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Modularidade maciça e a questão da ontogênese

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 113-121)

Pode-se discutir a modularidade maciça a partir das influências da ontogênese e da filogênese. Wallace (2010) contesta o modelo de modularidade maciça utilizado pelos psicólogos evolucionistas baseando-se no notável grau de plasticidade neocortical do cérebro humano, especialmen- te no desenvolvimento inicial. Em uma linha de raciocínio semelhante, Panksepp (2014) alega que como não há evidên- cias que os módulos no córtex cerebral sejam decorrentes da seleção pela evolução, eles podem ter sido construídos social- mente. Já as funções subcorticais dos cérebros dos mamíferos, segundo esse autor, seriam hereditárias. O funcionamento do

córtex sofre influências das emoções e isso significa que ele pode entendê-las; porém, não se pode gerar emocionalidade sem as áreas subcorticais. Talvez o principal argumento contra a modularidade maciça seja o de que a maior parte das funções neocorticais é programada durante o desenvolvimento e não pela herança evolutiva. Panksepp e Biven (2012) afirmam que as interações ao longo do desenvolvimento entre circuitos primitivos de propósito específico e mecanismos cerebrais mais recentes de propósito geral podem ter gerado muitas das capacidades humanas modulares que têm chamado a atenção da psicologia evolutiva.

Em uma linha de raciocínio semelhante, a contribui- ção de Karmiloff-Smith (1995) confere papel de destaque para a ontogênese. Ela sugere que o resultado do desenvolvimento e da aprendizagem seria a especialização e a modularização das estruturas. A mente, ao invés de ter módulos formados desde o nascimento, iria aos poucos se tornando modular, por inter- médio de um processo crescente de modularização próprio do desenvolvimento. Nesse sentido, ela admite relativa flexibilida- de na ontogênese, conferindo papel mais determinante ao meio e às interações, mas reconhece que há limites dados pela filogê- nese. Para essa autora, existiriam no nascimento alguns poucos mecanismos pré-especificados (em domínios tais como lingua- gem, física e número). Em seu modelo há dois caminhos na orga- nização da informação: no processo de “procedimentalização”, o conhecimento se torna menos acessível, mais encapsulado, e é processado de forma mais automática; no outro, o conheci- mento vai se tornando aos poucos mais acessível a outros domí- nios. A gradual modularização inclui fluidez cognitiva.

Em posição ligeiramente diferente, Clune, Mouret e Lipson (2013) argumentam que a capacidade de evolução (evolvability)

dos organismos encontra apoio na modularidade. Ela permi- te que as partes de um sistema complexo (no caso a mente) se modifiquem independentemente, facilitando mudanças necessárias aos diferentes ambientes e pressões ambientais. Se a mente fosse um bloco monolítico a adaptação seria muito mais difícil, pois haveria necessidade de uma modificação muito mais ampla diante de pressões ambientais. A modularidade favorece a adaptação dos organismos, especialmente se levarmos em conta as mudanças ambientais. Em simulações computacionais, os ambientes que mudam, produzem redes modulares, visto ser mais fácil uma parte apenas ser alterada em um sistema. Em ambientes que não mudam são produzidas redes não modula- res, em razão de serem mais lentas para se adaptarem a novos ambientes. A modularidade, portanto, parece emergir como um traço selecionado ou uma adaptação às rápidas mudanças ambientais. Como vivemos em ambientes que mudam rapida- mente, a resposta evolutiva que melhor se adapta a isso parece ser a da modularidade.

Sinteticamente, Clune, Mouret e Lipson (2013) conside- ram que: a) diversos processos biológicos são modulares. Há modularidade nas redes metabólicas bacterianas e isso está correlacionado com a velocidade de mudança do meio em que vivem; b) a engenharia ensina que sistemas modulares são mais adaptativos em virtude de ser mais fácil e menos custoso repro- gramar uma rede composta por subunidades. Teoricamente, em um ambiente biológico que mude constantemente, a modularidade permite modificação de um componente sem afetar outros. Adicionar mais conexões em um sistema não modular pode atrasar o tempo para dar uma resposta críti- ca; c) os organismos são capazes de rapidamente se adaptarem a novos ambientes e sistemas modulares possibilitam essa

rapidez de resposta; então parece haver boas razões para supor a existência de mecanismos mentais específicos para processar estímulos de natureza distinta.

Em síntese, quando se discute a modularidade problema- tizando o papel da ontogênese e o papel da filogênese os autores se dividem. Aqueles que privilegiam a dimensão da filogênese consideram que as adaptações psicológicas estão programadas para surgir ou se modificar em distintos momentos do desen- volvimento, com foco principalmente sobre o funcionamento mental adulto, não conferindo maior importância ao processo de construção ou de desenvolvimento ontogenético.

Há outros teóricos que postulam a possibilidade de mudanças nos módulos ao longo do desenvolvimento indivi- dual, possuem capacidade para se equilibrarem levando em conta as especificidades ambientais, com abertura ontogené-

tica, como pontua Ades (2009). Isso significa que os módulos

não precisam permanecer fixos ao longo do desenvolvimento. Pensar a arquitetura mental supõe considerar ao mesmo tempo as evidências oriundas de estudos sobre a filogênese e sobre a ontogênese, incluindo as contribuições das neurociências.

A partir dessas colocações sobre a modularidade talvez não caiba a contraposição entre especificidade e plasticidade neural. A modularidade gera controvérsia entre os teóricos principalmente quando se pensa sobre a plasticidade neural (Buller, 2005; Karmiloff-Smith, 1995; Ward, 2012). Os que se opõem à concepção de modularidade maciça, como já visto, argumentam que há muitas evidências de que as estruturas neurais mudam constantemente ao longo da vida dos orga- nismos em resposta às condições ambientais e às experiências individuais. A plasticidade neural refere-se a modificações na organização funcional do cérebro decorrente dos inputs

sensoriais e do próprio padrão de atividade cerebral. Estudos sugerem que a experiência desempenha papel fundamental na determinação da circuitaria neural (Ward, 2012). Seria então a plasticidade um problema para a concepção de uma modu- laridade maciça, no sentido de que a arquitetura mental para esta última estaria especificada em um programa genético? Se adotarmos uma perspectiva baseada em um debate que se travou em torno da perspectiva Fodor - e que se caracterizou por polarizações não produtivas como inato versus aprendido, rigidez versus plasticidade, consciente versus inconsciente – tal questão faria sentido.

No entanto, quando se trabalha com uma concepção de módulo oferecida pela biologia, de caráter mais funcional, o foco recai sobre processo de especialização hierárquica, diversidade funcional e interação e percebe-se que a questão colocada não caracteriza uma boa compreensão da modularidade proposta pela biologia (Barrett, 2015). Como já salientado anteriormen- te, quanto mais modular for o sistema, mais modificações ele permite, o que favorece enormemente a plasticidade neural. A modularidade poderia ser um pré-requisito para a evolução de sistemas mais complexos (Carruthers, 2006). A modularidade tal como concebida por Fodor não se mostra capaz de explicar o funcionamento modular dos organismos. Ele considerava os módulos como reflexos cognitivos, operando automática e rapi- damente, fora do nível consciente, altamente pré-especificado com pouco ou nenhum espaço para a aprendizagem e disso decorria a ideia que parece equivocada de que quanto mais especificado o sistema, menos haveria espaço para a plastici- dade e modificações ontogenéticas.

Plasticidade indica uma propriedade essencial do desen volvimento cerebral, a de ser extremamente sensível ao

ambiente, a partir dos seus genes, possibilitando modificações estruturais e anatômicas na arquitetura mental (Oliva, Dias & Reis, 2009). Essas alterações, no entanto, estão sujeitas a restri- ções previamente estabelecidas pela seleção natural que limita- riam, de alguma forma, essas mudanças. Se as modificações nas conexões neurais fossem livremente estabelecidas, acarretaria transformações imprevisíveis ao longo do desenvolvimento. A pré-especificação neural apenas orienta, em certa medida, cursos possíveis que a plasticidade pode exibir.

A literatura sobre capacidades de recém-nascidos (Oliva, Dias & Reis, 2009) indica que a mente deles não é uma tabula rasa a ser preenchida por informações ambientais. É possível que programas selecionados pela evolução favoreçam comporta- mentos em bebês não explicados pela aprendizagem e isso fala a favor de especificidade neural prévia.

Conclusões

Este capítulo procurou mostrar como a arquitetura mental é pensada por diferentes autores e como algumas dicotomias perderam a força em virtude de se colocar o problema da modu- laridade sobre outras bases teóricas.

A modularidade mental conforme descrita por Fodor apresenta problemas que levam a impasses. Contudo, o modelo de modularidade da biologia tem recebido apoio empírico de estudos relacionados a sistemas modulares computacionais. De acordo com Barrett (2015) talvez a modularidade seja uma condição necessária para a evolução de sistemas complexos. Deste modo, a plasticidade mental, diferentemente do que se pensava, surge mais facilmente em sistemas maciçamente

modulares. A forte propensão que os organismos possuem para se modificar e se adaptar rapidamente a novos ambien- tes é possível graças aos sistemas modulares que, como mostra a engenharia, são mais fáceis de serem reprogramados, pois são compostos por subunidades (Clune, Mouret & Lipson, 2013). Portanto, a modularidade difundida no cérebro por meio de redes neurais biológicas é condição de possibilidade da plas- ticidade visto que os sistemas modulares parecem ser mais adaptativos e podem ter sido selecionados como um subprodu- to da evolução. Além disso, parece explicar o funcionamento mental, considerando o desenvolvimento ontogenético.

Questões para discussão

1. Defina módulo mental e qual a sua função na sobrevivên- cia dos seres humanos?

2. A visão clássica de Fodor para explicar o funcionamen- to mental baseia-se na existência de módulos mentais e de um processador geral. Essa visão contrasta com a de psicólogos evolucionistas que trabalham com a visão de modularidade maciça. Discorra sobre essa polarização. 3. Em que medida a noção de completa independência entre

os módulos, defendida por Fodor, mostra- se problemática para explicar o funcionamento mental?

1.4

Bases Neurais do

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 113-121)