limitada pelos contornos da língua, é o instrumento ideal para a análise de sistemas de signo não inteiramente lingüísticos76.

É o caso notório do direito. A maior parte das análises elaboradas, mesmo aquelas que se declaram como semióticas, paga o elevado preço de um tributo lingüístico. A hipótese deste trabalho é de que existe algum aspecto do direito que não se reveste de componente lingüístico. Talvez seja até mesmo uma estrutura simbólica própria. De qualquer forma, vale a

dizer que a AD é uma teoria da leitura, ou melhor, que ela formula uma teoria da leitura que se institui rompendo fundamentalmente com a análise de conteúdo, por um lado, e com a filologia (e também com a hermenêutica), por outro” (POSSENTI, 2004, p. 358).

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Portanto, língua e linguagem não podem ser tomadas por sinônimos (BRAGHIROLLI et al., 1994, p. 40).

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pena ressaltar outras linguagens, outros meios de comunicação social, para verificar se realmente afetam o direito ou são por ele afetados.

Evidentemente, toda hipótese pode ser falsa. É possível concluir – ou manter a opinião – de que o direito é lingüístico por essência. Ainda assim, a proposta é necessária e seus esforços de elaboração são válidos.

Afinal, tratando de direitos, o estudante – coisa que todo pesquisador é – tem o direito de errar e o dever de investigar.

Silenciar é a única impossibilidade.