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Desconhecimento Às vezes saber pouco e achar que se sabe muito é pior do que assumir não saber nada “Se seleção

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 161-168)

Fatores de Risco: as possíveis causas de mal-entendidos Por fim, vamos detalhar cada possível causa de mal-en-

1. Desconhecimento Às vezes saber pouco e achar que se sabe muito é pior do que assumir não saber nada “Se seleção

natural é sobrevivência dos mais fortes, então devemos colocar anabolizantes na água da cidade para evitar nossa extinção?” O desconhecimento é prejudicial, pois preenchemos nossas lacunas com pressuposições, acabamos fazendo conclusões indevidas e tecendo implicações irrealistas (Holcomb III, 2001). Então, com ilusório conhecimento de causa, achamos que nossos pressupostos e conclusões erradas são inerentes a toda PE, o que nos leva a desconsiderar a área. Este é o fenômeno da generalização por varrimento, uma falácia lógica. Querer saber mais, sempre ajuda; psicólogos têm de saber mais sobre gêmeos, Evolução e Etologia; biólogos, mais sobre cognição e sócio-história, e os outros acadêmicos e jornalistas de ciência têm que seguir ambos conselhos (cf., Ades, 2007).

2. Simplicidade teórica aparente. “A própria simplicida- de da teoria da evolução por seleção natural leva as pessoas a pensar que podem entendê-la completamente depois de uma breve exposição a ela” (Buss, 1999, p. 18). Por exemplo, “se seleção natural é reprodução diferencial, então devo prefe- rir bancos de esperma do que minha namorada?” Sem dúvida a seleção natural é muito mal compreendida (cf., Gregory, 2009; Smith, & Sullivan, 2007). Por mais simples que pareça, a teoria evolutiva é complexa, então saber mais nunca é demais.

3. Distorção sensacionalista. Em geral, a divulgação sobre pesquisas evolucionistas é feita de maneira super-simpli- ficada, sem muito rigor (Holcomb III, 2001). Soma-se a isso

o sensacionalismo feito com manchetes controversas, títulos apelativos e errôneos (Frederick et al., 2009). “Homens não podem se conter ao seguir com os olhos outras mulheres porque os homens ‘evoluíram’ para aumentar seu sucesso reprodutivo” (Hagan, 08/01/2014, Daily Mail Online, Health). Então, cientistas devem ser cautelosos quando fazem divulgação ou são entrevis- tados e devem antever e evitar os mal-entendidos que podem gerar via interpretação leiga. Infelizmente, não é prática jorna- lística comum mostrar a versão final editada e titulada do texto ao entrevistado, impedindo correções cruciais. Todos devemos evitar tirar conclusões rápidas baseadas no título. O famoso “O gene egoísta”, de Dawkins (1967/2007) gerou polêmica, pois as pessoas acharam que ele defendia haver genes para o egoísmo, quando na verdade, ele explicou a seleção natural do ponto de vista da dispersão de genes na população.

4. Entusiasmo ganancioso. Pessoas que gostam demais da PE podem ser vulneráveis a uma vontade de querer explicar (e até justificar) todo comportamento de forma adaptativa, de buscar aplicações práticas precipitadas e de achar que as outras aborda- gens são desnecessárias ou incompatíveis. A PE é fascinante, mas é bom ter os pés no chão, reconhecer suas limitações e cultivar uma atitude conciliatória com outras áreas (Confer et al., 2010).

5. Vieses cognitivos e falácias lógicas. Raciocínios e conclu- sões intuitivamente óbvios não garantem veracidade da conclu- são do argumento, muitas vezes nos afastam dela (Navega, 2005). Para Young e Persell (2000), o entendimento indevido de natureza e criação como opostas seria fruto de uma dicotomi- zação simplificadora frente à complexidade do tema (cf., Ridley, 2004). Não temos como mudar algumas rotas básicas de racio- cínio, mas podemos criar estratégias didáticas, ferramentas de

pensamento que nos ajudem a pensar melhor (cf., Brockman, 2012; Dennett, 2014; Jenkins, 2015).

6. Incompatibilidade de filosofias. Ter concepções filosóficas conflitantes ou incompatíveis com a abordagem. Ser dualista, assumindo uma mente ou alma imaterial separada do corpo físi- co, acaba impedindo o entendimento da perspectiva evolucio- nista, que é monista e materialista, pois ela trata a mente como um subproduto do processamento de informação realizado no funcionamento cerebral (cf., Hagen, 2005). Posturas filosóficas essencialistas dificultam o entendimento da variação popula- cional nas propensões comportamentais animais e da mudan- ça gradual dessas propensões ao longo das gerações (Gelman & Rhodes, 2012). Posturas antropocêntricas, em que o ser humano figura privilegiado e distanciado dos outros animais dificultam que se veja a continuidade e as relações evolutivas entre os humanos e outras espécies, incluindo o compartilha- mento de traços como personalidade, altruísmo, autoconsciên- cia. Explicitar a noção filosófica subjacente à abordagem ajuda a esclarecer de antemão as bases do evolucionismo.

7. Proibicionismo historicamente motivado. Os abusos políti- cos do passado em nome do evolucionismo, movimentos como eugenia e darwinismo social, deixaram marcas na história (Hass et al., 2000), como, por exemplo, o nazismo, e as por elas chamadas “limpezas” étnicas. O medo de que a PE sirva como nova base científica para atrocidades, como a da esteriliza- ção forçada da eugenia ou do capitalismo selvagem, pode causar desinteresse, resistência, repulsa e até um senso de que é proi- bido ligar a Biologia ao comportamento humano. Não temos como mudar o passado, mas podemos usá-lo para mostrar o que não se deve fazer (Barker, 2006), e separar a teoria evolu- tiva das aplicações sociopolíticas danosas feitas em seu nome.

8. Receios infundados. Pinker (2004) sugere quatro receios princi- pais sustentando a negação atual da natureza humana. O medo

da desigualdade surge da conclusão errônea de que a opressão

e discriminação serão justificadas se as pessoas forem biolo- gicamente diferentes. O medo da imperfectibilidade aparece na conclusão errônea de que a esperança de melhorar a condição humana será inútil se as pessoas forem biologicamente deter- minadas. O medo do determinismo aparece na conclusão errônea de que não poderemos mais considerar as pessoas responsáveis por suas ações se formos produto da Biologia. O medo do niilismo surge da conclusão errônea de que a vida não terá significado e propósito maiores se as pessoas forem produto da Biologia. Como vimos, essas conclusões são falsas, pois a constatação da natureza humana evoluída amplia nossa compreensão, previsão e possibilidade de intervenção nos comportamentos indesejá- veis (cf., Gentle & Goetz, 2010; Pinker, 2004).

Essas causas de mal-entendidos não são mutuamente excludentes. Holcomb III (2001) aponta que o efeito sinérgico entre as causas é uma receita perfeita para uma imagem impre- cisa e injusta da PE (cf., Jonason & Schmitt, 2016).

Vimos que quando combinados, o desconhecimento, a simplicidade teórica aparente, a simplificação sensacionalista, o entusiasmo ganancioso, os vieses cognitivos e falácias lógicas, o descompasso de filosofias, o proibicionismo historicamente motivado e os medos infundados, nos deixam bem mais vulne- ráveis aos mal-entendidos. Para ficar mais “vacinados” contra erros, distorções e preconceitos comuns contra a PE precisamos: saber mais sobre PE, não subestimar sua complexidade teórica, não se deixar levar por sensacionalismo, cultivar a autocrítica e a concordância com outras áreas, não se deixar levar por raciocínios óbvios porém falaciosos, encarar o monismo

materialista não antropocêntrico, evitar os erros e abusos sociais do passado, e não temer implicações absurdas advindas de conclusões errôneas. É crucial também conhecermos os prin- cipais mal-entendidos para podermos facilmente identificá-los e fazer as devidas correções.

Vimos que os “sintomas” da equivocação se manifes- tam em pressupostos e conclusões erradas sobre a origem do fator biológico no comportamento humano, sobre sua natureza e manifestação na vida do indivíduo, e sobre suas implicações sociais. Notamos que nem toda adaptação (devorar doces) precisa ser adaptativa atualmente (obesidade, diabetes), e nem tudo que tem valor adaptativo no presente (alfabetiza- ção) é uma adaptação em si, mas fruto de adaptações anterio- res relacionadas (linguagem e coordenação motora). As razões evolutivas que selecionaram adaptações mentais (sexo para propagação genética) não são, nem excluem, as razões cotidia- nas das pessoas (sexo por prazer, amor). Adaptações mentais não são inflexíveis, não geram sempre o mesmo comporta- mento, e não nos escravizam. Elas são plásticas, programadas para aprender o que for relevante ao longo do desenvolvimen- to, assim como nosso sistema imune. Lembre-se que o estar programado implica em predisposição e não em estereotipia, pois dizer que temos um programa de edição de texto instalado em nosso computador não quer dizer que só dá para digitar o mesmo texto, nem que independente do que for digitado sempre sairá o mesmo texto da impressora. Muito do funcio- namento das adaptações mentais são fruto do que fazemos com elas, assim como as adaptações corporais (pulmão de nadador ou de fumante). Elas podem gerar uma gama maior ou menor de comportamentos flexíveis dependentes do contexto sociocultu- ral (dieta, castidade). Por não controlarem rígida e diretamente

nossas ações, nossas adaptações mentais, não podem servir de desculpa para qualquer ação danosa. Temos propensões evoluídas tanto para mentir, trapacear e agredir quanto para o altruísmo, amar e perdoar (Wilson, Dietrich, & Clark, 2003). Somos animais morais, com responsabilidade para ofender e ser ofendido, culpar e ser culpado, desculpar e ser desculpado, perdoar e ser perdoado independente do que sabemos sobre genes, neurônios ou evolução. A PE não busca (des)moralizar ações, nem defender o status quo, muito menos identificar genes, ela tem um caráter mais descritivo e ao focar nos mecanismos cognitivos evoluídos faz a ponte dos genes e vias neurais com os processos psicossociais.

Conclusões

A compreensão da problemática dos mal-entendidos não estará completa sem uma compreensão adequada das possí- veis causas bem como das suas descrições e resoluções. Isso pode diminuir distorções e críticas infundadas, possibilitando melhores intervenções educativas, catalisando o pensamen- to crítico no ensino e na divulgação e integração conceitual entre as diversas áreas do conhecimento (Varella et al., 2013). Esse é um tema bem importante, pois se uma “infestação” de mal-entendidos cerca o evolucionismo, seu produto não terá impacto real, mesmo com todo o seu valor heurístico e parci- mônia, ou seja, toda a sua capacidade de gerar novas pergun- tas e descobertas, e toda sua maneira simples de explicar e conectar vários fatos distintos (Ades, 2007; Gentle & Goetz, 2010; Meyer & El-Hani, 2005).

Questões para discussão

Identifique e resolva os mal-entendidos das frases, discuta quais suas possíveis causas e quais possíveis prejuí- zos podem surgir de tais erros.

1. “A paixão não tem raízes biológicas, pois esse sentimento não é necessário para a procriação dos animais, assim a sobrevivência da espécie não depende dele. A escolha do ser amado tem explicações mais centradas no coração e na alma do que na ciência.”

2. “Os animais só fazem sexo para a reprodução, mas nos humanos, o primeiro ato sexual sem intenção de repro- dução genética pode muito bem ter ocorrido apenas em algum momento do século XX, após a revolução sexual.” 3. “As diferenças entre homens e mulheres não são fixa-

das pelos hormônios ao nascer. Reduzir as diferenças à herança biológica, que é imutável, seria naturalizá-las, ou seja, apoiar o machismo e negar a influência da expe- riência. É a cultura quem fornece sozinha os comporta- mentos masculinos e femininos.”

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COGNIÇÃO

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