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As Primeiras Ferramentas de Pedra e o Surgimento do gênero Homo

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 82-90)

Embora alguns ossos de animais apresentem evidência de marcas de corte há cerca de 3,4 milhões de anos (Etiópia), a mais antiga evidência direta do uso de ferramentas líticas é proveniente de Gona, Etiópia (Semaw et al., 1997). Essa primei- ra indústria lítica, denominada de Olduvaiense, era composta de lascas retiradas de blocos de pedra (chamados de núcleos, Figura 2a) através de golpes dados por uma pedra redonda, como um seixo de rio. Apesar de parecerem, à primeira vista, bastante rudimentares, estudos detalhados indicam uma gran- de habilidade de lascamento, seleção de matéria-prima e do tamanho dos seixos a serem lascados, a presença de coorde- nação “olho-mão”, uso da força correta no lascamento, assim como o transporte dessas ferramentas e o uso das mesmas para cortar e descarnar animais. Assim, postula-se que há cerca de 2,5 milhões de anos teriam ocorrido mudanças na exploração do ambiente, incluindo mudanças na dieta, um aumento na qualidade da mesma através da maior inclusão de carne (o que

traria implicações para crescimento do cérebro conforme discu- tiremos depois) e um processamento de carcaças através do uso de ferramentas de pedra lascada.

Figura 2. Elementos das Indústrias Olduvaiense (a), Acheulense (b), Musteriense (c), Aurinhacense (d) e Gravetiense (e). Créditos: a) Mercedes Okumura, acervo LEEH-IB-USP, b) Victoria County History of Kent Vol 1, p 312, Londres, 1912, domínio público; c) Wellcome Images, Creative Commons Attribution 4.0 International license; d) “Flûte paléolithique, Musée National de Slovénie, Ljubljana, 9420310527”, por Dalbera, Paris, licença CC BY 2.0 viaWikimedia Commons; e) Mercedes Okumura, acervo LEEH-IB-USP.

Uma das principais questões ao se tratar das primeiras ferramentas líticas e de suas implicações para as mudanças subsequentes na exploração do ambiente diz respeito a quem as estava fabricando e utilizando. Essa questão deve-se ao fato de que por volta de 2,5 milhões de anos surge um novo gênero de hominínio: o gênero Homo. De fato, os mais antigos fósseis de Homo habilis são datados de cerca de 2,4 milhões de anos e têm sido comumente associados ao uso de ferramentas, embora as evidências não sejam conclusivas. Devido à sua morfologia bastante primitiva (com traços anatômicos mais simiescos do que alguns australopitecíneos), os fósseis associados a H. habilis têm sido colocados, por alguns autores, como pertencendo ao gênero Australopithecus (Wood & Collard, 1999). Independentemente de sua classificação, o que importa é que há cerca de 2,5 milhões de anos ocorrem mudanças impor- tantes na dieta e na tecnologia de alguns grupos de hominínios e essas modificações implicam em possíveis transformações cognitivas e de sociabilidade nesses grupos.

Para muitos autores, o surgimento de um novo gênero (o gênero Homo) aconteceu apenas por volta de 1,9 milhões de anos, com o surgimento do Homo erectus. De fato, esses fósseis apresentaram uma grande mudança anatômica e permitem inferir importantes transformações comportamentais na histó- ria evolutiva dos hominínios. Espécimes bastante preservados de Homo erectus (como o famoso fóssil do “Garoto de Turkana”, descoberto em 1984, no Quênia, Walker & Leakey, 1993), revela- ram importantes mudanças anatômicas em relação aos austra- lopitecíneos. Apesar das diferenças anatômicas marcantes observadas entre crânios de H. erectus e de H. sapiens (Figura 1b), em H. erectus já é observado um aumento importante do volume do cérebro, que passa a ter, em média, 930 cm3, ou seja,

quase o dobro do observado nos australopitecíneos. Além disso, o H. erectus apresentava estatura equiparável às populações humanas modernas de ambientes tropicais, chegando a 180 cm. Em termos pós-cranianos, também apresenta mudanças em relação ao observado nos australopitecíneos: estatura maior, uma caixa toráxica que sugere uma diminuição do tamanho do trato digestivo e uma pélvis mais estreita (Figura 3). Além disso, não estão mais presentes as adaptações arborícolas observadas nos australopitecíneos, indicando um aumento na eficiência de locomoção bípede (Antón, 2003). Todas essas características fazem H. erectus mais semelhante H. sapiens do que aos austra- lopitecíneos. De fato, essas semelhanças anatômicas entre os dois grupos permitem inferir a presença de algumas caracte- rísticas importantes observadas atualmente na nossa espécie e cuja origem teria se dado com o surgimento do H. erectus, como veremos a seguir.

Figura 3. Comparação entre os esqueletos de Australopithecus (esquerda) e de H. sapiens (direita). Observe as mudanças na forma da pélvis e da caixa toráxica. O padrão observado no H. erectus aproxima-se do H. sapiens. Créditos: a) “MH1 Australopithecus sediba skeleton”, por Profberger, licen- ça CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons; b) “Primatenskelett-drawing” por desconhecido, Brehms Tierleben, Small Edition 1927, domínio público via Wikimedia Commons.

As restrições anatômicas já mencionadas acerca da morfologia da pélvis em relação ao tamanho do cérebro de um bebê ao nascer devem ter se tornado de suma importância com o grande aumento no volume cerebral verificado em H. erectus e nos outros hominínios do gênero Homo que surgiram depois

(Rosenberg & Trevathan, 2002). O padrão de desenvolvimento cerebral típico de um grande símio faria com que o tamanho do cérebro adulto de um Homo fosse o dobro do tamanho de seu cérebro ao nascer. Homo sapiens adultos apresentam, em média, volume cerebral de 1.350 cm3 (Figura 1c) e, portanto,

bebês humanos deveriam nascer com cérebro de 725 cm3. No

entanto, esses bebês nascem com cérebros de, em média, 385 cm3. Ou seja, nossos bebês nascem com cérebros relativamente

pouco formados, que continuam a crescer na taxa intraute- rina por aproximadamente um ano após o nascimento. Essa chamada altricialidade secundária tem como resultado uma infância prolongada e uma demanda maior de cuidado parental para com esses filhotes. Esse cuidado parental maior poderia também explicar a origem de um fenômeno observado atual- mente apenas em humanos: a grande longevidade feminina pós-menopausa. A “Hipótese das Avós”, proposta por Williams (1957) e posteriormente complementada por outros pesquisa- dores (Hawkes, 2003), explica o surgimento dessa incapacida- de reprodutiva em mulheres de idade adulta avançada devido aos benefícios ganhos pelos bebês quando são cuidados, não apenas pelas mães, mas também pelas avós. Assim, mulheres em idade avançada, impedidas de reproduzir, investiriam suas energias no cuidado da prole de seus parentes (geralmente dos filhos). Assim, o comportamento humano parental, que tem sido descrito como cooperative breeding, ou cuidado cooperativo, (porque o cuidado aloparental seria essencial para a sobrevi- vência da prole), teria tido um papel importante na evolução de características como menopausa feminina e grande longe- vidade (Hrdy, 1999; 2009; Mace, 2000). Esse cuidado aloparen- tal é verificado em algumas espécies de primatas, incluindo chimpanzés (Kishimoto et al., 2014). O maior cuidado requerido

por esses bebês também explicaria o cuidado parental que envolve não somente fêmeas, mas também machos (ou seja, envolve os pais de um bebê). Esse alto investimento parental masculino num contexto de organização social multimacho e multifêmea (atualmente observado somente em humanos), assim como a possível formação de laços de longa duração entre fêmeas e machos (raramente observados em outras espécies de primatas do Velho Mundo), teriam sido essenciais para a sobre- vivência de bebês em um panorama de altricialidade secun- dária e infância estendida (Workman & Reader, 2004). Devido à algumas semelhanças anatômicas observadas entre H. erectus e humanos modernos, pode-se postular o início dessas caracte- rísticas relacionadas à altricialidade secundária e demais carac- terísticas associadas com os H. erectus (Coqueugniot et al., 2004). Uma dieta de melhor qualidade, que incluía gordura e proteína de origem animal provavelmente teve um papel crucial nas mudanças adaptativas observadas no H. erectus (Aiello & Wheeler, 1995; Plummer, 2004). As mudanças na forma da caixa toráxica de Homo em relação à forma observada em australopitecíneos são indicadores de uma redução do aparelho digestivo em Homo, que por sua vez estaria relacionada com a adoção de uma dieta de melhor qualidade, permitida, em parte, graças a uma produção sistemática de ferramentas de pedra relativamente elaboradas (conforme visto anteriormente). O aumento no consumo de carne estaria fortemente relacionado a um aumento do território de exploração (Aiello & Key, 2002), que, por sua vez, encontra-se forte e positivamente correlacio- nado ao tamanho do corpo nos mamíferos (Eisenberg, 1990). Embora seja difícil separar as causa e consequências da interação entre dieta de alta qualidade, a diminuição do aparelho digestivo e o aumento do corpo e do volume cerebral, o fato é que ocorre

um aumento significativo no volume cerebral ao longo do tempo no gênero Homo, culminando com os cérebros de H. sapiens e de seu contemporâneo H. neanderthalensis há 200 mil anos, conforme veremos mais adiante.

Além das transformações de cunho anatômico, com o H.

erectus é também postulado o início de um processo de aumen-

to de complexidade social (alguns pesquisadores inclusive colocam a hipótese de uma linguagem verbal primitiva, como Leakey, 1994, p. 122), dados os modelos que relacionam tama- nho de neocórtex e socialidade em primatas (Dunbar, 1992). A complexidade maior também pode ser observada em um novo tipo de indústria lítica relacionado principalmente com o H.

erectus: a Indústria Acheulense, observada entre 1,7 milhões

de anos e 100 mil anos (Figura 2b). Ao invés de apenas lascas e núcleos, essa indústria foi caracterizada pela presença de ferramentas de pedra simétricas, lascadas em ambas as faces e cuja morfologia lembra uma gota. Tais ferramentas foram chamadas de machados-de-mão e indicam uma sofistica- ção tecnológica relativamente grande. Além de uma possível melhora no processamento de alimentos, algumas caracterís- ticas desses machados-de-mão sugerem, para alguns pesqui- sadores, que eles poderiam ter uma função, além de utilitária, também simbólica. Sua grande padronização (conforme vere- mos adiante, exemplares dessas ferramentas são encontradas em grande parte da África e da Eurásia), a presença de milha- res de machados-de-mão sem nenhum sinal de uso (de fato, sítios onde há evidência de descarnamento de ossos possuem mais lascas do que machados-de-mão), a presença de macha- dos-de-mão de tamanho exagerado (que não seriam funcionais para descarnamento ou processamento de alimento), além do aumento da simetria e de algumas evidências de preocupação

estética (por exemplo, uso de rochas de coloração diferente ou com fósseis incrustrados) sugere uma possível função simbólica para esses objetos (Gamble, 1997), incluindo a função de display sexual (Kohn & Mithen 1999, mas veja Machin, 2008 e Nowell & Chang, 2009 para críticas a esse trabalho).

A distribuição observada dos fósseis de H. erectus também indica um fenômeno até então inédito na história da nossa evolução: esses seriam os primeiros grupos de hominínios a migrar para fora da África, por volta de 1,8 milhões de anos (fósseis encontrados na Geórgia). De fato, fósseis de H. erectus foram descobertos não somente na África, mas também na Eurásia, incluindo o atual território da China e a ilha de Java, comprovando uma distribuição relativamente ampla dessa espécie (Antón, 2003). Tal distribuição ampla teria sido facilita- da graças ao domínio do fogo (embora ainda exista controvérsia sobre quando este ocorreu na pré-história), à maior complexi- dade social, ao aumento da complexidade tecnológica (refletida na indústria lítica), entre outros fatores. Apesar da importân- cia dessas primeiras migrações, a descontinuidade espacial e temporal observada no registro fóssil associado a H. erectus na Eurásia sugere eventos de dispersão intermitentes.

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