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Evolução do aprendizado e da memória: Utilizando o passado para prever o futuro

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 130-136)

Nós, os mamíferos, utilizamos o nosso cérebro para nos comunicar e estamos fazendo isso constantemente há milhões de anos. Nossos processos cognitivos foram selecionados para permitir a resolução de problemas que os nossos ancestrais encaravam no dia a dia.

No que diz respeito ao desenvolvimento da mente huma- na, a capacidade de armazenar as nossas experiências diárias, nos ajudou a ajustar nosso comportamento baseado nas infor- mações adquiridas anteriormente nos permitindo modular a nossa forma de pensar, mesmo sem alterar o comportamento propriamente dito. Esta habilidade cognitiva não foi selecionada simplesmente para armazenar e evocar informações, mas para utilizar estas informações para algum propósito, ou seja, supor- tar comportamentos complexos. Nossas lembranças não ficam armazenadas de maneira estática, como informações armaze- nadas em um computador ou em uma biblioteca, ao contrário, a informação flui organicamente, podendo ser constantemente alterada, substituída, eliminada ou mantida ao longo do tempo.

Algumas estruturas cerebrais possuem um papel chave no processamento mnemônico, como é o caso das estruturas que compõem o sistema límbico; o hipocampo, a região parah- ipocampal, dentre outras. O papel funcional do hipocampo e regiões parahipocampais são amplamente conservadas nos mamíferos. Mesmo que evidências científicas indiquem que o hipocampo surgiu aproximadamente a 345 milhões de anos atrás, quase 100 milhões de anos após a divergência entre répteis e mamíferos, estruturas análogas ao hipocampo podem ser encontradas em aves e répteis (Gould, 2001; Gould, 2002;

Sarnat & Netsky, 1981). Algumas teorias tentam desvendar como estas estruturas se desenvolveram filogeneticamente, dando a capacidade de formar, armazenar e evocar informa- ções a uma grande diversidade de animais. Uma destas teorias trás a ideia de que a evolução filogenética deste processo cogni- tivo tão importante surgiu antes da divergência entre répteis e mamíferos. Desta forma, mamíferos, aves e répteis poderiam herdar toda a gama de alterações morfológicas que sustenta- ram a evolução do processamento cognitivo. Contudo, a ideia de que esta evolução ocorreu após esta divergência não pode ser negada completamente, pois o surgimento do sistema límbico e do neocórtex ocorreram de maneira independente para mamíferos e répteis alguns milhões de anos mais tarde (Dalgalarrondo, 2011).

É importante salientar que o desenvolvimento de regiões relacionadas com a capacidade de processar informação para utilizar no futuro evoluiu de acordo com a pressão seletiva que cada espécie dos diferentes táxons encontrou no seu ambiente. Por exemplo, os roedores que possuem comportamento de forrageio noturno e dependem disso para sobreviver e procriar, sofreram pressões seletivas que permitiram o desenvolvimento da capacidade de mapeamento espacial de sua área de procura por alimento e moradia. Este exemplo se aplica a todos animais na natureza, incluindo os seres humanos.

A pressão seletiva do meio ambiente foi possivelmente o que norteou o estabelecimento da diversidade de espécies que existe ou já existiu no nosso planeta. Este fato pode ser aplicado na evolução do sistema nervoso central e consequen- temente à complexidade do processamento cognitivo que verifi- camos atualmente. A capacidade de “lembrar” não foge à regra

e seguiu de perto as alterações neuroanatômicas decorrentes de milhões de anos de evolução das espécies (Darwin, 1859).

Aprendizado e memória

Grande parte daquilo que pensamos e sabemos sobre o mundo depende da nossa capacidade de registrar os aconteci- mentos ao longo da nossa vida. A capacidade de registrar infor- mações derivadas das nossas experiências ou da introspecção molda assim a nossa personalidade e nossas relações sociais (Squire & Kandel, 2011). Contudo, é importante entendermos que tudo o que deixamos de lembrar também nos torna quem somos, servindo de delineador entre os eventos importantes e os irre- levantes que acontecem nas nossas vidas (Baddeley et al., 2010). Existe uma grande confusão entre os conceitos de apren- dizado e memória, e isto acontece porque são conceitos depen- dentes um do outro. O aprendizado é o processo de aquisição dos acontecimentos acerca de nossas vidas, enquanto a memó- ria é o resultado deste processo, formando no nosso cérebro um registro do acontecimento e nos permitindo utilizar esta lembrança no futuro. Podemos também aprofundar a discus- são sobre estes conceitos tratando o aprendizado e a memória como parte de um continuum no processo de retenção de uma informação. Contudo, esta abordagem não é prática, sendo muito difícil para o entendimento de estudantes e pesquisa- dores interessados no tema. Desta forma, um livro que trata sobre o assunto teria apenas um grande e complexo capítulo (Baddeley et al., 2010).

Na literatura acadêmica, o conhecimento sobre aprendi- zado e memória é fragmentado em distintas fases, desde a sua

aquisição até a sua evocação. Desta forma, o conhecimento acer- ca do tema fica mais palpável ao primeiro contato do indivíduo interessado no assunto. A medida em que o tema vai ficando mais consolidado podemos partir para uma segunda aborda- gem, alcançando assim a real complexidade do aprendizado e da memória. Partindo da abordagem inicial, é possível dividir memória em 3 fases bem delineadas: aquisição, consolidação e evocação (ver figura 1). Na aquisição, a atenção e integra- ção sensorial são essenciais para que a informação tenha sua adequada entrada no sistema. Na fase de consolidação ocorre a filtragem da informação, onde ocorre o descarte de tudo que é irrelevante e o traço mnemônico é fortalecido, sendo esta fase responsável pelo armazenamento de um registro duradouro do traço mnemônico de forma que possa ser utilizado mais tarde (Dudai, 2004; Lupien & McEwen, 1997).

Durante a fase de evocação os registros armazenados são recuperados, trazendo à tona a informação previamente proces- sada. O resultado da evocação de uma memória acaba levando a processos antagônicos. Após a evocação, o nosso cérebro anali- sa novamente o conteúdo que foi trazido à tona, filtrando todas as informações para descartar o que é irrelevante e manter o que pode ser utilizado mais adiante. Os mecanismos molecu- lares e elétricos que conduzem esta seleção de alterações serão discutido mais a frente. Durante a evocação a memória volta a ficar lábil e assim exposta a atualizações ou fortalecimen- to através de um processo chamado reconsolidação (Alberini, 2005; Debiec et al., 2002; Duvarci & Nader, 2004; Lee et al., 2004; Milekic & Alberini, 2002; Nader & Einarsson, 2010; Nader & Hardt, 2009; Nader et al., 2005).

A memória em estado lábil ainda pode ser sobrepos- ta por informações mais relevantes através de um processo

chamado de extinção (Cammarota et al., 2005; Inda et al., 2011; Lupien & McEwen, 1997; Rossato et al., 2015). O processo de extinção forma uma nova memória e não uma atualização de uma previamente formada. Para que a extinção ocorra, a nova memória tem que ser novamente adquirida e consolidada (armazenada) para que assim fique disponível para ser evoca- da no futuro (Lupien & McEwen, 1997). Nesta fase, a memória evocada passa por um processo similar a consolidação, contudo com implicações evolutivas mais importantes do ponto de vista da ontogênese e da filogênese, salientando a natureza dinâmica das nossas memórias.

Do ponto de vista filogenético, a complexidade desta modulação do traço mnemônico pode nos ensinar muito sobre a evolução de estruturas importantes para tal. O que parece acontecer é que os mecanismos básicos necessários à forma- ção e armazenamento de uma memória são comuns a quase todas as espécies de animais, vertebrados e invertebrados. Contudo, quanto mais complexa é a informação a ser armaze- nada, o desenvolvimento de regiões especializadas é necessário. Este fato nos indica como a seleção de características entre os diferentes clados no reino animal (em especial nos mamíferos) evoluiu para ajustar o comportamento de acordo com a neces- sidade intrínseca de cada espécie. Já do ponto de vista onto- genético, a natureza dinâmica do aprendizado e da memória nos possibilita superar os problemas, descartando informações prejudiciais e agregando informações que possam nos trazer algum benefício ao longo da nossa vida (Nader, 2015).

Figura 1. Fluxograma mostrando as distintas fases do processamento mnemônico.

As nossas memórias podem ser classificadas de acordo com o tempo pelo qual elas perduram (Fig. 2). Esta classificação separa as memórias em 3 tipos: memórias sensoriais, memórias de curta duração (STM; do inglês – Short-Term Memory) e memó- rias de longa duração (LTM; do inglês – Long-Term Memory). As memórias sensoriais são aquelas que retêm uma breve impres- são de um estímulo sensorial após este ter desaparecido. As STM também são conhecidas como memórias “ativas” ou “primá- rias”. Pode ser definida como aquela memória que nos permite manter “em mente” e em um estado ativo e facilmente aces- sível, uma pequena quantidade de informação recentemente adquirida. As LTM são subclassificadas de acordo com o seu conteúdo em: declarativas ou não-declarativas. As memórias declarativas estão relacionadas ao conhecimento de pessoas, locais, informações e eventos de nossa vida, sendo mais flexí- veis e dependentes de uma evocação consciente. Já as memórias não-declarativas são aquelas relacionadas a informações sobre

como realizar uma tarefa; não dependem de uma evocação consciente e são mais rígidas (Squire & Kandel, 2011).

No documento Manual de psicologia evolucionista (páginas 130-136)