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CAPÍTULO 3 ALÉM DA NORMA

3.4 DIREITO E SEMIOSE DAS CONDUTAS

Pelo que foi visto, a análise semiótica dos comportamentos humanos revela a conduta, como objeto, determinando valores sociais (e individuais), como signos, e noções da realidade social ou representações sociais, como interpretantes. Assim como todos os signos, estes também podem sofrer encadeamentos, formando cadeias semióticas.

No movimento de aperfeiçoamento, os interpretantes são tomados como signos, sucessivamente, para determinar novos interpretantes. O resultado é a elaboração de uma noção de realidade cada vez mais complexa, voltada a uma explicação cada vez mais elaborada e próxima da ação-objeto analisada.

O movimento de abstração também permite o encadeamento de signos, mas de forma diversa. Quando o signo torna-se objeto e o interpretante atua como seu signo, o novo interpretante produzido vai fazer referência ao signo da primeira relação, não ao seu objeto. Há, portanto, uma sobredeterminação de informações como no aperfeiçoamento, porém cada vez mais distante do objeto original101.

O direito contemporâneo parece ter seguido por essa última linha. A valoração de uma conduta pode ser valorada em seguida, com o resultado sendo também valorado, em uma sucessão infinita de determinações, cada vez mais abstratas, que respondem às pretensões de universalidade mas perdem contato com o objeto real.

O outro movimento de semiose, o aperfeiçoamento, pode ser verificado nas relações triádicas das condutas em outras áreas do conhecimento. É o caso exemplar da sociologia, antropologia, ciência política e demais teorias sociais. Há um esforço descritivo em compreender melhor as condutas, com a constante valoração dos resultados. Como já explicitado, o resultado é o desenvolvimento de uma noção da realidade cada vez mais próxima do conduta-objeto.

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O hiato entre o particular e o abstrato é descrito por Jürgen Habermas (2000, p. 477-478) nos seguintes termos: “sobre o pano de fundo dessa experiência mental delineiam-se linhas fatuais da evolução dos mundos da vida modernos: a abstração das estruturas universais do mundo da vida em relação às configurações sempre particulares das totalidades de formas de vida, apresentadas sempre no plural. No plano cultural, os núcleos da tradição que garantem a identidade se separam dos conteúdos concretos, com os quais outrora estavam estreitamente entretecidos nas imagens míticas do mundo. Reduzem-se a elementos abstratos como conceitos de mundo, pressupostos da comunicação, procedimentos argumentativos, valores fundamentais abstratos, etc. No plano da sociedade, princípios universais se cristalizam, partindo dos contextos particulares a que estavam presos nas sociedades primitivas. Nas sociedades modernas, estabelecem-se princípios de ordem jurídica e moral, cada vez menos talhados às formas particulares de vida”.

Certamente, esse modelo de encadeamento é mais adequado às ciências descritivas, que propõem uma compreensão do real. O direito, como disciplina prescritiva102, deveria buscar outros modelos, como a abstração. Todavia, o ponto principal da crítica ao método jurídico é que há um desuso do aperfeiçoamento, em favor da abstração, quando em natureza ambos os movimentos são complementares.

A opção jurídica pela abstração não é despropositada. Atende a outras pretensões implícitas do sistema jurídico, além da fundamentação da idéia de universalidade.

Sob o ponto de vista da semiótica das condutas, o direito se evidencia como um padrão de comportamento entre tantos outros difusos na sociedade. Portanto, orienta a formação de signos, como valores sociais, que vão permitir a valoração de condutas.

Sua diferença em relação aos demais é a pretensão de universalidade e soberania. Ou seja, o direito se afirma como o único padrão de condutas, ou pelo menos como o principal. Portanto, seus valores devem prevalecer sobre os demais.

Contribui para essa manutenção a ligação estreita entre direito e Estado. Efetivamente, são manifestações distintas do mesmo fenômeno social. Enquanto o Estado empresta ao direito o poder coativo e o monopólio do uso da violência, o direito garante ao Estado uma estrutura e um sistema simbólico capaz de conquistar a legitimidade social.

A legitimidade, nesse caso, representa o grau de assimilação dos seus valores sociais pelos indivíduos de um grupo. Em um padrão de condutas não jurídico, os comportamentos destoantes representam uma constante ameaça à preservação da integridade daquele padrão, porque expõe possibilidades novas ou nega impossibilidades habituais.

Abstração e dogma são as duas ferramentas que o direito contemporâneo soube usar para minimizar a influência das condutas destoantes. Como a semiose, no padrão jurídico, opera por abstração, há um sucessivo abandono do objeto que leva ao distanciamento

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Afirmar que o direito é prescritivo e não descritivo é uma posição muito simplificadora. Vale lembrar a análise histórica de Nelson Saldanha (1998, p. 20), de que “o direito se teria formado pela conjugação entre normatividade e informação”.

crescente entre este e os signos formados. Na semiótica das condutas, a abstração leva à formação de noções da realidade cada vez mais formais, até perder o contato com o comportamento original. Se a abstração está distante da conduta, também não pode ser influenciada por esta, quando se revela destoante.

Caso ainda reste alguma possibilidade de recuo à conduta originariamente valorada, o que permitiria a contradição com o comportamento destoante, o dogma garante a manutenção da cadeia. Como já exposto, o dogma representa uma quebra na cadeia semiótica, porque impede a verificação de seus fundamentos, ou seja, a sua regressividade. Portanto, em uma cadeia semiótica jurídica, a conduta originária que um dia formou aquela cadeia por abstração fica permanentemente inacessível, bloqueada pelo dogma.

Com isso, os comportamentos destoantes não exercem influência significativa sobre as cadeias jurídicas103. O descumprimento de um padrão jurídico de comportamento acarreta uma conseqüência também jurídica, prevista no próprio padrão. Nos demais padrões sociais, descumprimento força o questionamento da relação de determinação entre o objeto (a conduta) e o signo (o valor constante do padrão social).

Os sistemas jurídicos usam de ideologia e da sua pretensão científica104 para reforçar a idéia de determinação, supostamente lógica, da norma pela situação. Insistem, assim, naquele modelo de signo analisado no capítulo anterior, em que uma situação determina suas normas e essas determinam uma disciplina jurídica.

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A exposição é próxima à noção apresentada por Luhmann (1983, p. 137) de neutralização simbólica dos comportamentos divergentes.

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Ideologia e ciência são formas de afirmação de uma realidade exterior, mas divergem fundamentalmente nos fins, inclusive com a possibilidade de apropriação ideológica do discurso científico, como aponta Pedro Demo (2002, p. 19): “A ideologia, até certa medida, aponta para outro extremo, ou seja, a sagacidade manipulativa. O que a define é o intento justificador, quer dizer, o compromisso político de defesa de posições, sobretudo de privilégios. Enquanto a ciência questiona o real para ser real, a ideologia lança mão de qualquer meio, sobretudo de ciência, para justificar condições históricas que se deseja manter, ampliar, esconder, impor, deturpar”.

Com o reforço simbólico dessa noção, fica mascarada a noção do direito como um padrão de comportamento, como os demais padrões sociais. A abstração105 e o formalismo106 negam a idéia de que o padrão jurídico também pode ser questionado e transformado pelo uso de cada um de seus membros, como a linguagem verbal.

O fortalecimento do signo lingüístico-jurídico, outro também evidenciado no capítulo anterior, torna mais defensável a necessidade de uma hermenêutica oficial. As razões pelas quais a semiose empreendida por um indivíduo que não integra a hermenêutica oficial é irrelevante para a transformação do padrão ficam ocultas, perdidas ao longo da abstração e atrás dos dogmas.

A norma jurídica, como visto no capítulo anterior, é apresentada entre silogismos e estruturas lógicas como uma decorrência direta e necessária da situação de fato que regula. Considerando que seja mesmo um signo, seus fundamentos certamente são outros.

A norma jurídica representa uma parte, uma explicitação do ordenamento jurídico, direcionada a promover um controle das condutas sociais. Assim, é rigorosa com aquelas ações que pretende desestimular e tolerante ou generosa com aquelas que quer estimular. O vínculo de determinação das normas, porém, não está naquelas condutas disciplinadas.

A norma é um símbolo, mas não das situações de fato disciplinadas por ela, porque com estas, por força da abstração e dos dogmas, mantém um distanciamento irrecuperável. Como signo, seu vínculo mais próximo é com os objetos que a determinaram. Esses objetos é que revelam onde tem início a verdadeira cadeia semiótica jurídica e seus dogmas.

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Do ponto de vista político, abstração é inerente ao Estado moderno: “neste sentido o Estado é abstrato porque se apresenta necessariamente – com esta necessidade insuperável da ilusão que Kant atribuía às aparências transcendentais – como o lugar institucional em que uma comunidade real, múltipla, variada e contraditória encontra sua unidade, medida e identidade. A abstração está em que unidade, medida e identidade encontram-se fora da vida social efetiva, determinando-se como uma projeção autonomizada da sociedade que retorna sobre ela para sintetizá-la, regrá-la e dar-lhe figura” (BRUM TORRES, 1985, p. 76-77).

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É importante explicitar o que se entende por formalismo jurídico: “a concepção formal do direito define portanto o direito exclusivamente em função da sua estrutura formal, prescindindo completamente do seu conteúdo – isto é, considera somente como o direito se produz e não o que ele estabelece” (BOBBIO, 1995, p. 198).

O direito é determinado pelas circunstâncias sociais que permitem que um determinado indivíduo ou grupo decida sobre padrões sociais. A partir desse momento, o titular da decisão tem a possibilidade de, regrando as condutas, manter ou repetir aquelas circunstâncias para que permaneça com o poder de decisão. É uma ação política que se perpetua pela manipulação de condutas.

Não é apenas uma manipulação física, coercitiva, mas principalmente simbólica, porque lida com a imposição de certos signos (e valores como signos) como obrigatórios. Evidentemente, são esses mesmos signos que vão garantir que as condutas sociais sejam mantidas no espectro previsto. A grande sutileza do direito contemporâneo é perceber que um valor social e uma visão da realidade não se impõem pela violência. É preciso fazer o indivíduo acreditar que aqueles valores são originários do grupo social como um todo, e não a representação de alguns valores individuais de quem detém poder de decisão.

Em suma, a norma como signo nada mais é que isso – uma representação pretensamente universal com base em um conjunto de valores individuais, voltados à manutenção de uma situação de privilégio social. É determinada, portanto, não pelas situações jurídicas que disciplina, mas pelas condições sociopolíticas gerais vigentes em uma comunidade, o que explica, em parte, o fato de regimes políticos estabelecidos em condições semelhantes produzirem normas similares.

A situação sociopolítica vigente é o objeto da norma, que a determina como seu signo – o conjunto de condições necessárias para manter aquela situação. O interpretante é o modelo de dominação simbólico verificado, cuja legitimidade será tanto maior quanto mais semelhantes forem o objeto e o signo desta relação triádica. Em um processo semiótico de encadeamento, a norma pode ser sucessivamente aperfeiçoada, a fim de permitir e determinar, como interpretante, uma dominação cada vez mais forte e mais sutil.