• Nenhum resultado encontrado

A Antropologia e o colonialismo português: um quadro geral

«Pode alegar-se que no tempo em que se fizeram as conquistas portuguesas não era a mesma que hoje a moral internacional que agora impõe o respeito pela liberdade e independência dos povos. Pode alegar-se também que o colonialismo português não foi mais brutal que o de outros países, ainda que colonialistas de menos duração. Tudo isso é certo. Mas também não são propósitos éticos os que presidem a uma tomada de consciência histórica. O passado foi como foi, não nos compete alterar os factos. Por isso mesmo não nos compete também obscurecê-los. O colonialismo – esta é a palavra – e o fenómeno de mais longa duração da nossa história. Por isso devemos ter ou procurar noções o mais objectivas possível e não mitológicas sobre esse fenómeno»224.

O início da empresa colonial portuguesa é aproximadamente coincidente com a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 31 de Dezembro de 1875225.

Contrariamente ao teor de certas teses propaladas no campo da História do período colonial – a mais celebre das quais é a de R. J. Hammond, publicada

224 Victor de SÁ (1977), Repensar Portugal. Reflexões sobre o colonialismo e a descolonização, Livros

Horizonte, Lisboa, p. 39.

225 Os dados relativos à criação da Sociedade de Geografia de Lisboa e sua intervenção nos

diversos aspectos da política colonial portuguesa, entre 1875 e 1895, encontram-se devidamente explanados na excelente obra de Ângela GUIMARÃES [(1984), Uma corrente do

colonialismo português: a Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895, Livros Horizonte, Lisboa], na qual a autora analisa, de uma forma sistemática, o comportamento daquele importante «grupo de pressão» perante os acontecimentos da política colonial na África Centro-Austral e na definição dessa mesma política.

em 1966 com o significativo título Portugal and Africa, 1815-1910: a study in

uneeconomic imperialism226 – , o colonialismo português moderno racionalizou objectivos económicos e traçou, em face desses objectivos, uma política colonial consequente, o que levou Ângela Guimarães a concluir227:

« – a orientação seguida pelo colonialismo oficial não derivou de uma tão invocada “incompetência” ou indiferença nacional mas, pelo contrário, foi o resultado da relação de forças de uma luta intensa em que participaram diversos grupos com diferentes poderes e interesses divergentes ou, por vezes, incompatíveis; – os colonialistas portugueses estavam, e tinham consciência de estar, a participar num movimento imperialista mais vasto, de que conheciam perfeitamente as motivações e os meandros políticos e económicos;

– as “perdas” coloniais, consecutivas à crise de 1890-92, não foram devidas ao descuido dos meios colonialistas portugueses, apanhados de surpresa pelo Ultimatum, mas sim a resultante da relação de forças a nível internacional e interno;

– a crise do Ultimatum é apenas o episódio mais violento de uma transformação político-económica que, ao instalar uma nova hierarquia de poderes a nível mundial, consagra a mudança de posição de Portugal dentro do sistema capitalista internacional».

A Sociedade de Geografia de Lisboa, enquanto «grupo de pressão»228,

pretendia inculcar na política colonial portuguesa uma maior racionalidade,

226 Richard James HAMMOND (1966), Portugal and Africa, 1815-1910: study in uneconomic

imperialism (study in tropical development), Stanford University Press, Stanford.

227 Ângela GUIMARÃES (1984), Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de

Lisboa, 1875-1895. Livros Horizonte, Lisboa, p. 225.

228 Uma tipologia comparativa dos diversos grupos de pressão (sociedades de geografia,

sociedades missionárias, associações comerciais, etc.) que despoletaram por toda Europa na alvorada da empresa colonial, poderá ser encontrada em Jean-Louis MIÈGE (1973), Expansion (cont.)

cientificidade mesmo, que pudesse assegurar e salvaguardar os interesses nacionais nas colónias, pelo que preconizava:

« – uma administração cientificamente organizada, dirigida por funcionários de elevado nível cultural e participada pela adesão de determinadas camadas das populações africanas “chamadas a um nível superior”. Os restantes elementos das populações dominadas, depois de afeiçoados à propriedade e ao “trabalho livre” deveriam tornar-se competentes produtores e consumidores, prevendo-se uma estratificação com uma classe média de técnicos auxiliares e uma vasta população de trabalhadores braçais;

– uma exploração económica de tipo moderno, tendo por base a realização das infra-estruturas necessárias – transportes, comunicações, saneamento, saúde, instrução – que permitissem o funcionamento eficaz de unidades produtivas modernas tanto na agricultura – sob orientação de granjas modelo para experimentação e aclimatação de espécies – como na indústria – transformação de produtos locais – como na exploração mineira, actividade lucrativa por excelência;

– defendia intransigentemente a integridade de todo o território colonial e o controlo pelo Estado de todas as grandes empresas e empreendimentos»229.

Isto é, desde logo a empresa colonial contou, nesse «grupo de pressão», com uma «consciência», uma reflexão sistemática sobre a questão colonial, os seus objectivos e as suas políticas.

____________________________________________________________ (cont.)

Européenne et Décolonisation de 1870 a nous jours, Presses Universitaires de France, Paris, pp. 159-166.

229 Ângela GUIMARÃES (1984), Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de

Como a História permitiu concluir, os objectivos da Sociedade de Geografia de Lisboa não vingaram, o que se ficou a dever, sobretudo, às imposições decorrentes de uma nova ordem de poderes a nível internacional que remeteram Portugal para o papel de um potentado colonialista dependente de outros colonialismos de primeira grandeza. Mas também porque, mesmo a nível interno e tendo como cenário o período conturbado de lutas intestinas que marcaram os 25 anos que antecederam a queda da Monarquia, diversos sectores político-económicos nacionais, fazendo eco dos interesses de grupos estrangeiros, obstaram à execução do programa da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Pugnando por «uma administração cientificamente organizada», a Sociedade de Geografia de Lisboa, manifestamente, entrevia as potencialidades de uma gestão colonial suportada no conhecimento das populações colonizadas. Alguns anos antes já a governação portuguesa se tinha dado conta da necessidade de estudos antropológicos nas colónias, fazendo publicar alguns decretos, como o de 2 de Dezembro de 1869 e os de 24 de Novembro e de 3 de Dezembro de 1874, onde se insistia sobre esse objectivo230. Era, evidentemente,

uma Antropologia Física – melhor dizendo, uma Antropometria – aquela que se demandava, como o demonstra a circular de 28 de Julho de 1885 ordenando aos chefes dos serviços sanitários coloniais e ao pessoal administrativo a recolha de crânios humanos das suas circunscrições231. Todavia, entre a letra da legislação

e os seus efeitos práticos um enorme fosso estava já cavado, pois se essas práticas antropométricas serviam os interesses dos académicos sediados na metrópole, representavam uma tarefa suplementar para os mal remunerados funcionários administrativos.

230 Citados em Alfredo MARGARIDO (1975), «Le Colonialisme Portugais et l'Anthropologie», in

Jean COPANS [ed.], Anthropologie et Impérialisme, Maspéro, Paris, p. 322.

Esse desfasamento entre os interesses instalados na metrópole e a prática do exercício administrativo nas colónias só poderia ser ultrapassado ou por uma adequada formação do pessoal administrativo, avisando-o para os interesses antropológicos, ou por uma inversão da situação no terreno, isto é, confrontando-se a administração colonial com a necessidade do conhecimento antropológico das populações submetidas.

Em 1878, por iniciativa de Luciano Cordeiro e retomando aquela ideia de estruturação de uma política colonial consequente e a formação de funcionários ultramarinos cultos e eficientes, a Sociedade de Geografia de Lisboa propôs que fosse instituído pelos poderes públicos um curso colonial, a ser ministrado num organismo designado de Instituto Oriental e Ultramarino Português por Vasconcelos Abreu, autor do relatório-projecto232 e Presidente da «Secção

Asiática» da Sociedade de Geografia de Lisboa233. O leque de disciplinas a

professar no curso, equivalente ao nível de ensino superior, encontrava-se repartido por três áreas: 1) «Instrução Científica», compreendendo, entre outras, as disciplinas «História da colonização antiga e moderna, teoria da colonização e crítica dos sistemas coloniais», «Geografia colonial, etnografia e hierologia, no ponto de vista indígena», «Administração colonial, nas suas diferentes actividades, no ponto de vista português, e comparativamente, não só no tocante a colónias vizinhas, estranhas, mas no tocante às necessidades que resultam, do grau de civilização da metrópole e dos povos administrados no Ultramar»; 2) «Educação Linguística», que contava, entre outras, com o ensino de «Mandinga, Quimbundo (para a África Ocidental)», «Suahili e Macua. Zulo

232 Guilherme de Vasconcelos ABREU (s.d.), O Instituto Oriental e Ultramarino Português: idêas

succintas àcêrca da sua criação, s.l., (Biblioteca Nacional, Lisboa, cota S.C. 7677//26 V).

233 A indicação de Guilherme de Vasconcelos Abreu para a redacção do relatório-projecto é bem

significativa da carência de especialistas académicos em questões africanas no Portugal de finais de Oitocentos. Vasconcelos Abreu dirigia a «Secção Asiática» da Sociedade de Geografia de Lisboa e, até essa altura e depois disso, só se notabilizou como sanscritista. São dele os primeiros estudos sistemáticos em Portugal sobre o sânscrito, entre os quais se destaca Guilherme de Vasconcelos ABREU (1879), Principios elementares da gramática da lingua

(para a África Oriental)»; 3) «Educação Ginástica» com as disciplinas de «Natação», «Equitação», «Esgrima», «Carreira de Tiro», «Exercícios Militares» e «Argolas, paralelas, alteres». Sabe-se que apenas em 1906, anexa à própria Sociedade de Geografia de Lisboa, foi fundada a Escola Colonial e que só em 1926, com João Belo e depois de várias tentativas de reorganização, foi aquela transformada em Escola Superior Colonial234.