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CAPÍTULO 3 ALÉM DA NORMA

3.2 REVISITANDO A NORMA JURÍDICA

No capítulo anterior, a norma jurídica foi a protagonista, duramente testada e confrontada pelo estudo semiótico, que buscou despi-la para que revelasse sua forma de signo. Dessa comunhão nasceram dois modelos prematuros – um lingüístico-jurídico, de hermenêutica da norma, e outro lógico-formal, sobre a disciplina jurídica das situações. O segundo rebento já estava contaminado pelo germe da superação lingüística, mas ainda estava tão cativo quanto o irmão de um outro tirano maior – o ordenamento jurídico. Nesse anticlímax tem início o capítulo atual.

Superar o paradigma da língua e superar o paradigma da norma são dois desafios sobre-humanos essencialmente relacionados. Em ambos os casos, o indivíduo está submetido ao império de um sistema de símbolos que se impõe como obrigatório nas relações sociais. Ou seja, todo o peso da necessidade de uma vida em sociedade obriga a assimilação desses dois sistemas.

Como é uma dupla empreitada, convém começar pelo elo mais fraco. Nas próximas linhas será feita uma nova análise da norma jurídica sob o prisma semiótico. Aqui, desta vez será tornada explícita uma contradição aparente que propositadamente não foi aprofundada no capítulo anterior – a determinação semiótica da norma.

Quando Peirce afirma que o objeto determina o signo, assim como este determina o seu interpretante, há muito mais idéias em jogo do que uma mera conseqüência lógica. O signo é uma determinação mental do objeto, no sentido de que é a forma como deve ser apreendido, em razão de um fundamento. Não há uma escolha ou uma alternatividade, há uma determinação. Vale transcrever as claras palavras de Lúcia Santaella (2000, p.23):

Em relação ao objeto, o signo tem um caráter vicário, ele age como uma espécie de procurador do objeto, de modo que a operação do signo é realmente a operação do objeto através e por meio do signo. Assim sendo, pode-se dizer que o signo tem uma função ontologicamente mediadora como vicário do objeto para a mente. Isso significa, conseqüentemente, que o signo, na sua relação com o objeto, é sempre

apenas um signo, no sentido de que ele nunca é completamente adequado ao objeto,

não se confunde com ele e nem pode prescindir dele.

O bem explicado caráter vicário do signo mostra que a relação entre ele e o objeto é muito mais próxima do que uma mera representação. Seria uma substituição, não fosse a certeza da alteridade, de que signo e objeto continuam coisas distintas e funcionais. O signo é determinado pelo objeto, de uma maneira que outra não poderia ser.

Por isso, é preciso rever as modelagens anteriores para verificar se realmente os objetos propostos determinam a norma como signo e, em caso afirmativo, em que medida.

No primeiro modelo, o lingüístico-jurídico, a norma jurídica como signo seria determinada por um texto jurídico, que foi posteriormente identificado como equivalente às fontes do direito. Como a norma aqui aparece em abstrato, sem considerações sobre sua validade no ordenamento ou aplicabilidade, não se evidenciam maiores problemas nessa determinação. Como qualquer mensagem envolvida por símbolos lingüísticos, a norma é determinada pelo texto. Vale a necessária observação de que, como linguagem de segundo nível, a mediação dos signos lingüísticos é imprescindível, por esse motivo esse modelo foi apresentado como uma composição de duas relações triádicas.

norma jurídica

Figura 11 – Revisando o signo normativo lógico-formal

11.1. Determinação da norma pela situação – as situações de fato exigem ordenação, mas a relação que estabelecem com a norma jurídica eleita não é de determinação. Em cada situação apresentada, há uma pluralidade de normas, jurídicas ou não, aptas a produzir efeitos e determinar disciplinas distintas para o caso. A questão reside, portanto, em conceituar a situação de forma relativamente consensual e estabelecer qual a norma válida, por critérios igualmente aceitos.

11.2. Determinação em abstrato – a determinação é simulada em uma análise abstrata, em que a situação é tomada apenas por seu conceito básico, ou tipo ideal, e o critério de universalidade do ordenamento jurídico impõe aquela norma como única válida.

11.3. Determinação efetiva – a ineficácia do ordenamento jurídico em atender às expectativas dos sujeitos interfere com a idéia da determinação da norma jurídica, fazendo com que outras normas, não-jurídicas e mais eficazes, sejam gradativamente associadas à situação-objeto, de uma forma que passam a ser tomadas, de forma geral, como signos daquela situação. O deslocamento do sentido para o novo signo implica igualmente na determinação de um novo interpretante, ou seja, uma disciplina para a situação, diversa daquela estabelecida pela norma jurídica, a qual fica relegada a uma função meramente formal e abstrata, sem influência nas situações de fato.

Figura 11.1 Determinação da norma pela situação

Figura 11.2 Determinação em abstrato signo objeto interpretante situação jurídica em abstrato disciplina em abstrato Figura 11.3 Determinação efetiva situação de fato norma 1 disciplinas norma 2 norma 3 norma 4 norma jurídica (ineficaz) objeto disciplina efetiva situação de fato interpretante norma não-jurídica (eficaz) signo

A controvérsia surge quando é verificado que esse modelo, apesar de atender a uma determinação “vicária” do signo pelo objeto, diz muito pouco em termos jurídicos. Extrair o conteúdo de uma norma é um processo intelectivo bastante semelhante à compreensão do sentido de um texto não jurídico. O que confere juridicidade a essa prática são exatamente as discussões sobre a aplicabilidade e a validade dessa norma em face de um ordenamento jurídico, considerações que não integram esse modelo de signo. É uma formulação, portanto, muito mais lingüística do que jurídica77.

O segundo modelo prevê a atuação da norma como signo de uma situação, determinando uma disciplina jurídica. Considerações sobre o suposto silogismo da aplicação da norma foram afastadas, numa tentativa de aproximar a relação entre objeto e signo da proposta peirceana de determinação. Talvez não tenha sido uma empresa satisfatória.

Ao sugerir que uma situação determina uma norma, o que se pretendeu foi afirmar que, juridicamente, todo fato exige uma disciplina jurídica e a norma é a mediadora necessária. Aí já está presente uma premissa, a da pretensa universalidade jurídica, que é em si questionável. A universalidade, a atribuição de regras para todos os casos, a vedação do “non liquet”, são características de um modelo de direito, de um sistema jurídico específico, não de todos. Atribuir à universalidade o título de característica jurídica necessária significa limitar os estudos jurídicos apenas àqueles sistemas que a proclamam – e tomar todos os outros como não jurídicos.

Mesmo admitindo a universalidade jurídica como necessária, ainda assim a relação entre o objeto proposto e o seu signo não é de determinação. Na relação triádica, o objeto tem no signo o seu duplo, o seu par necessário segundo um certo fundamento. É o que ocorre nos símbolos lingüísticos, em que a manifestação física do texto corresponde à sua

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É uma consideração que já tem início em Kelsen (1986, p. 189-196), quando faz a conceituação de

proposição de dever-ser, que tanto pode conter um sentido imperativo (norma) quanto um descritivo (enunciado

estrutura simbólica em palavras e enunciados. Não é semelhante o que ocorre com a norma jurídica.

Considerada uma situação jurídica, a relação que mantém com a norma é extremamente tênue. A vinculação entre fato e norma depende de um conjunto extenso de variáveis78 que podem modificar uma atribuição prevista. Ainda que um certo sistema jurídico, de forma taxativa, vincule uma situação a um conjunto de normas, a sua relação de determinação pode ser afetada, pelo menos, pelo valor ou pela categorização que se atribua àquela situação.

Para conhecer qual a norma correlata a uma situação, o observador precisa dispor de um vasto conjunto de informações não inteiramente contido naquele signo. Precisa recorrer a outros signos, para só então completar aquela cadeia semiótica. Essa necessidade é similar ao conceito de experiência colateral, talhado por Peirce (2003, p. 168).

De fato, portanto, não se pode antecipar a disciplina jurídica de qualquer situação com razoável grau de certeza. Exceto, é claro, em termos gerais. Isso implica refazer o modelo do signo lógico-jurídico para explicar que uma situação que seja entendida como tal categoria (objeto) determina um conjunto de normas jurídicas (signo), que determina uma conseqüente disciplina jurídica (interpretante). Essa formulação é válida se e somente se forem desconsideradas quaisquer referências a fatos concretos e dentro de um sistema ideal de símbolos jurídicos com característica de universalidade.

Caso a universalidade seja afastada, ou caso seja reconhecida na prática a possibilidade de ineficácia do sistema jurídico, a modelagem prevista também deve ser alterada. Nessas hipóteses, que são mais coerentes com a realidade social, as situações não podem ser tomadas na sua abstração lógico-jurídica. Assim, uma situação qualquer (objeto) determina um conjunto de normas (signo) que podem ser jurídicas ou não, ou qualquer

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Entre eles, os valores sociais, mais adiante propostos como signo. Mesmo em uma teoria avalorativa, o normativismo jurídico reconhece a natureza da norma como “medida de valor” (KELSEN, 1986, p. 163-167). Há uma relação estreita entre normas e valores (KELSEN, 1998, p. 18-25).

variação destas. Essa coleção de regras é que vai, por sua vez, determinar a disciplina do caso (interpretante).

Nesse cenário complexo, o ordenamento jurídico não tem poder suficiente para prever quais serão as normas tomadas pela situação. Melhor explicando, sua modelagem lógica abstrata, após a categorização da situação, impõe um conjunto específico de símbolos, mas não tem como garantir que esses serão os signos usados efetivamente. É o reconhecimento da crise do sistema simbólico, tratada no final do capítulo anterior.

Por mais que o ordenamento jurídico não seja tão eficaz quanto proclama, as situações continuam reclamando por regras e normas são utilizadas de fato. Inclusive, os comportamentos tendem a representar padrões, condição mínima de previsibilidade para manutenção da vida social. A continuidade das relações sociais é um índice muito significativo de que há um sistema simbólico de regras em operação.

Como visto, a crise de um sistema simbólico não acarreta a sua substituição imediata ou a negação de sua validade. Quando um símbolo perde o poder de explicar a realidade, quando o seu interpretante imediato está muito distante do interpretante dinâmico da maioria de seus usuários, há um deslocamento de sentido.

Um signo que contradiga outros signos da mesma cadeia tende a ser rejeitado como absurdo. Já se explicou, porém, que o absurdo é a representação de uma incompatibilidade máxima, que é normalmente evitada. O comum, nesses casos, é adaptar a natureza do signo discordante para que determine interpretantes coerentes. Em termos práticos, o objeto passa a determinar um símbolo sutilmente diferente.

O que muda é a relação de determinação. O símbolo anterior, ineficaz, continua a existir, mas perde a relação com aquele objeto – ou com qualquer objeto, o que extingue sua existência como signo. O objeto é entendido então como determinante de outro signo, este sim mais adequado a promover interpretantes eficazes.

No caso do ordenamento jurídico, a norma continua a existir como símbolo, mas progressivamente perde a correlação com as situações. Outro símbolo, híbrido e distinto, toma o seu lugar.

Antes de elucidar ainda mais essa proposta, vale a pena insistir em um dos aspectos da análise da norma jurídica como símbolo. Foi sugerido que as situações concretas não determinam as normas lógicas, porque não há entre elas uma correlação funcional. Todavia, poderia haver essa relação no caso de situações ideais, categorias tão abstratas quanto as normas. Isso já foi discutido, como uma tentativa de manter o poder simbólico da norma dentro do sistema jurídico.

Com alguns passos fora do ordenamento, porém, essa explicação começa a parecer insuficiente. As normas jurídicas não são apenas símbolos de um sistema lógico jurídico – que não está mais em estudo. Elas exercem uma função clara de manutenção de uma certa ordem social e – afastado o mito da impessoalidade jurídica – proteção de certas relações de poder. Essa projeção do direito como um símbolo, mas além de um ordenamento jurídico hermético, talvez possa evidenciar com mais clareza as relações simbólicas de poder nas quais se insere, se forem superadas as marcas de manipulação do discurso da objetividade normativa79.

E qualquer leigo no direito sabe dizer as razões pelas quais uma determinada norma legal é criada, em um contexto social e político.

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Conforme o reforço de Adail Ubirajara Sobral (2005, p. 127), “há dois grandes tipos de manipulação: a que produz uma ‘camuflagem subjetivante’, isto é, a que destaca as marcas da enunciação e, portanto, o enunciador, e a que produz uma ‘camuflagem objetivante’, ou seja, a que oculta as marcas da enunciação, que nem por isso deixam de estar presentes. Na manipulação subjetivante, o sujeito seria a garantia da verdade- falsidade; tem-se aqui um sujeito explícito falso e um saber verdadeiro oculto. Na manipulação objetivante, em contrapartida, o sujeito e o saber verdadeiro são discursivamente submetidos por construções impessoais ou socializados por marcas como o ‘se’ impessoal e o ‘nós’, apresentando-se um sujeito oculto verdadeiro e um saber explícito falso”. O caso do discurso jurídico da impessoalidade da norma cai no segundo caso.