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Entre setembro de 2003 e junho de 2004, o Ministério da Defesa promoveu um

ciclo de debates voltado para a atualização do pensamento brasileiro em matéria de defesa e

segurança29. Naquela ocasião representantes do governo, parlamentares, militares,

acadêmicos, diplomatas e jornalistas debateram acerca da conjuntura mundial e dos rumos a serem trilhados pelo Brasil a partir da implementação de suas políticas de defesa e segurança, considerando os novos desafios advindos das ameaças e vulnerabilidades externas e internas. Tradicionalmente e por sua geografia, o Brasil se manteve relativamente distante dos principais eixos de tensão e conflitos internacionais, nos últimos anos. No entanto, mesmo mantendo esta tradição pacifista, concluiu-se que o Brasil não está mais imune a “novas ameaças” que tanto acometem a soberania dos Estados-Nação.

Ao analisar grande parte dos artigos expostos no colóquio, Santos (2006, p. 1- 2) especifica:

Em termos genéricos, estas “novas ameaças” representam um universo significativo de inimigos sem rosto e endereço que podem, de alguma forma, interferir nas relações internacionais entre países e, portanto, exigem atenção destes nos temas segurança e defesa. Estas “novas ameaças” traduzem-se em instabilidade financeira internacional, falta de controle de doenças infecciosas, criminalidade cibernética, terrorismo, tráfico de drogas, pessoas e órgãos, lavagem de dinheiro, biopirataria, o uso político da guerra, sinais de esgotamentos do sistema das Nações Unidas, violação das fronteiras de Estados soberanos, eclosão de guerras regionais, aumento da disponibilidade de armamentos sofisticados para conflitos locais e grupos independentes ou mercenários, tendência mundial a abolir o recrutamento geral e o alistamento compulsório dos jovens abrindo perspectivas para criação e emprego de forças armadas privadas em guerras futuras, desintegração do poder estatal e algumas regiões do mundo reforçado pelo aumento portentoso da riqueza privada concentrada em poucos indivíduos ou empresas, desequilíbrio do desenvolvimento econômico e social, crescimento dos negócios e 28Ver o Decreto nº 4.484, de 30 de junho de 2005, que aprova a Política de Defesa Nacional e dá outras providências. Este

Decreto entrou em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, edição nº 125 de 1º de julho de 2005, em substituição a PDN aprovada em novembro de 1996.

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Os trabalhos apresentados nas oito rodadas de debates estão disponíveis no site do Ministério da Defesa no endereço: http://www.defesa.gov.br.

patrimônios ilegais e, por fim, a unipolaridade do sistema internacional, em detrimento do multilateralismo. (Grifos nossos).

Porém, apesar dessas diversas possíveis ameaças, continua o autor, o risco que explicitamente preocupa nossas autoridades diz respeito à questão amazônica, a qual, face à nova ordem mundial e, ainda, por razões internas (segurança dos habitantes) e externas (defesa territorial), muito tem demandado reanálise das políticas públicas de defesa e segurança do país.

Na verdade esse fato não é novo. Conforme já havíamos comentado, tais preocupações vêm ocorrendo desde a década de 1960 e tornou-se mais ampla na década de 1980 com o fim da Guerra Fria. Por sua vez, ao analisarmos os processos nacionais e internacionais referentes à questão amazônica, podemos concluir que estes suscitaram no Brasil um novo quadro de percepções antigas. Nesse sentido Martins Filho (2003) afirma que temas como a vulnerabilidade das fronteiras, as campanhas internacionais sobre temas sensíveis, o tráfico de drogas, guerrilhas e sua compreensão como partes do tema mais amplo da cobiça internacional reapareceram nos anos 1990, articulados numa perspectiva mais radical da ameaça de internacionalização da Amazônia, inserida atualmente nos liames do conflito Norte/Sul.

A PDN de 1996 também deixou implícita a preocupação com a Amazônia ao estabelecer em suas diretrizes:

[...] j) proteger a Amazônia brasileira, com apoio de toda a sociedade e com a valorização da presença militar; l) priorizar ações para desenvolver e vivificar a faixa de fronteira, em especial nas regiões norte e centro-oeste; [...] o) aprimorar o sistema de vigilância, controle e defesa das fronteiras, das águas jurisdicionais, da plataforma continental e do espaço aéreo brasileiros, bem como dos tráfegos marítimos e aéreo; p) garantir recursos suficientes e contínuos que proporcionem condições eficazes de preparo das Forças armadas e demais órgão envolvidos na defesa nacional. (Grifos nossos).

Ainda no escopo da PDN de 1996, a preocupação com a Amazônia é explicitada na análise do quadro internacional, quando se reporta aos problemas regionais da seguinte forma:

No âmbito regional, persistem zonas de instabilidade que podem contrariar interesses brasileiros. A ação de bandos armados que atuam em países vizinhos, nos

lindes da Amazônia brasileira, e o crime organizado internacional são alguns dos pontos a provocar preocupação.

A simples análise deste documento oficial nos mostra claramente o processo de consolidação da Amazônia Legal como área estratégica de defesa para o país. Nesta perspectiva, o SIPAM/SIVAM encaixa-se claramente nas diretrizes da PDN. Por sua vez, as análises de conjuntura, deixam claro que a Amazônia é, e deve ser o foco das atenções da Política de Defesa. Não por um ato reflexo em conseqüência da distensão na fronteira Sul, que durante mais de um século, por razões concretas ou por percepções equivocadas, foi considerada o principal problema estratégico do País, segundo observa Pereira (2004), mas pelas evidentes ameaças e vulnerabilidades que pairam sobre a Hiléia, as quais comentamos anteriormente.

Destas ameaças, duas se sobressaem. A primeira, não muito plausível, apesar de exercer grande influência em setores importantes da sociedade, principalmente o militar, trata do recorrente receio de que, objeto da cobiça estrangeira, a Amazônia sofra tentativas de internacionalização. A segunda, mais real e concreta, aponta para o fato de que a escassa presença do Estado facilite ou até estimule a ação de grupos interessados em tirar proveito da fabulosa biodiversidade da região, ou em usá-la como base ou via de penetração para a prática de ilícitos como o narcotráfico, ou, ainda, em transferir para território brasileiro conflitos civis

que travam em seus países.Nesse sentido, as conclusões as quais chegaram os debatedores do

evento sobre a atualização do pensamento brasileiro em matéria de defesa e segurança o qual

nos referimos no início desta seção, não são novas.

No primeiro caso, as ameaças contra a soberania do Brasil sobre a Amazônia por parte das grandes potências tanto para a obtenção de lucros com as riquezas da biodiversidade local, quanto para transformar a região em santuário ecológico intocado podem ser afastadas “uma vez que o governo brasileiro estabeleça e implemente uma política

capaz de conciliar as necessidades de utilização do potencial econômico da Amazônia com as exigências da conservação ambiental. Tal política, mais do que satisfazer a países ou grupos estrangeiros, seria a resposta aos anseios dos brasileiros”. (Pereira, 2004, p.211-212).

Por sua vez a solução dos problemas causados pela porosidade do espaço lindeiro amazônico exige a participação ativa das Forças Armadas. Apesar da ampliação da presença militar já ter ocorrido, a partir da revitalização do PCN e implantação do SIPAM/SIVAM, ainda há grandes espaços vazios nas fronteiras amazônicas. Dessa forma, aumentar as unidades do Exército nas fronteiras, ampliar a presença da Marinha nos rios da

bacia amazônica, equipar a Força Aérea para assegurar a mobilidade estratégica requerida para operações nos pontos mais longínquos do território são estratégias plausíveis.

A proteção da Amazônia é a prioridade da defesa nacional e assim deve ser tratada no momento das definições políticas e da distribuição de recursos. Ademais, a consolidação da Amazônia como prioridade estratégica de defesa, implica em uma maior necessidade de integração operacional por parte das Forças Armadas.

2.2.1 - As Concepções de Defesa da Amazônia a partir da Política de Defesa Nacional de 2005

A PDN aprovada por meio do Decreto nº 4.484, de 30 de junho de 2005

compõe-se de duas partes, uma política que aborda os conceitos, o ambiente internacional e nacional e os objetivos da defesa e outra estratégica que trata das orientações e diretrizes.

Na perspectiva política, a nova PDN reconhece o aspecto multifacetado e

diversificado da fisiografia nacional que em termos de defesa demandam, ao mesmo tempo, política geral e abordagem específica para cada caso, com ênfase nas áreas vitais onde se encontra maior concentração de poder político e econômico. Complementarmente, prioriza a Amazônia e o Atlântico Sul pela riqueza de recursos e vulnerabilidade de acesso pelas fronteiras terrestre e marítima.

Ao reconhecer que a garantia da presença do Estado e a vivificação da faixa de

fronteira são dificultadas pela baixa densidade demográfica e pelas longas distâncias, associadas à precariedade do sistema de transportes terrestre, que condicionam o uso das hidrovias e do transporte aéreo como principais alternativas de acesso, a PDN também considera essas características como facilitadoras da prática de ilícitos transnacionais e crimes conexos, além de possibilitar a presença de grupos com objetivos contrários aos interesses nacionais.

Esse cenário implica no reconhecimento de que a vivificação, a política

indigenista adequada, a exploração sustentável dos recursos naturais e a proteção ao meio ambiente são aspectos essenciais para o desenvolvimento e a integração da região. Ao mesmo tempo o adensamento da presença do Estado, e em particular das Forças Armadas, ao longo das nossas fronteiras, é condição necessária para a conquista dos objetivos de estabilização e desenvolvimento integrado da Amazônia.

Dessa forma, para a consecução desses propósitos, a PDN implica nos

seguintes objetivos30:

I - a garantia da soberania, do patrimônio nacional e da integridade territorial; II - a defesa dos interesses nacionais e das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros no exterior;

III - a contribuição para a preservação da coesão e unidade nacionais; IV - a promoção da estabilidade regional;

V - a contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais; e VI - a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais.

Por sua vez as orientações estratégicas da nova PDN indicam a necessidade do Brasil dispor de meios e capacidade de exercer a vigilância, o controle e a defesa do seu espaço aéreo, aí incluídas as áreas continental e marítima, bem como manter a segurança das linhas de navegação aéreas.

Com relação às diretrizes de defesa, vale destacar os seguintes dispositivos mais diretamente relacionados à Amazônia:

[...] V – aprimorar a vigilância, o controle e a defesa das fronteiras, das águas jurisdicionais e do espaço aéreo brasileiro;

VI – aumentar a presença militar nas áreas estratégicas do Atlântico Sul e da Amazônia Brasileira;

[...] XV – implementar ações para desenvolver e integrar a região amazônica, com apoio da sociedade, visando, em especial, ao desenvolvimento e à vivificação da faixa de fronteira;

[...] XVII – estimular a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico e a capacidade de produção de materiais e serviços de interesse para a defesa. (Grifos nossos).

A nova configuração da PDN, não só com relação à Amazônia, continua mantendo os mesmos parâmetros tradicionais que caracterizam o pensamento geopolítico brasileiro, com a diferença de não considerar no seu escopo os preceitos da era bipolar, mais particularmente o conceito de segurança interna. Assim, mantêm a Amazônia como o objetivo de defesa mais relevante para País.

2.2.1.1 - A C&T e Soberania: O Papel da Tecnologia de Ponta na Segurança da Amazônia

Diante dos dispositivos da PDN é importante frisar a relevância do uso da tecnologia da informação como estratégia de defesa para a Amazônia Legal. Sobre este aspecto, Cardoso (2004) argumenta que a partir das diretrizes de defesa, simultaneamente, se faz necessário o domínio de tecnologias que mantenham o Estado forte econômica e militarmente; diminua o gap tecnológico em relação aos países mais desenvolvidos e aumente com relação aos menores; e viabilize ao Estado condições materiais para atender às demandas do povo. Cardoso (2004, p.185) segue afirmando que “o ciclo virtuoso desenvolvimento

tecnológico Estado poderoso povo satisfeito enrijece o País material e animicamente e o capacita e predispõe para a defesa da soberania, ao tempo em que a afirma, por tornar o País menos dependente.”

Torna-se evidente a importância fundamental do papel da ciência, da tecnologia e da biotecnologia tropical para a solução dos problemas relacionados à prática do desenvolvimento sustentável (Nascimento, 2005), desde que incorpore os impactos causados pela exploração dos recursos naturais sem destruir os ecossistemas e atendendo às necessidades das populações locais.

Por sua vez, no mundo da informação globalizada de alta velocidade, o problema para formulação de políticas de segurança nacional traduze-se, na visão de Raza (2004, p.3):

[...] primeiramente, na necessidade de uma estrutura de análise que permita, rapidamente, explicitar demandas simultâneas (e por vezes contraditórias) nas esferas internacional, estatal e humana, compatibilizando-as com alternativas de desenvolvimento econômico que sejam, ao mesmo tempo, eficientes, eficazes e socialmente custeáveis. Ainda de acordo com essa mesma perspectiva, é mandatório que o provimento de ambos segurança e desenvolvimento seja integrado por mecanismos de coordenação que permitam transpor os dividendos em variáveis políticas capazes de atuar sob os mecanismos de vaso- comunicação globais. (Grifos nossos).

Em face dessas considerações e dos dispositivos contidos na PDN, podemos considerar o SIPAM/SIVAM como referência para a nova concepção de defesa e segurança no contexto amazônico, à medida que atende as diretrizes e objetivos da nova política, agora não mais montada exclusivamente sobre fatores militares. O SIPAM/SIVAM é um projeto

multiministerial, voltado para a otimização de recursos públicos. Sua filosofia e diretrizes vêm ao encontro das crescentes demandas ecológicas, humanitárias, sociais e procura responder inteligentemente, mas não de forma subserviente, às ações de novos atores não- governamentais nacionais e estrangeiros (Lourenção, 2003).

Assim, face à conjuntura mundial e as evidências de que a capacidade tecnológica é um fator fundamental na determinação da potencialidade de um país e de suas aspirações futuras, o SIPAM/SIVAM parece estar em sintonia com os paradigmas que estão nascendo ou se transformando no âmbito da defesa e segurança em nosso País. O uso da tecnologia de ponta pautado na inteligência artificial como padrão de cooptação e desenvolvimento da região, para efeitos de segurança e defesa, vai ao encontro desses novos paradigmas que permeiam a segurança e a defesa nacional.

A imensidão do espaço amazônico apresenta elementos concretos que não deixam dúvidas da sua importância para o País. Dada as suas características que incitam as cobiças no plano internacional, o Estado deve se manter ativo tanto no que diz respeito à defesa da região, quanto no que se refere a ações que visem ao seu desenvolvimento econômico sustentável. A complexidade que caracteriza o cenário amazônico, composto de atores com intenções que muitas vezes vão de encontro aos interesses nacionais, implica em desafios difíceis de serem transpostos.

Portanto, em termos concretos, a valorização estratégica da região no âmbito da política de defesa deve se refletir em ações efetivas e consentâneas que abarquem todas as ameaças e preventivamente, diminuam as suas vulnerabilidades e promovam o desenvolvimento sustentável. Não se trata de fazer uma releitura das ações do passado, pois é necessário perceber, a partir do processo histórico e das mudanças ocorridas, que há uma ampliação do que é considerado pertinente para a manutenção da segurança na região.

Nesse sentido, o SIPAM/SIVAM surge como um novo modelo de gestão pública, caracterizado pela participação articulada de instituições governamentais de diversos níveis, que busca a convergência de esforços para alcançar, ao menos em tese, soluções compatíveis com as reais necessidades da região. A princípio, esse sistema vai ao encontro das perspectivas elencadas pela atual PDN. O SIPAM/SIVAM será esmiuçado e estudado com detalhe nos capítulos seguintes.

3 - O SIPAM/SIVAM COMO ESTRATÉGIA DE DEFESA E SEGURANÇA PARA A