• Nenhum resultado encontrado

A agenda moral-cum-científica da Sociobiologia e de seus críticos

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 36-43)

O Século XX assistiu um debate ferrenho, chamado por alguns de “o debate da Sociobiologia”, no qual cientistas, muitas vezes de orientação teórica semelhante, se digladiaram sobre a adequação de colocar o ser humano, mais especificamente, sua mente e seu comportamento, como um objeto de estudo da biologia evolutiva (Segerstråle, 2000). O desencadeador desse debate foi um livro escrito por E. O. Wilson (1975) inti- tulado Sociobiology: The New Synthesis. Nesse ambicioso tratado o autor propunha uma síntese dos estudos e novos desen- volvimentos no estudo do comportamento, principalmen- te de animais não humanos, e dedicava um único capítulo, o último, ao lugar do Homo sapiens nessa síntese. Neste último capítulo, Wilson sugeria que os avanços recentes no estudo do comportamento animal, mais especificamente os trabalhos de Trivers e Hamilton sobre investimento parental e seleção de parentesco (Hamilton, 1964; Trivers, 1972), poderiam ajudar a explicar muitos aspectos do comportamento humano, incluin- do comportamento agressivo, homossexualidade, religião e xenofobia. Mais polemicamente ainda, previa que em pouco tempo as ciências sociais estariam incluídas dentro das ciências biológicas. Como não poderia deixar de acontecer, os cientistas sociais imediatamente se manifestaram contrários às idéias de Wilson e rejeitaram totalmente suas alegações que a aborda- gem biológica fornecia um modelo mais adequado e mais abran- gente para a compreensão do comportamento humano. Porém, o que é surpreendente, é que os dois críticos mais ferozes de Wilson foram os evolucionistas Richard Lewontin (geneticista)

e Stephen Jay Gould (biólogo), seus colegas de departamento em Harvard (Laland & Brown, 2011; Segerstråle, 2000).

Na realidade, embora o livro de Wilson tenha desencadea- do esta forte controvérsia, a mensagem que ele trazia retratava o que estava ocorrendo no campo do estudo do comportamento animal desde o início da década de 1970. As idéias de Hamilton (1964) sobre seleção de parentesco e de Trivers (1972) sobre altruísmo recíproco sacudiram a área e permitiram a abertu- ra de novos e estimulantes programas de pesquisa. Um clássi- co na área foi o livro de John Alcock (1975) Animal Behavior: An

Evolutionary Approach sucessivamente reeditado e hoje prova-

velmente o manual mais usado no ensino do comportamento animal. Este livro trazia basicamente a mesma síntese proposta por Wilson, embora nesta primeira edição não trouxesse um capítulo sobre comportamento humano. A proposta trazida no livro de Wilson pode ser interpretada muito mais como um esforço coletivo, um retrato dos avanços que ocorriam naqueles anos, do que propriamente uma concepção individual do autor.

Em suma, o livro de Wilson não era o primeiro a propor a utilização da teoria evolutiva na explicação do comporta- mento humano, que vinha desde Darwin, e também não trazia nenhuma proposta completamente nova, que não representasse o pensamento e as discussões correntes na área. Por que, então, tantas e tão fortes críticas?

Segerstråle (2000) sugere que essas críticas, mais do que científicas, tinham uma forte tintura político/moral. A mesma autora sugere que as críticas propriamente científicas pareciam ser mais relativas à ênfase do que propriamente ao conteúdo do livro. Por exemplo, uma crítica contundente e repetida de Gould e Lewontin (1979; Allen et al., 1975) é a de que Wilson via a adaptação como o mecanismo exclusivo da seleção natural

e que considerava que os organismos estavam perfeitamen-

te adaptados. Porém, Wilson discutia em Sociobiology outros

mecanismos de seleção, como a pleotropia e a deriva genética, entre outros. Quanto à otimização e à perfeição daí decorrente, Segerstråle faz a seguinte citação de Sociobiology “No organism

is ever perfectly adapted” (Segerstråle, 2000). Aparentemente,

à parte questões relativas a desenvolvimentos recentes da gené- tica que Lewontin acreditava que Wilson havia ignorado, havia a questão do uso social da ciência.

O paradigma científico, não só no momento do lançamento do livro, mas desde o final da Segunda Guerra era o ambientalis- mo/culturalismo, principalmente após o acordo da UNESCO de 19523 que desencorajava fortemente a pesquisa biológica com seres

humanos. Os horrores das práticas nazistas durante a guerra, falsamente baseadas em critérios científicos, e o crescimento dos estudos etnográficos, liderados principalmente pelo antropólogo Franz Boas e seus alunos, levaram à transição de uma visão das características humanas baseadas na hereditariedade para uma posição ambientalista e culturalista. A agenda científica passou a ser uma agenda moral-cum-científica que preconizava uma ciência socialmente responsável, que não pudesse ser evocada, verídica ou pretensamente, para justificar atos moralmente reprováveis. Curiosamente, tanto Wilson quanto seus oponentes, Lewontin e Gould, defendiam a responsabilidade moral da ciência, mas suas agendas eram diferentes (ver Segerstråle, 2000 para uma discussão mais abrangente deste tópico). Na visão de Lewontin e Gould a proposta sociobiológica continha um viés determinista e adaptacionista (Allen et al., 1975) e, portanto, era questionável

3 Este texto está disponível na íntegra em http://unesdoc.unesco.org/ images/0007/000733/073351eo.pdf

do ponto de vista científico e principalmente do ponto de vista moral. Eles acusavam a sociobiologia de determinismo biológico, que poderia ser usado para justificar as desigualdades sociais existentes. Uma crítica contundente era o uso da expressão “gene para...”, que interpretavam como evidência de determi- nismo genético. Isto, apesar das recorrentes explicações de vários autores que abraçavam a abordagem evolucionista, entre eles Dawkins e o próprio Wilson, de que essa expressão era na reali- dade uma abreviação para diferenças genéticas entre indivíduos que seriam potencialmente sujeitas à seleção. Acusavam Wilson também de propor que a natureza humana, por ser adaptati- va, era natural e intrinsicamente boa, novamente justificando a ordem social existente. Em uma publicação bastante divulgada, Gould e Lewontin (1979) cunharam um termo em sua crítica da sociobiologia e de áreas afins que ficou amplamente conhecido, o panglossismo, baseado no personagem Dr. Pangloss de Voltaire, que expressava a opinião de que tudo era o que deveria ser e feito para seu melhor uso. Esta analogia era usada para alegar que do ponto de vista da sociobiologia cada detalhe do comportamento, anatomia ou fisiologia de um organismo poderia ser explicado pela seleção natural e como tal representariam estruturas otima- mente planejadas. Gould e Lewontin (1979) acreditavam que esta abordagem ignorava o aspecto histórico do processo evolutivo e a influência do acaso neste processo. Também alegavam que o grau de perfeição de um traço é limitado por fatores tais como flexibilidade comportamental, interações entre genes e acidentes históricos. Segundo os dois autores, os defensores da sociobio- logia consideravam a seleção natural onipotente e que as limi- tações seriam poucas e de pequena importância. Não há como negar que isto é verdade em alguns casos. Estas críticas geraram inclusive revisões de textos amplamente utilizados como é o caso

da versão de 1997 do livro Behavioral Ecology de Krebs e Davies. Cronin (1995), no entanto, discorda fortemente que adaptacio- nistas sejam panglossistas e propõe que, na realidade, o natural na teoria darwinista é evitar suposições relativas à perfeição. Segundo a autora, a perfeição é a expectativa do criacionista, que vê cada estrutura ou traço como desenhado para o fim que serve e que, por essa razão, só pode ser perfeito. O evolucionista acredita no poder da seleção natural para criar traços maravi- lhosamente adaptados, porém muito longe de serem perfeitos, pois todo traço se origina de soluções que foram apropriadas a gerações anteriores e que carregam as marcas dessa história, consistindo em boas soluções dentro das limitações originadas da história filogenética do traço.

Um exemplo que considero extremamente esclarecedor daquilo que Nesse e Williams (1997) chamam de legados da história da evolução é a ocorrência frequente, e muitas vezes letal (um óbito por 100.000 pessoas/ano), de engasgos nos seres humanos. Este problema recorrente se deve a uma falha de desenho que ocorre, na realidade, em todos os vertebrados: nossa boca está localizada abaixo e em frente ao nariz, mas o esôfago, que transporta os alimentos, fica atrás da traquéia, que transporta o ar, por isso os tubos precisam se cruzar à altura da garganta. Se o alimento bloquear essa interse- ção o ar não pode chegar aos pulmões. Um reflexo associado à deglutição normalmente bloqueia a passagem para a traquéia, mas às vezes esse reflexo falha e o alimento desce pelo canal errado. É nesse momento que o reflexo do engasgo entra em ação para desobstruir as vias aéreas; mas algumas vezes ele não é completamente eficaz e podemos morrer sufocados. Claro que seria muito mais fácil e seguro se o ar e os alimentos passassem por caminhos totalmente independentes. Por que não o fazem?

Se a seleção natural criasse traços e mecanismos perfeitos eles seriam independentes. Porém, este é um problema histórico: a seleção natural só pode agir sobre o que já existe. E o que existiu foi um ancestral remoto de todos os vertebrados, um animal semelhante a um verme, que se alimentava de microor- ganismos retirados da água através de um sistema de filtração. Por outro lado, era pequeno demais para ter um sistema respi- ratório. A respiração se dava por difusão passiva, sistema que só foi substituído quando evoluiu para um tamanho maior e um sistema respiratório se evoluiu. Esse novo sistema aproveitou o sistema de filtração de alimentos, que facilmente foi adaptado como um conjunto de guelras, possibilitando a troca gasosa. O aparecimento, muito mais tarde, do pulmão, trouxe a neces- sidade de vias específicas para a passagem do ar pelo sistema respiratório e dos alimentos pelo digestório. Porém, em função da origem comum, essas passagens se cruzavam, característica que mantemos até hoje.

Alcock (2001), por outro lado, chama a atenção para o fato de que a ênfase supostamente excessiva no poder da seleção natural se deve em grande parte às evidências que apontam que, de fato, em grandes populações a seleção natural é o mecanismo preponderante de mudança evolutiva. Meca- nismos alternativos, como por exemplo, deriva genética, pleio- tropia, exaptação, são reconhecidos, mas também se sabe que eles explicam em seu conjunto uma proporção muito pequena das mudanças evolutivas.

A primeira crítica ao livro Sociobiology foi publicada em

New York Review of Books (Allen et al., 1975)4 e termina suge-

rindo que Sociobiology sinalizaria uma nova onda de teorias biologicamente deterministas. Indo além, a crítica equiparava o livro a políticas racistas e a uma agenda política conservadora. A partir não apenas das criticas publicadas, mas de entrevis- tas com vários dos críticos, Segerstråle (2000) sugere que estes consideravam seu dever moral “interpretar” os textos para o leitor leigo, esclarecendo o que Wilson, e outros, como Dawkins, Hamilton e Trivers, estavam realmente “querendo dizer”.

Vários nomes de peso, como Richard Dawkins, Maynard Smith, William Hamilton, Robert Trivers, Irving DeVore, entre outros, saíram em defesa de Wilson. Na realidade, se algumas das críticas desempenharam um papel importante na revisão de alguns conceitos e explicações sociobiológicas, a proposta original em grande parte vem sendo confirmada através de estudos do comportamento humano e animal (Alcock, 2001). Como Krebs e Davies (1997) sugerem, as críticas à sociobiologia não diminuíram o valor da explicação darwinista, mas levaram à revisão de alguns conceitos e à ampliação de outros. Essas críticas, porém, tiveram o efeito perverso de manchar esta denominação, levando a maioria dos pesquisadores da área

4 É interessante que a primeira autora deste artigo, Elizabeth Allen, era na época uma estudante de graduação em medicina. Esta críti- ca foi publicada logo após o lançamento do livro Sociobiology que foi a primeira das muitas publicações que têm a marca de Gould e Lewontin nas críticas a Wilson. No entanto, nesta publicação, espe- cificamente, a ordem dos autores foi alfabética porque a idéia era produzir um documento que representasse o Sociobiology Study Group, do qual faziam parte os dois cientistas (Segerstråle, 2000, 2001).

a evitar qualquer tipo de ligação com o termo e a denomi- nar sua área de trabalho com denominações alternativas. Outras disciplinas, como a Ecologia Comportamental Humana e a Co-evolução Gene-Cultura, além da Psicologia Evolucionista, são derivações da Sociobiologia, mas são poucos aqueles que assumem esta herança.

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 36-43)