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CAPÍTULO 3 ALÉM DA NORMA

3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE EXEMPLO E ÉTICA

Pelo que foi visto neste capítulo, a semiótica das condutas é a que fornece um modelo mais adequado para a função jurídica de regulação de condutas. Os modelos lógicos e lingüísticos são formas incompletas de explicação do fenômeno jurídico e, como explicado, são convenientes para a garantia de uma forma de dominação, por meio da imposição de um sistema de símbolos de comportamento.

Foi evidenciado também que a norma jurídica deriva de um conjunto de valores individuais voltados para a manutenção de uma situação de privilégio. Essas constatações fazem perceber que, na semiótica das condutas, a crise do sistema simbólico decorre do distanciamento entre a noção de realidade social esperada pela norma (interpretante imediato) e aquela verificada pela maioria dos indivíduos (interpretantes dinâmicos).

Quando uma norma é apresentada como padrão de conduta, substitui os padrões sociais difusos e, portanto, os valores sociais vigentes. Há, assim, um desvio na relação de determinação do signo (valor) pelo objeto (conduta), em que a norma é assimilada pelos indivíduos como signo na expectativa de que o seu interpretante (noção de realidade social) seja mais eficaz que os outros disponíveis por supostamente ter mais poder de explicação do real.

Todavia, geometricamente, todo desvio da relação de determinação do signo pelo objeto implica um desvio proporcional da determinação do interpretante. A noção de realidade resultante, portanto, é muito desviada daquela que seria obtida (interpretante final) se a semiose seguisse, infinitamente, os padrões sociais vigentes.

Trata-se de um desvio aparente, por certo. Para os indivíduos, há um hiato incompreensível entre a expectativa que apresentavam ante a norma e a situação consolidada após sua aplicação. Para os que detêm o poder de decisão sobre a norma, não há desvio,

porque a função de manutenção da situação, originariamente planejada, é inevitavelmente cumprida107.

A crise do sistema jurídico é uma crise simbólica, portanto. A norma é satisfatoriamente eficaz naquilo a que ela realmente se propõe, manutenção de uma situação sociopolítica. O ordenamento não é eficaz no atendimento às expectativas dos indivíduos, aquilo que supunham que seria a função da norma, o atendimento aos valores sociais. O problema está nessas expectativas ilusórias e não atendidas. São expectativas baseadas em visões limitadas da realidade108, induzidas pelo sistema jurídico simbólico.

Evidentemente, como a frustração de expectativas leva à crise do sistema simbólico, é conveniente para os titulares do poder de decisão manter esse descompasso em níveis toleráveis. Isso justifica a adoção de medidas, jurídicas ou comunicativas, para reforçar a confiança no sistema simbólico. No final das contas, a noção distorcida da realidade é mantida, assim como, em certo grau, as expectativas ilusórias109 sobre a eficácia da norma jurídica110.

O cenário descrito neste capítulo revela uma situação de sobreposição dos valores individuais aos coletivos, por parte dos agentes sociais com poder de decisão relevante sobre a validação de padrões de comportamento. As decorrências em relação à formação de uma relação semiótica jurídica distorcida já foram apreciadas.

107

É significativa uma analogia com o que David Harvey (1992, p. 301) descreve como uma condição pós-moderna: “o pós-modernismo surgiu em meio a este clima de economia vodu, de construção e exibição de imagens políticas e de uma nova formação de classe social. A existência de algum vínculo entre essa eclosão pós-moderna, a construção de imagem de Ronald Reagan, a tentativa de desconstruir instituições tradicionais do poder da classe trabalhadora (os sindicatos e os partidos de esquerda) e o mascaramento dos efeitos sociais da política econômica de privilégios deveria ser bastante evidente. Uma retórica que justifica a falta de moradias, ,o desemprego, o empobrecimento crescente, a perda de poder etc. apelando a valores supostamente tradicionais de autoconfiança e capacidade de empreender também vai saudar com a mesma liberdade a passagem da ética para a estética como sistema de valores dominante”. Para ser mais atual, só mesmo substituindo a referência nominal pelo atual dirigente da maior potência bélica do mundo!

108

Que podem ser relacionadas às idéias de falácias não-formais (WARAT, 1994, p. 155) do discurso jurídico.

109

A relação de expectativas recíprocas entre indivíduos e instituições produz efeitos interessantes: “a tendência da criança, e dos adultos também, é a de corresponder às expectativas (mesmo as negativas), criando- se o que se chama de ‘profecia auto-realizadora’” (BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 36).

110

Um agravante é o potencial comunicativo que um comportamento como esse carrega, em si. O indivíduo que age dessa forma evidencia que tem interesses em atingir e manter posições de privilégio dentro do grupo social, ainda que para isso seja necessário desconsiderar valores sociais mais gerais.

Este é um tipo de comportamento que, por influência mimética, pode vir a ser tomado pelos demais indivíduos como modelo de conduta. Isso é ainda mais intenso quanto mais destacada for a posição de liderança do agente em questão.

É importante reforçar que a comunicação levada a efeito pela conduta não depende (é mais significativa do que) da comunicação proveniente do discurso do agente. Então, aquilo que o indivíduo de destacada posição social faz, mais do que aquilo que diz, é assimilado pelos membros da sociedade como um padrão de conduta.

Quando o comportamento decorre de um agente que desempenha papel importante no Estado ou no direito, é possível ainda uma associação extrajurídica e colateral entre seu ato e o padrão oficial de conduta representado pelo ordenamento jurídico. Isso reforça ainda mais o caráter modelar daquela ação.

Se essa conduta, naquilo que é externa e compreensível, evidencia uma concessão aos valores individuais, mais do que aos sociais, há uma tendência de que seja tomada como paradigma e, portanto, repetida mimeticamente. Vale a observação de que a repetição de valores individuais também acontece de forma individual, ou seja, de forma que o próprio agente seja beneficiado.

É por essa razão que os valores individuais não são boas fontes de valores sociais. Inclusive, é comum a contradição entre essas duas categorias, no âmbito social. A formação de um grupo social envolve, assim, o desestímulo à busca de valores individuais, em favor de benefícios que possam ser compartilhados pelo grupo111.

111

No ponto de vista ético, o desestímulo ao individualismo é um retorno a uma ética mais objetiva, como a idéia contida no imperativo categórico kantiano: “que os princípios subjetivos das ações, ou sejam as máximas,

Sempre há, todavia, aqueles que conseguem identificar, nos padrões de valores sociais, as formas de fazerem valer seus interesses próprios. O paradoxo desse comportamento é que tende a ser tomado como um padrão, mas sua repetição compromete a manutenção das próprias relações sociais.

A alternativa usualmente adotada é a tentativa de minimizar o poder comunicativo da conduta própria. Agir às escuras é a forma mais óbvia. Outra forma mais sutil e elaborada é o fortalecimento de outros sistemas simbólicos diversos da conduta – para isso cabem perfeitamente o discurso lingüístico ou a norma jurídica – para evitar o efeito mimético do próprio comportamento.

Aí está, portanto, mais um motivo para o estudo de outros sistemas simbólicos além do jurídico e além do lingüístico. Um signo como o comportamental pode revelar algumas informações importantes sobre a estrutura da realidade social que estejam sendo propositadamente mascaradas pela saturação dos outros discursos.

Afinal, em terra de cego, quem tem um olho é rei... ...desde que mantenha os outros cegos.

O comportamento humano tem um potencial comunicativo imensurável, principalmente quando pode ser tomado como modelo de conduta. No nosso cenário de crise do sistema jurídico simbólico, a busca por modelos de comportamento é um dos aspectos menos considerados pelo direito.

É a doutrina do exemplo, que tem pouco lugar em um sistema jurídico normativo, prescritivo e repressivo. Como exemplo convém entender o potencial mimético que a conduta possui, em si, de determinar outras condutas no mesmo sentido – para o bem ou para o mal.

Em um sistema jurídico que não atende às expectativas dos indivíduos, a ilusão da segurança jurídica desaparece. Assim, o conhecimento de que outro indivíduo agiu de uma

têm que ser tomadas sempre de modo que valham também objetivamente, isto é, universalmente, como princípios e possam servir, portanto, para nossa própria legislação universal” (KANT, 1981, p. 104).

forma e obteve êxito é a melhor garantia para agir da mesma forma, certeza muito maior do que a conferida por qualquer norma jurídica. Inclusive, vale contra a norma jurídica, se a certeza do sucesso for maior que a certeza da punição.

O caso é mais complexo quando são adicionados fatores como a massificação do consumo, a hegemonia do capitalismo, a extrapolação das liberdades individuais e a ausência de responsabilização112. Nesse contexto, uma espécie de liberalismo social, a conquista de valores individuais determina o sucesso e a ascensão social do agente.

Enquanto os valores sociais são responsáveis por manter o mínimo de coesão do tecido social, os padrões de comportamento gradativamente estimulam mais a competição do que a cooperação entre indivíduos. É um círculo vicioso, em que os casos de sucesso servem de exemplo simbólico para que outros sigam o mesmo caminho.

Aonde quer que ele leve.

Trata-se de um relativismo ético sem precedentes. A lógica do utilitarismo113, levada ao extremo, resultou no reconhecimento de que os interesses individuais são um fim em si mesmo, com influência epicurista114. É curioso perceber como mesmo o termo epicurismo é pálido para descrever a situação de boa parte da sociedade contemporânea, uma vez que até mesmo os epicuristas condenavam os excessos, por serem causa de sofrimento posterior (VALLS, 2004, p. 44).

112

Sobre as conseqüências éticas, é válido o alerta de Nelson Saldanha (1999, p. 108): “na opção entre ética de deveres e ciência social relativizante, o mundo ocidentalizado tendeu a esta última, com a alusão fácil aos direitos e com a crescente permissividade”.

113

A definição de utilitarismo vem de um de seus maiores divulgadores, John Stuart Mill: “a doutrina que aceita a Utilidade ou o Princípio da Maior Felicidade como o fundamento da moral, sustenta que as ações estão certas na medida em que elas tendem a promover a felicidade e erradas quando tendem a produzir o contrário da felicidade” (STUART MILL, 2000, p. 30).

114

Vale a pena conferir, ainda, na mesma obra, sua associação a Epicuro (p. 29) e a seguinte afirmação, que dá uma boa noção do contexto atual: “entre dois prazeres, se houver um ao qual todos, ou quase todos, os que experimentaram ambos dão uma decidida preferência, independente de qualquer sentimento de obrigação moral para preferi-lo, é esse o prazer mais desejável. Se aqueles familiarizados, de modo competente, com ambos os prazeres, consideram um deles tão superior ao outro que o preferem mesmo sabendo que ele será acompanhado por uma maior soma de dissabores, e se não recunciam a ele em troca de qualquer quantidade do outro prazer que sua natureza é capaz de experimentar, então, estamos justificados em atribuir ao gozo preferido uma qualidade superior que excede de tal modo quantidade que esta se torna, em comparação, pouco importante” (STUART MILL, 2000, p. 32).

Então, imediatismo e individualismo não são apenas rimas, são rumos nas relações sociais vigentes. Infelizmente, o sistema jurídico não cumpre um papel adequado na afirmação dos valores sociais, de um lado porque talvez não tenha interesse, de outro porque talvez seja impotente para tanto.

O indivíduo é, assim, a bola da vez. Nesse sentido, talvez uma das contribuições mais relevantes da semiótica das condutas seja o reconhecimento de que qualquer sujeito, agindo, pode transformar a sociedade em que vive.

Por isso, cabe destacar a necessidade de discutir as condutas como signos, como formas de comunicação e interação social. Considerando que são os valores sociais que ocupam o lugar de signo nessa semiose, promover essa discussão nada mais é que resgatar o debate moral.

O paradoxo do individualismo é que acarreta a perda da individualidade, por meio da massificação. É esse estímulo amoral que firma as bases para os padrões de comportamento do novo milênio.

O choque entre os valores sociais e os individuais supera o poder de explicação dos sistemas jurídicos e lingüísticos. Não se pretende uma substituição, mas é o caso de completar esses dois, respectivamente, com conteúdos éticos e comportamentais – que numa cadeia semiótica infinita, são a mesma coisa.

Reforçar a discussão ética é uma forma de trazer à tona os valores sociais e estimular o seu reconhecimento pelo sistema jurídico. Para tanto, o direito precisa ser liberto da abstração e do dogma, para que possa resgatar o contato perdido com a conduta em sua concretude e como ponto de partida. A idéia de superação de valores não é estranha para os estudiosos da obra de Peirce, para quem “na ética, como na ciência, nós agimos pelos nossos conjuntos de crenças orientados pela experiência, enquanto descobrindo que eles podem ainda ser superados por experiências posteriores” (MISAK, 2004, p.165).

A própria ética contemporânea precisa explicitar uma orientação ancorada nesse cenário, sem medo de rever posições. A superação da ética absoluta pode ter sido uma conquista, no sentido de permitir discussões referentes a contextos sociais e políticos concretos115, mas também está sendo uma boa desculpa para que valores individuais sejam afirmados como valores sociais – ou, pior ainda, para que não seja afirmado valor algum.

O comportamento, por sua vez, tem como acrescentar uma nova dimensão aos estudos das linguagens, basta que seja explicitado o seu poder comunicativo. Ao somar ação ao que apenas é discurso, toda a força da língua é direcionada para um papel mais ativo e explícito de transformação da realidade.

É a passagem de uma filosofia da linguagem para uma filosofia da ação – com muita conformidade com as idéias defendidas pelo pragmatismo116. Não é coincidência que seu ponto de partida também tenha sido Charles Sanders Peirce. O filósofo americano também empreendeu estudos na área da ética117, em que defende, entre outras considerações, que não se pode acreditar irrestritamente em objetivos limitados, como indivíduos ou instituições, mas que se deve manter a fé em comunidades capazes de acolher a todos, além de qualquer fronteira (FEIBLEMAN, 1970, p. 385-387).

Mais uma vez, o exemplo transparece cada vez mais como uma ação política, em si. A boa notícia, nesse contexto de crise, é que os grupos sociais individualistas mas não individualizados consideram o comportamento auto-referente como padrão. Assim, ações em sentido oposto118 tendem a fazer a diferença.

115

Aqui é preciso distinguir entre relatividade ética – a dependência de contextos sociais e históricos específicos – e relativismo ético – a possibilidade de admitir como igualmente válidas condutas opostas, na mesma situação. Para mais explicações, convém recomendar a leitura de Adolfo Sánchez Vázquez (2000, p. 259- 264).

116

Merece menção a avaliação feita por Hans Lenk (1990, p. 37) sobre a filosofia voltada à ação e razão pragmática desde as idéias kantianas.

117

Para Peirce, as ciências normativas (estética, ética e lógica) são também teóricas. A estética fundamenta a ética e esta a lógica, já que o comportamento devido é o mais admirável e defender que um argumento é ilógico encerra um julgamento moral (MISAK, 2004, p. 170).

118

Não se espera um comportamento altruísta, mas pelo menos uma ação pró-social. Para uma diferença entre os dois conceitos, vale consultar as explicações de Aroldo Rodrigues (1999, p. 246).

É um passo para a transformação de valores. É a possibilidade de alinhamento entre interpretante imediato, interpretantes dinâmicos e interpretante final119. É a chance de encontrar um ponto de convergência entre direito e ética, entre padrões de conduta e valores sociais120.

A semiótica das condutas tem potencial para fornecer os instrumentos teóricos, mas a responsabilidade de ação, como sempre foi, é de cada indivíduo. Qualquer um pode promover uma transformação.

Exceto, é claro, aqueles que estão satisfeitos.

119

Há, em Marike Finlay (1990, p. 142-143), uma associação significativa entre o interpretante final de Peirce e a as idéias de utopia, defendidas por autores como Robert Musil.

120

Na linha teórica de Peirce, o comportamento ético também evidencia o ideal lógico, uma vez que considera que “apenas as inferências de uma pessoa capaz de heroísmo e auto-sacrifício são realmente lógicas” (SHERIFF, 1994, p. 80).

CONCLUSÕES

Em síntese, foi apresentada a estrutura geral de alguns modelos de signos jurídicos, diferentes mas complementares, com base na aplicação da semiótica de Charles Sanders Peirce. Muitas das idéias resultantes dessa pesquisa, bem como a crítica respectiva, já foram apresentadas no encerramento de cada capítulo. Além dessas considerações, o exercício de tradução proposto – entre o sistema jurídico normativo e as categorias da semiótica peirceana – traz à tona três outras conclusões.

Em primeiro lugar, tanto os códigos kelsenianos quanto os peirceanos manifestam características comuns de pretensão de universalidade, formalismo e categorização, com nítida influência kantiana em ambos. Com isso, o direito normativo também pode ser considerado como uma vítima da sedução da estrutura descrita no capítulo primeiro. Nessa disciplina, as estruturas são tomadas como objeto e há uma crescente auto-referência no discurso.

Após a modelagem levada a efeito no capítulo segundo, é possível verificar que a ênfase em abordagens normativas do direito é responsável pelo seu distanciamento das condutas originárias. Os modelos jurídico-normativos apresentados, como visto nos últimos capítulos, são mais coerentes quanto menos ligados estiverem às situações concretas, como forma de preservar a determinação do signo pelo objeto. No caso dos modelos lingüístico- jurídicos, o caso ainda é mais evidente, porque a auto-referência é típica do encadeamento semiótico por aperfeiçoamento, em que a sucessão de interpretantes orbita em torno de um mesmo objeto comum. Em simples palavras, a enunciação de normas em formas cada vez mais gerais e as discussões circulares sobre hermenêutica e conceituação jurídica contribuem para que o direito seja tomado como um fim em si mesmo.

Se nesse aspecto, a tradução das duas disciplinas revelou similaridades, também tornou evidente um importante ponto. Para desespero de Häberle, o sistema jurídico formal é, por sua vinculação estatal, um código social de hermenêutica fechada, em que um grupo restrito de intérpretes é responsável pela determinação dos elementos da semiose. A teoria de Peirce, por sua vez, é hodogética, no sentido de que direciona o entendimento, mas admite variações conceituais. A semiótica americana – com a noção de interpretante dinâmico – e a lingüística de Saussure – com o conceito de fala – fortalecem ambas o potencial dinâmico e transformador do uso, questão que, propositadamente, é abafada pelo direito.

Em relação à tradução, portanto, é possível concluir que não há uma compatibilidade absoluta entre as duas teorias. Não é possível tratar o direito como sistema semiótico, comunicativo, sem questionar a relação entre as situações (objeto) e as normas resultantes (signo). Para que haja uma relação triádica, é preciso que haja também uma determinação – que os fatos determinem as normas – e, como visto, esse é o ponto fraco da modelagem. Insistir na semiótica jurídica sob o ponto de vista da norma tende a explicitar essas fendas e reforçar a idéia de intradução.

Isso ocorre porque, dentro de modelagens normativas, o sujeito cognoscente opera estritamente no limite do formal, ou seja, nos signos mais tardios de uma cadeia semiótica formada por abstração. Apesar da teoria dos signos de Peirce ser universal o suficiente para permitir esse tipo de abordagem, isso contradiz em certo ponto a idéia de que a experiência é o ponto inicial do conhecimento. Em uma cadeia semiótica regular, esse distanciamento proporcionado pela abstração é facilmente superável pela natureza dinâmica e contínua da semiose, que permite a verificação dos signos em toda sua extensão, de um pólo remoto ao outro. Esse acesso é importante para permitir, no momento da percepção de novas idéias, um julgamento contínuo de adequação que pode gerar, nos casos de percepção equivocada ou absurda, uma correção devida para preservar a sua integridade.

Na semiose jurídica, por outro lado, o dogma impõe uma quebra na cadeia, como visto, e impede o acesso aos seus signos mais primários. Se por um lado isso estimula a padronização e a difusão de conceitos, por outro prejudica a flexibilidade necessária para lidar com as percepções posteriores. Essa cadeia semiótica está protegida pela coatividade estatal e, portanto, não pode ser simplesmente descartada como inadequada. O que ocorre, então, é que a percepção, como atividade criativa, estabelece seus próprios instrumentos de superação dos absurdos e o deslocamento de sentido, da norma jurídica a signos não-jurídicos, foi a forma apontada por este trabalho.