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Mal-entendidos: dimensão evolucionista

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 149-156)

Os nove principais mal-entendidos da dimensão evolucio-

nista, a qual reúne os erros sobre a origem evolutiva do fator

biológico aplicado à mente e ao comportamento humano, são: 1. Evolução perfeccionista: Na verdade, evolução significa apenas mudança transgeracional na população sob o efeito local de forças ambientais, sociais e do acaso. Todas as adaptações têm restrições e custos. A seleção favorece mecanismos que supe- ram o custo relativo na comparação com outras alternativas, não a perfeição. Então, achar que a evolução teria como meta progressiva atingir uma otimização perfeita nas adaptações sem restrições é um mal-entendido; 2. Panadaptacionismo: nem todos os traços são adaptativos, seja porque apareceram como efeitos colaterais e não têm função adaptativa, seja porque são subprodutos de adaptações ancestrais que no presente servem a outro propósito (Box 3; Fig. 3). Por exemplo, a gula e a fácil acumulação de gorduras como reserva permitiam a sobrevi- vência em tempos de escassez ancestral, mas chegam a ser prejudiciais no presente em situações de farta disponibilidade de alimentos calóricos. Então, achar que todo e cada compor- tamento e mecanismo cognitivo tenham um valor adaptativo específico é incorreto; 3. Se não é uma adaptação, não é produto da

evolução: Sermos capazes de fazer coisas novas, como digitar,

não exclui que essa habilidade ou seus subcomponentes tenham sido sujeitos a outras pressões evolutivas ancestrais ou recen- tes, ou seja, que não exista nada de evolutivamente relevante na coordenação motora fina e na linguagem usadas para digi- tar (Box 3; Fig. 3). Então, pensar que comportamentos recentes ou para os quais não existe uma função adaptativa evidente excluem a possibilidade de qualquer consideração evolutiva,

é um mal-entendido; 4. Ambiente ancestral totalmente diferente: Somos o resultado do nosso passado ontogenético, sociocultu- ral e filogenético. Hoje, trazemos conosco legados e vestígios de nossa história de vida, mesmo tendo aparência distinta; de nossa história sociocultural, mesmo já vivendo na era digital; de nossa história filogenética, mesmo não sendo mais caçado- res-coletores, ou répteis. Reconhecer e conciliar eventos nesses três níveis históricos nos dá uma visão mais ampla e contextua- lizada (Box 1; Fig. 1). Portanto, assumir que hoje, por viver em um ambiente muito diferente do ancestral, não podemos usar o Ambiente de Adaptabilidade Evolutiva para estudo do nosso comportamento é um erro; 5. Apenas histórias: A plau- sibilidade de uma tese não garante a sua veracidade, por isso as explicações adaptativas devem passar por testes empíricos rigorosos por meio de diferentes metodologias e usando varia- das fontes de dados (cf., Schmitt & Pilcher, 2004) (Box 4; Fig. 4). Portanto, achar que o adaptacionista é quem fica só criando histórias plausíveis e justificativas mirabolantes é um engano; 6. Adaptação igual a gene: A PE busca descrever as adaptações mentais da natureza humana, nossas propensões psicológi- cas evoluídas (Box 2; Fig. 2) e não genes. Nessa busca, empre- ga uma confluência interdisciplinar de métodos e fontes de evidência: teóricas, psicológicas, interculturais, filogenéticas, médico-fisiológicas e genéticas (cf., Schmitt & Pilcher, 2004) (Box 4; Fig. 4). Portanto, pensar que a PE busca identificar os genes subjacentes ao comportamento adaptativo, como o “gene da agressão”, é um mal-entendido; 7. Maximização intencional

da replicação genética: Genes se replicam cegamente segundo a

lógica demográfica da seleção natural, mas as pessoas não precisam pensar nas razões adaptativas para agir adaptati- vamente. Elas têm lógicas e razões próprias: fazem sexo por

prazer, por amor, para terem filhos, entre muitos outros moti- vos proximais (cf., Meston & Buss, 2009). A existência de razões e lógica própria, intencional, na cabeça das pessoas não anula a lógica e as razões evolutivas ou vice-versa, pois ambas estão em diferentes níveis (Box 2; Fig. 2). Da mesma forma, dizer que os outros animais fazem sexo para reprodução (razão evolutiva), não significa que eles não ajam movidos por causas proximais, como excitação, prazer e amor. Portanto, acreditar que a exis- tência das explicações distais adaptativas implicaria na exis- tência de pessoas se comportando com intenção de maximizar a sua replicação genética nas próximas gerações, é um equívoco; 8. Gene egoísta, pessoa egoísta: As adaptações mentais e corporais evoluíram substituindo versões menos efetivas em sua replica- ção; a aplicação do termo egoísta refere-se a essa propagação diferencial na população, e não a uma meta consciente do gene ou do indivíduo. Então, imaginar que a existência de “genes egoístas” subjacentes ao comportamento tornaria as pessoas mais egoístas é errôneo; e 9. Confusão da intencionalidade com

o funcionamento da adaptação: Assim como aranhas e castores

não precisam saber fazer cálculos de engenharia para fazer suas construções, não precisamos fazer conscientemente cálculos de grau de parentesco ou custo e benefício para ajudar parentes, amigos ou estranhos (Box 2; Fig. 2). A natureza humana apre- senta espontaneidade e proficiência próprias. Portanto, achar que nossas adaptações mentais só funcionariam se estivéssemos conscientes do como elas processam informações ou do porquê foram selecionadas é um mal-entendido.

Então, como vimos, para prevenção e solução de erros da dimensão evolucionista, temos que aceitar que evolução não é progresso. Devemos nos libertar de posições antropocêntricas e assumir que somos mais uma espécie neste planeta, tão especial

quanto as outras, nossas parentas. O processo seletivo sobre as populações, que é material, cego e não tem finalidade (telos), mas por ser cumulativo pode dar origem a mecanismos corporais e mentais complexos e abertos ao ambiente, ou seja, adapta- tivamente calibráveis para resolver problemas recorrentes do passado. Explicações evolucionistas são complementares àque- las de causas proximais ou sócio-históricas (causas mediais). Gostamos de brigadeiro tanto por razões fisiológicas (papilas gustativas), como neurológicas (sistema límbico), psicológicas (vício, prazer), pessoais (aniversário), ontogenéticas (desde pequeno), socioculturais (receita tradicional da avó), adaptativas (elevado valor calórico, sobrevivência), e filogenéticas (prima- tas onívoros) (Box 1; Fig. 1). É importante percebermos que o adaptacionismo não é a crença de que tudo é otimizado, perfeito e adaptativo, ou de que plausibilidade é suficiente. Trata-se de uma forma promissora de olhar tanto para os traços físicos e mentais inferindo quais problemas adaptativos ancestrais recorrentes eles poderiam resolver, quanto para olhar para cada desafio evolutivo recorrente e imaginar que traço poderia resolvê-lo melhor. Em seguida, previsões sobre eficiência e restrições na resolução do problema são testadas usando várias metodologias e fontes de dado em combinação (Box 4; Fig. 4).

Box 3. As adaptações são como as espécies, pois também são hetero-

gêneas, variadas e surgem de versões anteriores. A glândula mamária de todos os mamíferos veio dos répteis sinapsidas ancestrais comuns, e neles ela surgiu como uma especialização das glândulas apócrinas da pele, as quais secretam suor mais gorduroso que servem como glândula de cheiro. Saber a origem das adaptações ajuda a entender especifici- dades da sua ontogênese e funcionamento, mas os fatores responsáveis pela origem nem sempre são os fatores responsáveis pela sua manuten- ção e aprimoramento posterior. É importante não confundir “adaptado” com “adaptativo”. Adaptações são adaptadas, pois em sua manuten- ção ancestral foram modificadas e aprimoradas pela seleção natural ou sexual, ou seja foram adaptativas por um longo período ancestral. Mas hoje elas podem não ser mais adaptativas, dado que o ambiente sempre muda. A adaptação pode deixar de ser adaptativa ou ter nova função, e esta pode substituir ou ser adicionada à função ancestral. Essa nova função pode ser recente ou antiga o suficiente para a seleção atuar e originar uma nova adaptação. Toda adaptação tem subprodutos e ambos podem ser cooptados para novas funções; este é o processo da exaptação. Ao se distinguir e integrar adaptado, adaptativo e exaptação as relações entre causas distais adaptacionistas e filogenéticas são evidenciadas. A figura 3 interliga tais conceitos.

Figura 3. Origem e manutenção de adaptação, adaptativo, exaptação, cooptação, subproduto, no passado, presente e futuro. Adaptado de Buss, Haselton, Shackelford, Bleske e Wakefield (1998), Laland e Brown (2002), e Gould e Vrba (1982).

Box 4. As adaptações não são todas iguais, pois são frutos de combi-

nações únicas de processos ontogenéticos, históricos, populacionais e ambientais. Entretanto, existem algumas características típicas que as adaptações em geral apresentam. A figura 4 lista as fontes de evidência para identificação de adaptações bem como as respectivas pistas que nos auxiliam nessa identificação. Quanto mais pistas de fontes diversas forem testadas e reunidas maior nossa certeza de que algum mecanismo ou processo corporal ou mental se constitui uma adaptação.

Figura 4. Check list para ajudar na identificação de uma adapta- ção. Adaptado de Schmitt e Pilcher (2004), Andrews, Gangestad, e Matthews (2002), Gould e Vrba (1982) e *Miller (2000).

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 149-156)