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CAPÍTULO 2 A CONSTRUÇÃO DE UM SIGNO NORMATIVO

2.1 O MENOR CONTINENTE DE TUDO

O ato de conhecer é, antes de tudo, uma decisão. Para apreender quaisquer aspectos do real, ou daquilo que acredita que o seja, o sujeito pensante precisa estabelecer um conjunto considerável de pontos de referência, em relação aos quais o conhecimento pode ser revelado. A afirmação de um ponto de partida – e não de outro – é o conteúdo que caracteriza essa decisão humana e precede toda forma de cognição.

Por óbvio, a escolha de um ponto de referência envolve a análise de dados prévios e, por tal, requer um certo esforço de cognição anterior. De maneira mais detalhada, em uma regressão infinita, todo conhecimento exige a afirmação de certos parâmetros, em uma decisão que está fundada em uma determinada noção da realidade, que por sua vez necessitou de pontos de referência previamente decididos. Assim ocorre regressivamente, até que seja possível encontrar aqueles pontos de referência que servem de orientação para o conhecimento mais básico. Nesse nível, a decisão que induz o sujeito cognoscente a utilizar esses parâmetros não é uma escolha racional, voluntária, ou sequer consciente.

Nesse âmbito originário, os pontos de referência do conhecimento têm fundamento em aspectos inerentes à mentalidade humana – psíquicos, biológicos ou transcendentais, a depender da abordagem utilizada. Em outras palavras, a decisão pelo uso desses pontos de referência é muito mais necessária que voluntária, ou seja, decorre mais da natureza humana que da sua vontade consciente. O desafio de quem se propõe a pesquisar o ato de conhecer sob o seu prisma fenomenológico é identificar quais são essas categorias fundantes.

Em tese, a tentativa de pensar sobre a origem do pensamento encerra em si uma dificuldade inerente. Os pontos de referência – ou categorias – mais básicas do conhecimento atuam de forma genética, invisíveis, influenciando e direcionando toda a cadeia de cognição

daí derivada, deixando sua marca primeva em toda razão posterior. Disso decorrem três importantes conclusões.

A primeira é que, quando as categorias fundantes orientam a formação da cognição humana em um determinado sentido, estão necessariamente afastando as possibilidades diversas. Ou seja, a forma “normal” ou “adequada” de estruturar o pensamento é uma decorrência dos pontos de referência necessários e fundantes daquele sujeito pensante, mas não pode ser considerada a única forma de cognição. É preciso, portanto, reconhecer que há um conjunto infinito, externo e desconhecido de possibilidades diferentes de relacionar conhecimento, alternativas que o ente cognoscente, limitado por suas premissas mais básicas, está inapto a perceber. Esse é o reconhecimento da existência do incognoscível.

Um segundo ponto relevante é a verificação de que o completo entendimento do modo de atuação dessas categorias fundantes pode estar além da capacidade de cognição do sujeito pensante. Não que sua possível revelação lhes retirasse o caráter inerente de pontos de referência básicos – continuariam sendo necessárias e condicionantes do pensamento. A questão é que, para perceber os contornos nítidos dessas premissas que orientam todo o conhecimento humano, seria necessário visualizar a cadeia de cognição como um todo – e, assim, sob um ponto de referência externo a ela mesma. Isso envolve, portanto, um mergulho no campo do incognoscível, o qual, como afirmado, não pode ser apreendido por um sujeito limitado por aquelas premissas.

Por fim, em terceiro lugar, é possível entender que não são apenas as verdadeiras categorias fundantes que condicionam o pensamento humano. Admitindo a incapacidade do sujeito pensante de apreendê-las em sua forma completa, toda tentativa de entendê-las ou explicá-las é, além de parcial, condicionada pela visão de realidade daquele observador. Mesmo assim, essa proposta de definição daquilo que não pode ser compreendido, em alguns casos, alcança um grau de aceitação tão expressivo, entre um grupo de indivíduos, que vale

pelo tentou representar. Isso impõe ao próprio sujeito uma dupla limitação intelectiva: uma mais ampla, necessária e incognoscível, decorrente das categorias fundantes do pensamento; outra mais restrita, comunicativa, transmitida socialmente sob a forma de padrões de normalidade que se declaram como necessários sem ser.

A fim de amenizar os efeitos dessa sucessiva e constante limitação da capacidade de cognição do ser humano por ele mesmo, o ocultamento inconsciente da existência das categorias fundantes pode ser importante. Todavia, reconhecer a incognoscibilidade de tais pontos de referência não significa abandonar os esforços de análise genética do conhecimento. O que se espera é a responsabilidade do pesquisador para que não apresente como necessárias limitações do pensamento que não são gerais, sob o risco de estabelecer um duplo limite intelectivo, como visto anteriormente.

Assim, uma abordagem mais adequada, nesse ponto de vista, seria admitir que qualquer proposta somente poderia ser tomada em caráter ideal, ou seja, como aproximação a um ponto remoto inalcançável. As verdadeiras categorias fundantes do pensamento continuariam, como sempre, fora do espaço de explicação humano.

Nessa decisão de abordagem, uma estratégia notável é o deslocamento do foco das origens para os meios. Em outras palavras, relegar as categorias mais básicas do pensamento ao seu ocultamento inconsciente e incognoscível e voltar os esforços para explicar as relações existentes entre as formas intermediárias e perceptíveis de pensamento, aqui e agora.

É o campo de atuação da lógica, por exemplo. Sem o apelo sedutor da transcendentalidade, o questionamento lógico envolve a verificação de relações até o ponto da irredutibilidade. Não é uma busca do irredutível absoluto, mas uma aproximação ideal sob os limites cognitivos da razão humana.

Figura 1 – Categorização do pensamento

1.1. Categorias fundantes – o reconhecimento da existência de categorias que condicionam o pensamento humano implica em supor a prevalência de categorias fundantes, que separam o conjunto de idéias cognoscíveis do infinito incognoscível. 1.2. Pontos de referência – o estudo das categorias do pensamento exige a afirmação de um ponto de referência externo. No caso das categorias fundantes, o ponto de referência deveria ser estabelecido no campo do incognoscível (p), o que não ocorre na análise das categorias intermediárias do pensamento (p’). As categorias triádicas de Peirce estariam no limite mais remoto do conhecimento que permitisse ainda um ponto de referência cognoscível (entre |p| e |p’|, portanto).

1.3. Categorias impostas – além das categorias tidas como universais, é possível haver uma limitação simbólica ao pensamento por categorias comunicativa e socialmente impostas. Nesse caso uma grande área do cognoscível é descartada por não atender a esses padrões.

Observação: em 1.3 os pontos destacados demonstram como as categorias socialmente impostas limitam o conhecimento. O ponto |i| representa o ente incognoscível. O ponto |a| representa o conhecimento possível, mas descartado como absurdo por não ser compatível com as categorias impostas. O ponto |c| aponta para o espaço limitado em que a comunicação efetivamente ocorre.

Figura 1.1. Categorias Fundantes

plenitude categorias fundantes do pensamento incognoscível cognoscível

Figura 1.2. Pontos de referência

categorias fundantes

categorias intermediárias

incognoscível

cognoscível

Figura 1.3. Categorias impostas

categorias fundantes categorias intermediárias incognoscível cognoscível categorias (simbólicas)

impostas |a| |i|

|c| |p|

O foco da lógica não é necessariamente determinar a origem do pensamento, mas, dadas as circunstâncias verificáveis, contribuir para uma conceituação da realidade – distinguindo, em juízos lógicos, o que é possível do que não é.

Em outro exemplo dessa estratégia, o estudo de relações formais entre os objetos de conhecimento foi levado a efeito com destaque pelos pensadores que adotaram a linha do estruturalismo. A abstração do conteúdo e a ênfase nas formas categóricas caracterizam essa escola filosófica e científica.

Em relação a esses aspectos, Charles Sanders Peirce apresenta uma nítida semelhança com os estruturalistas. Todavia, a diferença de abordagens é marcante quando estes privilegiam a análise horizontal, ou seja, o detalhamento sistemático das estruturas. Com a importância atribuída à aplicação prática dos seus conceitos, os estruturalistas, genericamente considerados, acabam por transitar por aspectos intermediários da cadeia de cognição.

Peirce atuou de maneira mais profunda. Aqui cedeu ao sonho da irredutibilidade, próprio da lógica, e à certeza da falibilidade científica. Considerando as limitações cognitivas que impõem uma aproximação ideal, como já discutido, o filósofo norte-americano foi ao ponto mais remoto das categorias intermediárias e procurou traçar um retrato preciso do elemento mais básico do pensamento que era dado ao homem compreender.

Aí se encontra a raiz das suas categorias triádicas, apresentadas no capítulo anterior. A partir do reconhecimento de sua existência, Peirce as toma como um ponto de referência, ocultando o que as antecede, para o desenvolvimento de toda a sua teoria fenomenológica. Em uma leitura crítica dessa teoria, não se afirma aqui, portanto, que essas categorias triádicas sejam a origem fundante de todo o pensamento, mas que são o que há de mais básico naquilo que é dado ao sujeito discutir. Pode haver, então, outros elementos mais

primordiais, que devem, todavia, ficar relegados ao ocultamento inconsciente, influenciando todos os aspectos da razão, mas além do alcance de uma explicação racional.

A abordagem de Peirce sobre o problema filosófico do pensamento é, assim, estrutural e tangencial, ao apresentar a Primeiridade, a Secundidade e a Terceiridade principalmente em sua função intermediadora. Com isso, a explicação de como essas categorias se relacionam para intermediar o contato do sujeito cognoscente com a infinidade de manifestações da realidade é o que vai originar a discussão a respeito do signo.

Idealizado como independente de qualquer tipo de conteúdo, o signo na teoria peirceana tem essa característica notável de compatibilidade com toda variedade de fenômeno. Como já foi indicado, Peirce dedicou mais esforços ao aprofundamento do conceito de signo e de seus elementos constituintes do que ao estudo de suas aplicações práticas. Partindo de suas categorias, é tarefa relegada aos estudiosos desse filósofo a aplicação da sua teoria geral dos signos aos variados contextos sociais, como se pretende realizar nesse trabalho em relação ao direito.

Por essas características, ainda, é que se apresenta a necessidade de empreender um estudo mais conceitual dessa construção peirceana. É por esses motivos que a análise da noção de signo foi eleita como o objeto pontual deste presente trabalho.

O conceito de signo é um elemento-chave na teoria desenvolvida por Peirce para entender o pensamento humano. No âmbito do estudo da cognição em sua escala de profundidade, o signo está precisamente como ponto intermediário entre as categorias fundantes e ocultas, de um lado, e o pensamento elaborado, de outro.

Em suma, o signo é o conceito que separa o tudo, que é compreensível, do que existe além, e não será jamais.