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1.2. O Turismo e o Nacionalismo num Contexto Internacional

1.2.1. A Alemanha

Uma prova decisiva para determinar a importância atribuída ao turismo no Terceiro Reich reside na velocidade com que a legislação foi introduzida para regular a indústria. No dia 23 de junho de 1933, Hitler assinou uma lei que criou a organização do Comité do Reich para o turismo. Esta organização sublinhava que o turismo era um meio de esclarecimento e não apenas de transporte ou da economia. Em termos dos próprios turistas, a intenção era que o turismo devesse rejuvenescer a população para permitir maior produtividade, bem como educá- la na história e na ideologia nazi. O turismo foi visto como tendo o potencial para quebrar as barreiras entre os alemães através de um maior contacto, tentando atraí-los para longe do apelo do socialismo e do comunismo. O seu papel era entendido como fundamental para preparar a opinião popular para a expansão geográfica no exterior. Pretendia-se o consentimento internacional para a política externa nazi. Os “equívocos” da comunidade internacional poderiam, através deste meio, ser atenuados, atraindo turistas estrangeiros que veriam, por si mesmos, como o regime havia sido deturpado no exterior95.

Um dos projetos levados a cabo durante este período denominava-se Autobahn (de 1933 a 1939) e constituiu uma importante medida para apoiar a propaganda política nacional. Quando analisamos o processo de tomada de decisão desta iniciativa, encontramos, naturalmente, o objetivo primário de criar emprego e promover o transporte motorizado. No entanto, realçamos os propósitos secundários deste projeto relacionado com o desenvolvimento da autoestrada e a promoção do turismo96.

O papel do turismo como domínio da propaganda política destaca-se pelo facto de a organização central das agências de viagens integrar o Ministério de Propaganda de Goebbels. A propaganda para o projeto Autobahn poderia combinar diversas intenções, nomeadamente ocultar as ideias retrógradas, bem como objetivos agressivos do nacional-socialismo – como, por exemplo, a discriminação racial, religiosa e sexual, a glória do artesanato e do trabalho agrícola como fundamentos de um “povo saudável”. O desejo de expansão colonial, aliado ao

95 Semmens, Kristin (2005), Seeing Hitler’s Germany: Tourism in the Third Reich, Houndmills,

Palgrave Macmillan, pp.1-16.

96Vahrenkamp, Richard (2006), “Automobile tourism and Nazi propaganda constructing the Munich–

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moderno conceito de transporte por autoestrada, proporcionavam um projeto para satisfazer as partes do movimento nazi que procurava a modernização97.

A Autobahn seria adaptada à paisagem, ao mesmo tempo que esta deveria ser cuidada. Esta foi uma ideologia que foi desenvolvida para conciliar a tecnologia e a natureza. Por último, a autoestrada abriu oportunidades para passeios e turismo. Focando no último aspeto e na questão de como as pessoas se adaptaram às novas oportunidades de recreação, deve ressaltar- se que, já no início do projeto Autobahn, em 1933, foram publicadas propostas sobre como a autoestrada poderia estimular o turismo em regiões menos desenvolvidas. Já na década de 1920, foi reconhecida a importância do turismo como fator de desenvolvimento económico98.

Semmens defende ainda que a indústria do turismo na Alemanha tinha como missão garantir ao público que o país era “normal” e um lugar tranquilo para se viver – para as pessoas certas99. Uma grande parte da indústria do turismo foi projetada para manter esta propaganda

nazi-fantasista e foi também um aparelho para convencer os estrangeiros a visitarem a Alemanha, pois este seria um bom e seguro lugar para se estar. Na década de 1930, os turistas internacionais garantiam uma parte significativa do rendimento do setor e eram um foco importante do esforço da propaganda nazi. Até ao início da guerra, os alemães eram incentivados a viajar para fora da Alemanha; no entanto, mais tarde, o turismo interno começava, uma vez mais, a ganhar um novo fôlego100. Tal foi a capacidade de propagandear o seu país que os comboios se encontravam lotados por turistas, enquanto soldados feridos que regressavam da linha da frente eram obrigados a ficar de pé na sua viagem até casa e suportar civis rudes que se encontravam de férias, sem respeito pelo seu sofrimento – algo que irritou até mesmo a Gestapo101.

O regime nacional-socialista na Alemanha trouxe novos impulsos, nomeadamente um número cada vez maior de viagens e de práticas destinadas às massas. As várias etapas e padrões hierarquizados de uso do novo turismo são visíveis. O turismo em massa surgiu no Terceiro

Reich. Esta forma de passar férias foi caracterizada pela sua pretensão de democratização em

nome da força de trabalho em geral, o Volk. Hitler queria conceder ao trabalhador a

97Vahrenkamp, Richard (2006), op. cit., pp. 21-38. 98Vahrenkamp, Richard (2006), op. cit., pp. 21-38.

99Semmens, Kristin (2005), Seeing Hitler’s Germany: Tourism in Third Reich, Houndmills, Palgrave

Macmillan, pp. 1-16.

100 Semmens, Kristin (2005), op. cit., pp. 1-16. 101Semmens, Kristin (2005), op. cit., pp. 1-16.

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possibilidade de gozar feriados e fazer de tudo para garantir que este período pudesse proporcionar uma verdadeira recuperação102.

Em junho de 1935, um admirador de Adolf Hitler, Sir Benjamin Dawson, escreveu uma carta ao Führer, convencido de que manter a paz entre as nações e garantir melhores condições de vida da população deveria estar no topo das suas prioridades103. No entanto, o que quererá dizer “melhorar as condições de vida”, pergunta Dawson? Este enfatizou a importância de dias de trabalho mais curtos, um assunto largamente debatido a nível internacional. Por outro lado, regimes fascistas e autoritários pouco se preocupavam com um horário de trabalho de oito horas, mas deram alguma atenção ao problema relacionado com o tempo livre dos trabalhadores. Tendo consciência dos possíveis perigos que pudessem resultar do tempo de lazer não regulamentado, o Estado alemão acabou por liderar o processo neste âmbito, ao organizar, em exclusivo, as atividades durante estes momentos livres. Entre as várias ditaduras, o Terceiro Reich ocupava um lugar de destaque através da implementação do programa Kraft

Durch Freude (Força pela Alegria), um programa baseado no modelo italiano Dopolavoro.

Deste modo, e com estes programas de integração e ocupação de tempos livres, o Estado alemão seria um Estado total, que se ocupava de todas as esferas da atividade humana, estando ainda na origem da classificação política de totalitarismo.

Criada em 1933, a Kraft durch Freude fazia parte da Frente Alemã de Trabalho (Deutsche Arbeiterfront), uma organização alemã, e tornou-se a maior operadora de viagens do mundo. Outro objetivo deste programa era o de impulsionar a economia alemã e estimular a indústria do turismo, que foi mesmo muito bem-sucedido até à eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em 1934, mais de dois milhões de alemães haviam participado numa viagem KdF. Terá sido em 1936 o momento alto do programa, registando 6,8 milhões de participantes. Em 1939, os números reportados desceram para os 5 milhões de alemães registados no programa104. A partir de 1933, o KdF organiza atividades de lazer a preços acessíveis, tais como concertos, peças de teatro, bibliotecas, passeios e feriados. Os grandes navios, como o Wilhelm Gustloff, foram construídos especificamente para servirem de cruzeiros da KdF. Esta organização recompensava trabalhadores, levando-os, e às suas famílias, ao cinema, a parques, ginásios,

102 Gyr, Ueli (2010), op. cit., p.8.

103 Baronowski, Shelley (2005), “Radical Nationalism in an international context: strength through joy

and the paradoxes of Nazi tourism”, em John Walton, Histories of Tourism: Representation, Identity and Conflict, Clevedon, Channel View Publications, pp. 125-143.

104 Baronowski, Shelley (2007), Strength through Joy: Consumerism and Mass Tourism in the Third

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caminhadas, atividades, exibições de filmes e espetáculos desportivos. O KdF rapidamente desenvolveu uma ampla gama de atividades e tornou-se uma das maiores organizações da Alemanha105. As estatísticas oficiais mostram que, em 1934, 2,3 milhões de pessoas passaram as férias através do KdF. Em 1938, este número subiu para 10,3 milhões. Em 1939, tinha mais de 7.000 funcionários pagos e 135.000 trabalhadores voluntários, organizados em divisões, que abrangiam áreas como desporto, a educação e o turismo.

Especificamente sobre estes cruzeiros, os mesmos contemplavam uma rota a Portugal, com destino à cidade de Lisboa e à ilha da Madeira, a partir de 1935, por acordo com o governo de Salazar. Até ao início da guerra, mais de 40,000 alemães terão passado pelo país. As visitas eram cuidadosamente preparadas e tinham um forte impacto na “pacata e retrógrada capital portuguesa”106. De acordo com Cláudia Ninhos, na sua obra, Portugal e os Nazis, “a encenação

incluía fogo de artifício ou o disparar de morteiros, que explodindo, desfraldavam bandeiras portuguesas e alemãs”. Quando os navios atracavam, os visitantes alemães teriam à sua espera no cais grande parte da colónia alemã e conhecidas personalidades portuguesas, nomeadamente representantes oficiais de organizações como a FNAT ou o SPN. O Secretariado de Propaganda Nacional chegou, inclusive, a produzir um filme sobre a chegada a Lisboa de um dos navios da KdF. Outros filmes destas visitas foram produzidos e mostrados na Alemanha como forma de promover o programa de lazer em questão e os ideais do regime nazi.

O itinerário dentro do país incluía visitas a Lisboa e arredores, como, por exemplo, a Setúbal, onde cerca de 80 alemães visitaram a Fábrica das Sardinhas, tendo sido “recebidos com mesas em forma de cruz suástica e com retratos de Hitler e Salazar, lado a lado, na parede”107. Quer as viagens, quer as próprias receções tinham um importante instrumento de

propaganda alemã. Na área da política externa, estes navios, conhecidos por “navios da paz”, pretendiam “convencer os outros países de seus objetivos pacifistas”. E, por último, o terceiro objetivo destas viagens dizia respeito à inculcação de valores e da ideologia nazi entre os alemães que residiam em Portugal, já que estes eram convidados a participar nas festividades realizadas nestes navios.

Em conclusão, podemos afirmar que, quer o projeto Autobahn, quer o Kdf tinham no turismo e lazer um grande objetivo que integrava uma política de turismo abrangente sob o Terceiro Reich. A indústria do turismo alemão, criada pelos nazis para promover a sua

105 Baronowski, Shelley (2005), op. cit., pp. 125-143.

106Ninhos, Cláudia (2017), Portugal e os Nazis: Histórias e Segredos de uma Aliança, Esfera dos Livros,

p. 102.

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Gleichschaltung, nunca morreu, e embora tivesse, a certa altura, sido quase abandonada, o

espírito sobreviveu. Mesmo com a Alemanha em ruínas, com soldados a regressar a casa sem as suas armas, os alemães ter-se-iam enamorado de tal forma com as viagens que poderiam ser “encontrados entre os escombros do império caído, sentados em cafés e tomando vapor, misterioso líquido e a escrever postais”108. Por volta dos anos 50, toda a indústria tinha já recuperado. Em 1953, foram registadas mais dormidas fora de casa do que em qualquer momento durante o Terceiro Reich.

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