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Em 1929, Bronislaw Malinowski, num célebre texto já aqui evocado — «Practical Anthropology»219 —, assinalou o contributo fundamental da

colonização para o surgimento de uma Antropologia Aplicada que se esforçava, na altura, por ser científica. Para Malinowski, e apoiando-se na sua experiência trobriandesa220, a ciência antropológica seria cada vez mais necessária aos

administradores coloniais caso quisessem ser bem sucedidos na gestão da «mudança» das sociedades de que se tinham, a bem ou a mal, tornado os gestores. Após o seu regresso das Ilhas Trobriand, como aqui assinalámos, Malinowski empenhou-se crescentemente em incutir nos futuros administradores coloniais os métodos da Etnografia e em sensibilizar os antropólogos nos interesses práticos da sua disciplina, que não somente os teóricos. A Antropologia não deveria, pois, lançar-se na demanda de um passado hipotético, tendo, dessa forma, como tarefa essencial a reconstrução do que deveriam ter sido as sociedades autóctones antes da colonização europeia, concorrendo, assim, com os objectivos das disciplinas historicistas — mas, ao invés, procurar interessar-se pelas realidades actuais. Nem sempre foi bem compreendido o desdém obsessivo de Malinowski pelos fenómenos diacrónicos, mas, todavia, se encarado pelo prisma da necessidade pragmática da disciplina antropológica, que ele defendia, torna-se perfeitamente justificável: para Malinowski o conhecimento do passado seria um conhecimento gratuito. O administrador colonial, gerindo «matéria humana» num presente, visaria salvaguardar um determinado futuro, e a Antropologia

219 Bronislaw MALINOWSKI (1929), «Practical Anthropology», in Africa, II, 1, International

African Institute, London. Este texto é, de alguma forma, complementado por Bronislaw MALINOWSKI (1930), «The rationalization of Anthropology and Administration», in Africa, III, 4, International African Institute, London.

220 Bronislaw MALINOWSKI (1950), Argonauts of the Western Pacific, Routledge & Kegan Paul,

deveria saber adaptar-se a essa necessidade: a Antropologia Cultural cedia assim lugar à Antropologia Social e esta Antropologia Social seria funcionalista, isto é, negligenciando os problemas da causalidade — explicação pelos antecedentes — ir-se-ia consagrar, unicamente, aos problemas das funções — explicação das instituições sociais do presente pelas necessidades dos homens que as fundaram221.

A transposição dessa «Etnologia da História», que era afinal o evolucionismo e, em certa medida, o culturalismo americano «boasiano», para uma «Etnologia psicologista», que veio a caracterizar a Antropologia das décadas de 20 e 30 do século passado – em particular com Malinowski e a sua teoria científica da cultura –, correspondeu, em derradeira instância, à lógica do desenvolvimento do sistema colonial. O funcionalismo «psicologista» de Malinowski assentava, fundamentalmente, na sobrevalorização da natureza biológica das necessidades humanas, sociais ou culturais, o que, consequentemente, tornava teoricamente possível a manipulação objectiva da sociedade e da cultura. Estava aberto o caminho para a afirmação de uma Antropologia Aplicada que, está bem de ver, correspondia na época aos interesses fundamentais da política colonial: conhecer melhor, para melhor dominar.

A escola sociológica francesa, matriz fundadora da Etnologia francesa, desde muito cedo imprimiu uma faceta pouco utilitarista ao seu conhecimento, pelo menos naquilo que poderia dizer respeito à gestão social das populações dominadas. Lendo as obras maiores de Claude Lévi-Strauss dos anos 60, produto acabado da escola que proveio da equipa de L’Année Sociologique, percebe-se facilmente que as suas preocupações com as superstruturas derivam directamente de um campo de interesses desde há muito alojado na Sociologia francesa, fosse em Émile Durkheim e Marcel Mauss – a quem prestou constante

tributo –, fosse em Lucien Lévy-Bruhl, o controverso autor do radicalmente evolucionista Les Fonctions Mentales dans les Sociétés Inférieures222 – que sempre criticou, mas do qual referenciou o princípio de que a estrutura básica do pensamento humano é a mesma em toda parte.

Em 1981 despontou em França um movimento de académicos, sobretudo antropólogos, sociólogos, filósofos mas também economistas, agrupados sob a designação de Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales. Como o nome da associação explicitamente indica, estavam preocupados com o rumo que as ciências sociais e humanas pareciam estar a tomar, instrumentalizadas ou deixando-se instrumentalizar para poder corresponder a demandas do poder político e, sobretudo, imperativos economicistas. O seu acrónimo, M.A.U.S.S., é uma assumida referência explícita à crítica do utilitarismo que sempre inspirou a Sociologia francesa e o seu principal arauto223.

222 Lucien LÉVY-BRUHL (1963), Les Fonctions Mentales dans les Sociétés Inférieures, Presses

Universitaires de France, Paris, (1.ª edição, 1910).

223 O M.A.U.S.S. publica ininterruptamente desde 1982 uma revista congregando não só as

contribuições dos seus associados mas também a de muitos outros académicos de todo o mundo, igualmente empenhados na afirmação da autonomia das suas disciplinas científicas. Uma lista completa dessas contribuições na La Revue du MAUSS semestrielle, bem como os objectivos e princípios do M.A.U.S.S. podem ser consultados na Internet no endereço electrónico <http://www.revuedumauss.com/>.

III – A Antropologia e o colonialismo português

1. As origens históricas do colonialismo português em África

Existem, no campo mais alargado das ciências sociais e humanas, noções que, nunca tendo chegado a ganhar o estatuto de conceitos – e, portanto, nunca foram validadas cientificamente –, atravessaram décadas de investigação praticamente inalteráveis e incólumes a qualquer crítica científica. Não porque fossem inócuas nas suas consequências mas, pelo contrário, porque se ajustavam muito comodamente à elaboração científica de determinados quadros ideológicos e históricos. Não obstante os termos muito precisos, como constatámos páginas atrás, com que Georges Balandier definiu a situação colonial em 1951, certas «ideias» sobre o fenómeno colonial vingaram muito para além do que seria imaginável, instalando-se no núcleo duro de conceituadas e bem intencionadas investigações.

Já por diversas vezes aqui foi evocada a especificidade do colonialismo português. Tal como apresentámos a questão, páginas atrás, a tão apregoada singularidade da empresa colonial portuguesa encontra-se comummente extremada em duas posições: de um lado acentuam-se os traços paternalistas, a interculturalidade sob as suas diversas formas (integração, assimilação, etc.), a letra e o espírito de uma legislação «permissiva» (trazendo à liça, frequentemente, o pioneirismo abolicionista de Portugal), tudo isso apoiando-se num, tantas vezes evocado, «saber estar em África» multi-secular; do outro lado, perfilam-se os dados e factos «socioeconómicos», isto é, um conjunto de indicadores, estatísticos e objectivos – se bem que, nem sempre, a apresentação

de números e derivadas quantificações tenha uma relação necessária com a objectividade –, nos quais sobrelevam a iniquidade, a segregação racial, a exploração, o subdesenvolvimento económico, enfim, todos aqueles indicadores que, em conjunto, têm servido para caracterizar e julgar o colonialismo, onde quer que ele tenha ocorrido. E no caso do colonialismo português, esses indicadores têm sido «rentabilizados» de forma a, frequentemente, evocar o seu carácter subdesenvolvido.

Seguramente nenhum outro país não-africano – em particular sendo europeu – teve o seu destino tão intrinsecamente relacionado com África como o teve Portugal. Tudo começou em 1415 com a conquista de Ceuta, no Norte de África, a partir da qual se desenvolveu o expansionismo que tornaria Portugal no primeiro império colonial da era moderna, dimensionando toda a sua História dos últimos cinco séculos e, decisivamente, inaugurando uma nova era a nível planetário. E foi também, alegadamente, devido ao curso das guerras coloniais em África – suportadas, com enorme esforço, para além de uma década – que ocorreu a revolução de Abril de 1974. Essa revolução militar implicou duas consequências, ambas invertendo um percurso histórico de séculos: em primeiro lugar, o diálogo com os movimentos independentistas de forma a reconhecer a autonomia dos territórios coloniais; depois, e consequentemente, a erradicação da estrutura sócio-económica em que se baseava a própria situação colonial portuguesa. Portugal atravessou, então, uma das mais graves crises da sua História de oito séculos enquanto país independente e essa foi – e, em certa medida, ainda é – uma crise de identidade. Tal ficou a dever-se, em absoluto, a um importante seccionamento na sua representação identitária, à qual esteve tão profundamente ligada durante quase quinhentos anos: mesmo que, ao longo dos cinco séculos de expansão e ocupação ultramarina, a África portuguesa poucas vezes tenha, de facto, assegurado benefícios materiais de qualquer espécie, permaneceu sempre como

uma referência incontornável (apenas no sentido retórico, que não geográfico), uma «obrigação civilizacional».

Logo após as primeiras décadas de exploração – e face aos novos objectivos que, constante e compassadamente, se iam afirmando nos horizontes da empreitada expansionista –, os proventos da empresa africana passaram a ser integralmente absorvidos pelo esforço em atingir outras paragens… e outros proventos. Mas mesmo assim, e até pelo seu posicionamento estratégico, África nunca deixou de ser um alicerce fundamental da expansão ultramarina portuguesa: numa primeira fase, aquando do estabelecimento e desenvolvimento do Estado da Índia, a costa oriental africana (Moçambique) ficou umbilical e administrativamente ligada a Goa, numa gestão estratégica conjunta do espaço índico que se prolongava, pelo menos, até ao estreito de Malaca; depois, e sobretudo numa fase posterior ao «ocaso» de Goa, é preciso lembrar que o modelo de gestão colonial do Brasil português, entre o seu achamento em 1500 e a sua independência em 1822, teve como um dos vectores principais de desenvolvimento e sustento o quase ininterrupto tráfico negreiro africano. Assim, se entre os séculos XVI e XIX, a Índia e o Brasil foram, inegavelmente, os dois vectores principais da dominação ultramarina portuguesa, o continente africano constituiu-se sempre como uma importante «base de retaguarda», uma plataforma estratégica que marcou o início e a derrocada do Ultramar português.