• Nenhum resultado encontrado

Desde o começo, as ameaças e a segurança têm essa relação simbiótica e, particularmente na área estratégica da defesa e das Forças Armadas, são conceitos que se discutem há muito tempo (Mathias, 2006). A mesma autora esclarece que no campo das relações internacionais são áreas muito recentes que datam da 2ª Guerra Mundial praticamente, de onde começa a se trabalhar mais nos aspectos teóricos.

Por volta de 1989-1990 se pensou que o problema das ameaças estava superado e que a questão do confronto ideológico entre Leste e Oeste teria sido superada pela queda do muro de Berlim e o fim do sistema bipolar de estruturação de arranjo das forças internacionais. Esse tema ficou um pouco a margem e vieram novas teorias e abordagens. Mas logo que passou a euforia e otimismo dos primeiros instantes, percebeu-se que o mundo ainda estava crivado de conflitos, muitos dos quais de uma nova natureza.

Na realidade aquela conjuntura explicitava um compêndio de todos os tipos de conflitos possíveis. Em sua maioria, conflitos internos que emergiam depois de terem ficado mais de meio século abafados pela dicotomia Leste-Oeste. Isso porque se esses conflitos representassem um fator detonante de um conflito maior entre os dois pólos de forças eram sufocados do ponto de vista destes dois parceiros interessados ou eram disputados, na medida em que cada bloco buscava exercer a sua influência e conseguir avanços. Dessa forma, todo conflito se ideologizava e recebia o aporte ora de um lado, ora de outro lado, ou de ambos os lados.

Por volta de 1986 na Organização das Nações Unidas (ONU), se percebe que esse grande conflito estava findando e que o próprio desenvolvimento econômico estava se esgotando. A análise desta conjuntura culminou com a criação de uma comissão comandada

por Olof Palme4 que objetivava identificar a natureza e a configuração dos novos conflitos e

quais seriam as novas ameaças. A partir dos trabalhos desta Comissão é que surge o conceito de multidimensionalidade da segurança.

Sobre esse fato, San Pierre (2006) comenta:

4 Olof Palme, uma das figuras mais destacadas da política internacional em sua época, já como primeiro ministro da Suécia

foi assassinado na noite de 28 de fevereiro daquele mesmo ano, quando deixava um cinema na região central de Estocolmo, acompanhado por sua mulher. Para maiores detalhes, ver em http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/mundo/2601001- 2601500/2601052/2601052_1.xml.

[...] Então tínhamos as velhas ameaças que era o confronto mundial numa guerra que se considerava iminente, inevitável, inelutável. Essa metafísica promovia o armamentismo nos dois pólos de poder que nutria a inevitabilidade da 3ª Guerra Mundial. Já não era o inimigo externo comunista ou capitalista, sua vanguarda seja capitalista ou comunista se infiltrando nos dois sistemas mundiais. Apareciam os temas religiosos, a miséria, as migrações, enfim, o que se passou a chamar as novas ameaças. (grifo nosso)

O conceito de novas ameaças vai ser incorporado no nosso hemisfério como conceito da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1991, a partir dos trabalhos da Comissão Provisória que foi instituída para discutir as questões de segurança hemisférica e que depois se transformou na Secretaria de Segurança Multidimensional da OEA (Mathias, 2006). Já se apregoava o fim da segurança coletiva e sua substituição por uma segurança mais proativa, que estaria orientada a desmontar as ameaças antes que essas ameaças se constituíssem em perigo iminente ou num tema de conflito.

Mas afinal, qual o sentido da palavra ameaça? Como ela está imbricada no contexto do trabalho que ora desenvolvemos? Ameaça é algo que indica, anuncia ou prenuncia um dano, uma desgraça. Não é a própria desgraça ou dano, mas seu anúncio, seu indicativo, seu sinal. Esta definição não nos leva a muito longe, mas aponta para questões interessantes sobre o ponto de vista da segurança ou da defesa que é o que nos interessa e está relacionado às características das ameaças.

Mathias (2006) nos explica que a ameaça não é o próprio dado, o próprio efeito que provoca o temor, e sim o aviso de um inimigo. Neste aspecto, a constituição da ameaça não apenas não constitui um perigo, mas nos faz ver o verdadeiro perigo que está por trás dela. Assim, é a partir da identificação das ameaças que podemos estruturar a defesa.

1.2.1 - Breve Análise das Características das Ameaças

Compreender as características que envolvem as ameaças é de grande importância para a teoria de segurança e da defesa, particularmente para as chamadas agendas de segurança.

Nesse sentido, La Maisonneuve (1998, p.152) descreve as seguintes

características:

A ameaça é essencialmente diferente do que ela manifesta: não é ela que provoca o temor, mas quem o anuncia.

Só se constitui e opera na percepção daquele que é ameaçado.

É uma representação, um sinal, uma certa disposição, gesto ou manifestação percebida como o anúncio de uma situação não desejada ou de risco para a existência de quem percebe.

È importante para a segurança, pois a particularidade da ameaça é ser necessária [...] porque permite uma tomada de consciência das agressões potenciais, que podem se desatar num setor ou noutro. (grifos nossos).

No âmbito das percepções podemos afirmar que, possivelmente para os contribuintes norte-americanos que pagam os seus impostos para ter segurança nacional e evitar o problema das drogas nacionalmente, ter tropas norte-americanas na Colômbia ou iniciar uma guerra na Colômbia contra o narcotráfico pode ser um gesto de segurança, independentemente da efetividade que possa ter uma “guerra” ao narcotráfico. Isso trás uma segurança para o cidadão norte-americano e sensibiliza seus dirigentes para alguns aspectos políticos, como por exemplo, mais disponibilidade de recursos para o orçamento da defesa. Porém, para nós sul-americanos, a presença de tropas norte-americanas na Colômbia pode significar uma ameaça.

Compreendemos, portanto, que a ameaça não é um fenômeno em si mesmo. Não são as tropas norte-americanas na Colômbia que são uma ameaça ou uma segurança. As tropas são percebidas ora como uma ameaça, ora como uma segurança. A ameaça tem uma existência puramente nas nossas percepções e não existe fora delas, estão na nossa estrutura cognitiva (Mathias, 2006). Os perigos, os inimigos, as vulnerabilidades, por sua vez, têm existência própria.

Nesse sentido à medida que o Estado melhorar sua percepção, melhorará seu sistema de segurança. A segurança depende do que percebemos como ameaças ou ameaçador. Logicamente que este processo vai estar condicionado por fatores culturais, históricos, pela estrutura de defesa, pelas vulnerabilidades, pelo equilíbrio entre as vulnerabilidades e a capacidade defensiva (Rudzit, 2003 e Mathias, 2006). A percepção vai se perfilar em função da capacidade existente.

A importância da percepção das ameaças para a segurança é justamente que a identificação das ameaças nos permite começar a desenvolver a segurança. É a partir de ameaças que o Estado estrutura e modela sua defesa. Nesta perspectiva é importante evitar a tendência de se separar a política interna da política internacional. Isso porque a defesa muitas vezes é vista como uma questão nacional, sem relação ou importância com o contexto internacional (San Pierre, 2006). Em essência o sentido da defesa é a política externa. Nesse sentido para Clausewitz (1979) a política externa se faz com diplomacia e com defesa, não há

exercício diplomático eficiente se não há uma força por trás que garanta e fortaleça aquela política e vice-versa. Um pouco mais adiante (item 1.3), desenvolvemos melhor esta abordagem, a partir das perspectivas brasileiras.

1.2.2 - Análise do Conceito de Ameaça e seus Componentes

Analiticamente sempre do ponto de vista teórico podemos distinguir alguns elementos que concorrem na constituição de uma ameaça e que muitas vezes não aparecem tão claramente separados.

San Pierre e Mathias (2006), dentro de uma análise da ameaça identificam alguns elementos que a compõe. Como mostram os autores, podemos encontrar dentro do conceito da análise de ameaça, o ameaçador, que é o agente, o sujeito da ameaça. O sinal que é a ameaça propriamente dita. O sinal, que por sua vez poderia ser representado pelo movimento de tropas que nos adverte da ameaça do nosso vizinho. O sinalizado está representado pelo sinal. O receptor, ou seja, a unidade que recebe, percebe e interpreta o sinal de ameaça. O receptor da ameaça é o Estado. No Estado moderno, obviamente pela complexidade, não é o Presidente ou o Primeiro Ministro, mas são equipes completas, ministérios, secretarias que estendem seus terminais nervosos ou sua inteligência por estarem atentos para eventuais sinais que possam indicar uma ameaça e, portanto, um perigo por trás desse sinal.

Por último, o ameaçado pode ser diretamente o Estado. Ou pode ser um setor, por exemplo, a economia. Pode ser que esta economia seja ameaçada por uma tormenta que, colocando em risco a produção, provocaria descontentamento social, até chegar a colocar em risco a própria existência do Estado. Pode ser que a ameaça seja a um determinado grupo dentro do Estado étnico, religioso, profissional, ou sexual .

Essa perspectiva aponta para a nova reconceitualização da segurança, a partir do grupo de Oslo, em que se distinguiram os diferentes níveis de segurança. Não apenas a segurança como princípio de Estado, mas também a segurança societal, a segurança humana, a segurança étnica, a segurança do indivíduo (Mathias, 2006).

1.2.3 - Distinções entre Ameaça, Perigo, Inimigo e Vulnerabilidade.

Muitas vezes confundimos o conceito de ameaça com outros elementos ou fatores condicionantes e intervenientes. Schmitt (apud Oliveira, 2006) faz uma distinção de

ameaça com relação a três elementos perigo, inimigo e vulnerabilidade , como uma tentativa de privar-nos de alguns equívocos.

Para o autor, perigo é utilizado como sinônimo de ameaça. O perigo pode espreitar procurando aproveitar a surpresa, sem ameaçar. O pior dos perigos é aquele que não se anuncia, que surpreende. Um fato é mais perigoso quanto menos ameaça ou se anuncia. Podemos nos preparar, nos resguardar do perigo, mas não da ameaça. Ela é apenas a percepção de uma manifestação.

O inimigo tampouco é uma ameaça. Para o autor (apud Oliveira, 2006) inimigo é aquele que ameaça a nossa existência”. O inimigo é o promotor da ameaça, é a unidade onde se concentra a vontade e a intenção consciente e deliberada de nos prejudicar ou aniquilar. Ele pode nos ameaçar explicitamente ou não, mas o pressentimos como uma ameaça à nossa existência.

Vulnerabilidade às vezes também é confundida com ameaça. Do ponto de vista estratégico, vulnerabilidade refere-se às deficiências ou debilidades que nos colocam em desvantagem ante um eventual combate. A imbricação entre as vulnerabilidades e as ameaças reside na percepção destas. Com efeito, a consciência das vulnerabilidades aumenta a sensibilidade às ameaças.

Por outro lado, uma vulnerabilidade pode se transformar numa ameaça. Uma vulnerabilidade energética depender apenas de um país, por exemplo pode significar uma ameaça ao desenvolvimento do dependente. As vulnerabilidades geralmente são deficiências, carências, necessidades do país, não só em termos armamentistas. A vulnerabilidade, segundo Mathias (2006) “é uma coisa que podemos tratar tentando diminuir as deficiências. Ameaça

não se trata, ameaça se percebe. Do perigo podemos nos cuidar, das ameaças não, ela está dentro de nós. Ela se constitui num fenômeno interno .A autora não afirma que a ameaça não

tenha um fundamento real fora de nós, mas que é diferente desse fundamento real.

1.2.4 - As Fontes de Ameaça

As ameaças estão relacionadas a duas fontes: a natureza e os homens. Não poucas vezes a origem das ameaças não reside na vontade dos homens, mas nos desígnios da natureza. Podem ser: a) os desastres naturais: terremotos, inundações, fogo, etc.; e b) os desastres ambientais: buraco na camada de ozônio, derrame de poluentes, etc. Por sua vez o homem, na maior parte das vezes, é a fonte das ameaças, o emissor, é uma vontade consciente e deliberada a nos atingir e infligir um dano. São agentes, atuando individualmente ou em

grupos, associações, e classes, organizados nacionalmente, em alianças internacionais ou coalizões estatais que originam o sinal que ameaça.

Podem ameaçar como concorrentes, como adversários ou como inimigos. Podem ser ameaçadores na figura do Estado, de grupos societais ou de indivíduos isoladamente. Estes atores podem operar internamente nas fronteiras nacionais ou externamente, constituindo os dois grandes grupos de inimizade: o inimigo interno e o inimigo externo, categorias que historicamente organizaram as concepções estratégicas dos Estados (San Pierre e Mathias 2006). Talvez por isso Sun Tzu exigisse o conhecimento do inimigo, não somente da tropa do inimigo mais da psicologia do general. A psicologia do general muitas vezes condiciona e define o rumo de uma guerra. Aquele golpe de vista do estadista que não há computador que possa substituir permite fazer prospecção de cenários, futuros prováveis, construções de futuro. Nada substitui o olhar do expert, aquele olhar maturado em cima da ação.

Por fim, a vontade humana constitui-se no fenômeno mais difícil de prever, justamente pela emergência da vontade. Junto com essa vontade estão os elementos subjetivos que constituem a personalidade daquele que toma a decisão, como já apontamos anteriormente.

Importante frisar, que este trabalho aborda a questão da defesa e segurança a partir da perspectiva de ameaças que têm como fonte a vontade humana.

1.2.5 - Os Alvos da Ameaça

Os alvos apontados pelas ameaças são aqueles que vimos comentando. As unidades políticas, os grupos societais, a humanidade e o meio ambiente.

A unidade política corresponde ao Estado como tomador de decisões. Corresponde ao monopólio legítimo da força que garante a univocidade jurídica em um determinado território. Na visão de San Pierre (2006) “defende a integridade territorial e a

soberania interna e define o quadro institucional das relações sociais no seu interior. Sujeito internacional relaciona-se, no campo das relações de força, em regime de livre concorrência com outras UP do mundo político”.

Hoje, no entanto, de acordo com Oliveira (2006) são cada vez menores as probabilidades de conflitos interestatais.

[...] Hoje vemos mais uma mudança na natureza dos conflitos deste século que apontam para conflitos intra-estatais por motivos religiosos, políticos, étnicos,

nacional (ligados à liberdade). São intra-estatais porque acontecem dentro do mesmo território, de uma unidade decisória, portanto, dentro da unidade que tem o monopólio da violência.

Ainda com relação aos conflitos intra-estatais, é importante frisar que a segurança dentro do Estado é ameaçada pelo próprio Estado, como no caso dos golpes militares atuais ou de décadas passadas em que se exercia certo terror de Estado com ameaças aos cidadãos, sejam em grupos políticos ou isoladamente. O Estado que normalmente nós imaginamos como alvo da ameaça de conflito internacional, às vezes se torna portador da ameaça para setores sociais aos quais ele deveria garantir sua segurança.

Quanto aos grupos societais, o ameaçado é o direito à identidade de um determinado grupo social. A identidade pode ser racial, étnica, sexual, cultural, religiosa, profissional, etc.

No que tange à humanidade, a supervivência dos seres humanos ou a qualidade e forma de vida são ameaçadas, independentemente das afiliações políticas, de nacionalidade, de cultura ou outras. Há ameaças à segurança humana e ao bem-estar, inclusive pelo próprio Estado, sob o argumento da segurança estatal (Oliveira, 2006).

Por último o meio-ambiente quando, deliberadamente ou não, é ameaçado por acidentes na extração, na produção, no transporte ou armazenagem de produtos que agridem ou degradam o meio ambiente ou a biodiversidade ou por catástrofes naturais, mas também deliberadamente, quando despejamos na atmosfera poluentes que provocam o aquecimento global.

Existem muitas ameaças decorrentes de guerra que não são a própria guerra nem o próprio conflito. São circunstâncias que se seguem, efeitos às vezes não previstos desse. Por exemplo, o derrame de petróleo sem entrar nas questões nucleares e os agentes químicos não controlados corretamente.

As próprias migrações muitas vezes, são um produto de conflitos armados como, por exemplo, as migrações colombianas entre as fronteiras do Equador e em alguma medida para o Brasil. Mas, fundamentalmente, enquanto ameaça, essa população que foge de

ameaças de guerra, ela própria se torna uma ameaça para a população de países vizinhos5.

5

Segundo Argemiro Procópio in Destino Amazônico (2005), no sul do Equador já estão começando a surgir certa xenofobia com relação à migração colombiana, isso porque nesse momento, a migração colombiana é o maior fenômeno migratório do mundo.

Conforme podemos observar, as ameaças assumem diversas nuances. Percebê- las e identificá-las, bem como as suas fontes e os diversos aspectos que as envolvem é primordial para as ações de segurança e defesa e a elaboração de políticas públicas nessa área.