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CAPÍTULO 1 UMA LÓGICA DA REALIDADE

1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CATEGORIZAÇÃO E MÉTODO

O objetivo do presente capítulo foi estabelecer os fundamentos da semiótica de Charles Sanders Peirce, com base em suas próprias idéias sobre a fenomenologia e as categorias universais. Muito ainda poderia ter sido acrescentado a respeito de seus esforços em traduzir a multiplicidade do real em uma teoria íntegra e coerente. Em contraste com a sua obra, que primou pela universalidade, estas linhas tiveram de ser restritas e bem delimitadas.

O primeiro foco privilegiado foi a caracterização das ciências segundo Peirce, a fim de identificar a posição sistemática ocupada pela sua fenomenologia, sua lógica e semiótica. Em seguida, foram expostos os aspectos gerais das categorias universais da fenomenologia peirceana, com análise de suas relações recíprocas.

A importância de tratar da fenomenologia de Charles Sanders Peirce reside precisamente no estudo dessas categorias, fundamentais para a compreensão da teoria dos signos desenvolvida pelo filósofo, apresentada no capítulo seguinte. As idéias de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, muito mais do que apresentarem conceitos abstratos e imprecisos, fornecem as pistas para a interpretação da forma como Peirce via a realidade. Tanto assim que essas categorias são recorrentes em toda a sua obra, como uma devoção aos elementos triádicos.

Sua atualidade é devida pelo seu caráter elementar e universal. As três categorias podem ser aplicadas a qualquer aspecto do conhecimento, como pretendia Peirce, e são bases para a construção de diversos sistemas interpretativos, como a sua semiótica. Sua obra nunca pode ser considerada discutida o suficiente. Só resta deixar, como fez o próprio Peirce, as outras idéias para outros papers.

A semiótica apresenta um grande potencial explicativo da realidade comunicacional humana. Esse aspecto não passou despercebido por Peirce ou para os outros semioticistas (ou semiologistas), que desenvolveram ao longo do século passado os principais elementos da análise dos signos. Nesse cenário, é sempre importante caracterizar essas teorias segundo o exame das bases filosóficas que as fundamentam, a fim de evidenciar as distinções e tornar mais claras as formas de abordagem propostas.

Por este motivo foram descritos aqui, ainda que superficialmente, os fundamentos filosóficos da semiótica peirceana – sua fenomenologia e suas categorias triádicas. Em seguida esses mesmos elementos foram submetidos a uma análise crítica, com ênfase nas discussões sobre a abordagem estrutural.

A síntese das considerações repete em muito as críticas apresentadas contra o movimento estruturalista. Sem negar a importância dos modelos formais, ficam registrados os alertas contra o excessivo formalismo, sua adoção como realidade em si ou seu discurso auto- referente22.

O uso de estruturas para descrever a realidade parece inevitável, entendimento tanto mais verificável no âmbito da linguagem. A necessidade de explicação do mundo exterior força o sujeito cognoscente a usar ou elaborar modelos formais, que são tão mais sugestivos e sedutores quanto forem capazes de fornecer respostas com aparência de verdade.

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Afinal, no alerta de Vandyck Nóbrega de Araújo (1986, p. 57), “nenhuma ciência está capacitada a provar a inerência e a sistematicidade de si mesma”.

Essa é a idéia defendida por Michel Pêcheux (2002, p. 34-35), ao analisar a relação do “sujeito pragmático” com as “coisas-a-saber”:

As “coisas-a-saber” representam assim tudo o que arrisca faltar à felicidade (e limite à simples sobrevida biológica) do “sujeito pragmático”: isto é, tudo o que o ameaça pelo fato mesmo que isto exista (o fato de que seja “real”, qualquer que seja a tomada que o sujeito em questão tenha ou não sobre a estrutura do real); não é necessário ter uma intuição fenomenológica, uma pegada hermenêutica ou uma apreensão espontânea da essência do tifo para ser afetado por essa doença; é mesmo o contrário: há “coisas-a-saber” (conhecimentos a gerir e a transmitir socialmente), isto é, descrições de situações, de sintomas e de atos (a efetuar ou a evitar) associados às ameaças multiformes de um real do qual “ninguém pode ignorar a lei” – porque esse real é impiedoso.

O projeto de um saber que unificaria esta multiplicidade heteróclita das coisas-a- saber em uma estrutura representável homogênea, a idéia de uma possível ciência da estrutura desse real, capaz de explicitá-lo fora de toda falsa-aparência e de lhe assegurar o controle sem risco de interpretação (logo uma auto-leitura científica, sem falha, do real) responde, com toda evidência, a uma urgência tão viva, tão universalmente “humana”, ele amarra tão bem, em torno do mesmo jogo dominação/resistência, os interesses dos sucessivos mestres desse mundo e os de todos os condenados da terra... que o fantasma desse saber, eficaz, administrável e transmissível, não podia deixar de tender historicamente a se materializar por todos os meios.

A estrutura, homogênea e universal, atende de forma sedutora à “urgência” do modo pragmático23 de compreender e lidar com o real. É preciso, todavia, frisar o seu caráter

metodológico e funcional, como pode ser apreendido na lição exposta por Umberto Eco

(1997, p. 251):

Uma pesquisa sobre os modelos da comunicação leva-nos a empregar grades

estruturais para definirmos tanto a forma das mensagens quanto a natureza

sistemática dos códigos (sem que a assunção sincrônica, útil para ‘enformar’ o código considerado e reportá-lo a outros códigos opostos ou complementares, exclua uma subseqüente investigação diacrônica, capaz de explicar a evolução dos códigos sob a influência das mensagens e dos processos de decodificação que ocorrem ao longo da história).

A elaboração de grades estruturais torna-se uma necessidade desde que queiramos descrever fenômenos diferentes com instrumentos homogêneos (isto é, descobrir

homologias formais entre mensagens, códigos, contextos culturais onde as

mensagens funcionam – numa palavra: entre aparatos retóricos e ideologias). A função de um método estrutural consiste justamente em permitir a resolução de diferentes níveis culturais em séries paralelas homólogas. Função, portanto, puramente operacional, com vistas a uma generalização do discurso. Mas os termos desse problema devem ser retomados do início porque habitualmente o uso do termo

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Para Pierre Levy (1996, p. 82), todavia, há um caráter criativo e virtual nesse modo pragmático (ou retórico): “no estágio retórico ou pragmático, não se trata mais apenas de representar o estado das coisas, mas igualmente de transformá-lo, e mesmo de criar inteiramente uma realidade saída da linguagem; ou seja, em termos rigorosos, um mundo virtual: o da arte, da ficção, da cultura, do universo mental humano. Esse mundo gerado pela linguagem servirá eventualmente de referência a operações dialéticas ou será reempregado por outros projetos de criação. A linguagem só alça vôo no estágio retórico. Então ela se alimenta de sua própria atividade, impõe suas finalidades e reinventa o mundo.

‘estrutura’ se presta a numerosos equívocos e cobre as mais disparatadas opções metodológicas e filosóficas.

Com estas considerações, a abordagem estrutural – necessária mas funcional – mostra-se extremamente similar à categorização levada a efeito pela fenomenologia peirceana. As semelhanças são mais evidentes considerando-se esse método como uma resposta do “sujeito pragmático” – nos termos de Michel Pêcheux – às “multiplicidades heteróclitas das coisas-a-saber”, o que pode ser traduzido e comparado à busca inquieta de Peirce por uma “lógica da realidade”. Todavia, sua abordagem sistemática tem uma característica nitidamente aberta, hodogética, principal aspecto que a diferencia de outras tradições filosóficas:

Falando amplamente, há principalmente, no que diz respeito a método e apresentação, duas tradições filosóficas: a aberta, ou exploratória, e a fechada, ou sistemática. (...) Talvez a contribuição principal de Peirce seja seu sistema aberto. Ele conseguiu combinar os melhores aspectos dos seus dois modelos gregos de tal forma que desenvolveu um sistema, mas conseguiu mantê-lo aberto. A tradição inglesa seguiu Platão, sendo meramente inquisitiva; os alemães seguiram Aristóteles, sendo meramente sistemáticos. Peirce seguiu o método científico, sendo inquisitivamente sistemático. Pois, apesar de ter um sistema, ele não o tratou como a palavra final em sentido algum e admitiu que seria expandido e modificado por investigadores posteriores (...)

A filosofia de Peirce é hodogética; é um sistema para mostrar o caminho, um sistema cujo principal aspecto é sua direção. É por isso que é seguro afirmar que a história de sua influência até os dias atuais é apenas a primeira parte da história de sua influência e que a maior parte de suas conseqüências serão sentidas por aqueles que nos seguirão em um futuro indefinido24.

Portanto, estrutural ainda que não estruturalista, a fenomenologia peirceana, base e raiz da sua semiótica geral, representa essa pulsão humana de categorização e explicação formal das coisas do mundo. Válida, atual e presente, sua abordagem pode ser mais e melhor

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Tradução livre de James K. Feibleman (1970, p. 487): Speaking very broadly, there are in the main, and wich respect to method of presentation, two philosophical traditions: the open, or exploratory, and the closed, or sistematic. (...) Perhaps the chief contribution of Peirce is his open system. He has managed to combine the best feature of his two Greek models in that he has designed a system but managed to keep it open. The English tradition followed Plato in being merely inquisitive; the Germans followed Aristotle in being merely sistematic. Peirce followed the scientific method in being inquisitively systematic. For, although he had a system, he dis not regard it as in any sense the final word, and assumed that it would be modified and expand by later investigators. (...) Peirce’s philosophy is hodogetic; it is a system for showing the way, a system whose chief feature is its direction. That is why it is safe to say that the history of his influence up to date is only the early history of his influence, and that the greater part of his effect will be felt by those who follow after us in the indefinite future.

aproveitada quando reconhecidos seus limites inerentes e sua função essencialmente metodológica.

Mesmo com um eventual reducionismo lógico, as idéias de Peirce podem ter sido movidas pela necessidade de formar uma base fenomenológica de uma filosofia da e para a ciência:

Em verdade, por nada mais que isso, seu admiravelmente humano senso de proporção, foi Peirce auxiliado em sua tarefa de prover os cientistas com um tipo de “contrapeso” metafísico que seu trabalho, hoje tanto quanto no século dezenove, tão evidentemente requer. Seu equívoco reside em acreditar que tal metafísica poderia ser ela mesma, em qualquer sentido adequadamente exato, científica (GALLIE, 1952, p. 41)25.

Em suma, a fenomenologia de Peirce e as suas categorias triádicas são um excelente conjunto de lentes para enquadramento dos fatos da vida, mas não podem jamais substituir, por equívoco ou por opção, o modelo em foco ou o olhar do observador.

25

Tradução livre de: “Indeed by nothing more than this, his admirably humane sense of proportion, was Peirce aided in his task of providing scientific men with the kind of metaphysical ‘leads’ which theirs work, today as much as in the nineteenth century, so evidently requires. His mistake lay in hoping that such a metaphysics could itself be, in any usefully exact sense, scientific”.