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A grande oportunidade da «indirect rule»

4. A afirmação de uma ciência:

4.1. A grande oportunidade da «indirect rule»

A «indirect rule» (administração indirecta), se bem que tenha conhecido o seu pleno desenvolvimento nos domínios britânicos, não foi exclusiva da política colonial inglesa. Parece ter correspondido, como o confronto das práticas e políticas coloniais o podem comprovar, a uma espécie de «momento

154 Stephan FEUCHTWANG (1975), «The colonial formation of British Social Anthropology», in

geral que exprimiu a necessidade dos colonizadores de reverem e ordenarem os seus postulados assimilacionistas»155.

De facto, a «indirect rule» não foi uma criação absoluta dos britânicos. Os holandeses já a tinham praticado em Java, pelo menos desde 1850, e pode-se mesmo afirmar que nos domínios coloniais portugueses, no seguimento do desenvolvimento das ideias liberais, se assistiu a um curto período de administração indirecta156. É sabido como, em contraponto a esse «liberalismo

colonial», se puderam afirmar, no virar do século, com António Enes e Mouzinho de Albuquerque sobretudo, os traços essenciais que doravante caracterizariam a política colonial portuguesa: centralismo, dependência absoluta, administração directa. Não obstante, são conhecidos alguns casos pontuais (e , portanto , globalmente irrelevantes) de prática de administração indirecta em época mais recente. O mais significativo aconteceu na Guiné, onde, talvez porque o modelo de colonização (dito «colonização de plantação») não implicou uma política sistemática de recrutamento de trabalhadores (trabalho forçado) ou o deslocamento forçado de populações, ou, ainda, a sonegação de terras, se permitiu aos chefes fulas do interior desfrutar de uma certa autonomia administrativa até aos dias da independência157.

Contudo, se é certo que os princípios orientadores da «indirect rule» podem ser reconhecidos em diferentes contextos coloniais e a mando de várias

155 Gérard LECLERC (1973), Crítica da Antropologia. Ensaio acerca da história do africanismo,

Editorial Estampa, Lisboa, p. 99.

156 Referiremos mais detalhadamente as posturas do liberalismo português no que aos assuntos

coloniais diz respeito em capítulo dedicado à codificação dos «usos e costumes indígenas» (IV – A codificação dos «usos e costumes indígenas»: a Missão Etognósica de Moçambique), mais adiante.

157 Malyn NEWITT (1981), Portugal in Africa. The last hundred years, C. Hurst & Co., London, p.

potências coloniais, só os britânicos lhe deram a amplitude teórica e a Antropologia Social britânica foi um elemento essencial dessa «teorização»158.

A «indirect rule» começou por ser aplicada no Norte da Nigéria. Os britânicos tomaram conta dessa região, formalmente, no dia 1 de Janeiro de 1900, se bem que nas décadas anteriores a sua presença se tivesse já afirmado, sobretudo através das companhias comerciais como a Royal Niger Company que operava ao longo dos cursos dos rios Níger e Benue, os «rios do óleo». Porque os franceses vinham afirmando posições no que hoje é a República do Níger e os alemães se tinham já instalado nos Camarões, a declaração britânica de posse do Norte da Nigéria pretendia salvaguardar os importantes interesses económicos na região. O primeiro Alto-Comissário nomeado para essa novel possessão britânica foi um tal Capitão Frederick Lugard, que depressa se apercebeu das dificuldades com que se confrontava a administração do território. Grande parte da região reivindicada pelos britânicos estava sob o controlo do califado Sokoto, ele próprio dividido em emiratos, províncias governadas por emires que reconheciam no califa de Sokoto a liderança espiritual e política. Contudo, os emiratos gozavam de grande autonomia administrativa:

«Cada emirato era responsável pela sua própria administração, incluindo a sua defesa, e encarregava-se das suas relações comerciais incluindo as que envolviam potências estrangeiras. Contudo, os emiratos em apuros apelavam frequentemente à ajuda do califa. E o califa podia, e por vezes fazia-o, intervir na administração dos emiratos. Sobrepondo-se a todas estas combinações, o maior elo de coesão entre todos os emiratos era a sua comum fé islâmica e o reconhecimento do

158 A contribuição fundamental para essa teorização parece ter provindo de Bronislaw

MALINOWSKI (1970), Les Dynamiques de l'Evolution Culturelle. Recherches sur les relations

raciales en Afrique, Payot, Paris (1ª edição, 1945), nomeadamente o capítulo «L'administration indirect (indirect rule) et son elaboration scientifique», (pp. 199-215).

califa como Amir al-muminin, ou ou comandante dos fiéis, e

como fonte última de toda a autoridade»159.

Era, na prática, uma espécie de administração indirecta. Perante este desenvolvido quadro institucional, e não obstante ele prenunciar a «indirect

rule», a tarefa de Lugard não foi fácil até porque, entre 1900 e 1906, a grande maioria dos emiratos e o próprio califa se sublevaram contra a presença britânica. Nessa prolongada e desgastante «guerra dos emiratos» a vitória só se poderia afirmar, como acabou por acontecer, no sentido daqueles que estavam superiormente armados. O último califa fula de Sokoto, Attahim, foi morto pelos britânicos na batalha de Burmi, em Julho de 1903, mas não terminou aí a resistência fula. Até 1906 as tropas britânicas tiveram que se defrontar com os exércitos fula dos vários emiratos, que foram, graças à desproporcional superioridade do armamento britânico, sucessivamente derrotados. Como resultado, o califa e a grande maioria dos emires morreram nos confrontos, ou foram afastados dos seus cargos quando se recusaram, mesmo que passivamente, a colaborar com as autoridades britânicas.

Lugard defrontou-se então com o problema do que fazer naquelas regiões em que os emires morreram em combate, fugiram ou foram destituídos. A guerra havia demonstrado quão fortes eram os laços que ligavam os emires às populações fulas do Norte da Nigéria e Lugard parece ter compreendido que lhe seria impossível governar a região sem utilizar como intermediários as autoridades em quem os fulas confiavam.

«Assim, assumindo que a conquista lhe tinha dado soberanos poderes, nomeou novos emires para os tronos desocupados mas tendo o cuidado de os escolher entre as famílias

159 Obaro IKIME (1982), «The establishment of indirect rule in Northern Nigeria», in Indirect

Rule in British Africa, Tarikh, vol. 3, n.º 3, Historical Society of Nigeria, Longman, London, (1.ª edição, 1970), p. 2.

reconhecidas como governantes de forma a torná-los aceitáveis pelo povo»160.

Apossando-se da estrutura administrativa tradicional e tendo substituído, de uma forma ou de outra, os chefes locais, Lugard preocupou-se então em desenvolver as chamadas instituições nativas, dotando as autoridades locais de autonomia jurídica e económica. Não se tratou de um processo menos moroso que o da pacificação . Só em 1912, isto é, quatro anos após Lugard ter abandonado o governo do Norte da Nigéria, se conseguiu afirmar a autonomia financeira dos emiratos. Bem se pode afirmar, como a prática administrativa britânica o demonstra, que a institucionalização da «indirect rule» não se pôde resumir à tão apregoada fórmula «find the chief».

De igual modo parece-nos incorrecto afirmar que a existência da «indirect

rule» nos domínios coloniais britânicos seria a marca de um «liberalismo esclarecido» como pretendia Malinowski161. Estamos em crer que a sua

instituição relevou, sobretudo, de motivos de eficácia e conveniência. No caso do Norte da Nigéria, como acabámos de constatar, e como alguns anos mais tarde no Sul, entre os yoruba162, ou a partir de 1920 no Tanganhica163, a

necessidade de governar grandes porções de território abundantemente povoadas, dispondo para o efeito de quantitativos diminutos de funcionários administrativos europeus, bem como, ainda, o cuidado manifestado em evitar que as colónias se transformassem em pesados fardos financeiros para as

160 Obaro IKIME (1982), «The establishment of indirect rule in Northern Nigeria», in Indirect

Rule in British Africa, Tarikh, vol. 3, n.º 3, Historical Society of Nigeria, Longman, London, (1.ª edição, 1970), p. 6.

161 Bronislaw MALINOWSKI (1970), Les Dynamiques de l'Evolution Culturelle. Recherches sur les

relations raciales en Afrique, Payot, Paris (1ª edição, 1945), p. 199.

162 A. J. ATANDA (1982), «Indirect Rule in Yorubaland», in Indirect Rule in British Africa, Tarikh,

vol. 3, n.º 3, Historical Society of Nigeria, Longman, London, (1.ª edição, 1970), p. 16.

163 O. ADEWOYE (1982), «Native administration in a mandated territory: the tanganyikan

example, 1919-1945», in Indirect Rule in British Africa, Tarikh, vol. 3, n.º 3, Historical Society of Nigeria, Longman, London, (1.ª edição, 1970), p. 49.

metrópoles, poderão ter ditado o recurso à administração indirecta, fomentando a formação de quadros administrativos africanos, ou adaptando as estruturas administrativas existentes às necessidades e desígnios coloniais. O desenvolvimento da «indirect rule» no Norte da Nigéria correspondeu a esta ultima asserção, mas a sua aplicabilidade ao Sul da Nigéria, a partir de 1914, defrontou-se com alguns constrangimentos com que Lugard não se tinha confrontado nas províncias setentrionais.

As sociedades do Sul da Nigéria eram sociedades, pelo menos do ponto de vista político, muito menos centralizadas ou, se as quisermos relativizar com as do Norte da Nigéria, menos «feudais». Assim, entre elas, o poder era mais difuso e, por isso mesmo, de mais difícil apreensão. A etapa do «find the chief», pela qual se iniciava, regra geral, a imposição da «indirect rule», encontrava-se aí sobremaneira dificultada.

Desde 1897, altura em que os britânicos se instalaram na região, vinha-se praticando um modelo de administração designado por «conciliar system», que relevava, inegavelmente, de uma concepção de administração directa. Constituía tal forma de administração na nomeação e investidura de indivíduos que se prestassem à colaboração no cargo de chefes, os quais, periodicamente reunidos com os comissários britânicos regionais, deveriam decidir dos assuntos relativos à sua região. Esses concílios tinham, sobretudo, funções legislativas, executivas e judiciais164. O descontentamento depressa alastrou:

havia um pronunciado distanciamento entre esses «warrant chiefs» e as populações que se diziam representar e chefiar. Ao contrário do Norte, onde a função preexistia ao advento da administração colonial britânica, no Sul o carácter difuso do poder tradicional tinha tornado extremamente difícil o controlo administrativo britânico. Ao nomearem esses «chefes-fantoches» os britânicos estavam na contra-mão da tradição dos sistemas políticos locais, nos

164 A. J. ATANDA (1982), «Indirect Rule in Yorubaland», in Indirect Rule in British Africa, Tarikh,

quais a autoridade era mais difusa do que centralizada165. Quando em 1911 o

Sul da Nigéria é acoplado administrativamente ao Norte, o governador-geral, Sir Frederick Lugard – entretanto regressado à Nigéria –, apressou-se a defender a prática da «indirect rule» nas províncias meridionais, embora estivesse consciente da especificidade da sua aplicabilidade a uma região que não possuía o centralismo político do Norte. Nunca, como em nenhum outro lugar ou ocasião, a expressão «find the chief» esteve investida de um tão concreto significado: tratava-se, não de encontrar um chefe, mas, verdadeiramente, de «inventar» um chefe:

«O primeiro passo a fazer é encontrar um homem influente para chefe e agrupar sob a sua autoridade tantas aldeias e distritos quantos os possíveis, ensiná-lo a delegar poderes, interessá-lo pela tesouraria e alicerçar a sua autoridade, incutindo-lhe o sentido das responsabilidades»166.

Entre 1913 e 1918 Frederick Lugard redigiria um conjunto de memorandos, instruções e relatórios sobre a governação colonial que ilustram, passo a passo, a prática da administração colonial britânica nos primeiros anos de consolidação do modelo da «indirect rule». Reunidos e editados sobre o título

Political Memoranda constituem o lado pragmático que teria a sua contrapartida ideológica na edição, alguns anos mais tarde (1922), de The Dual Mandate in

British Tropical Africa167, a grande obra de referência do colonialismo britânico.

165 A. E. AFIGBO (1981), «Patterns of igbo resistance to british conquest», in European Conquest

and African Resistance I, Tarikh, vol. 4, n.º 3, Historical Society of Nigeria, Longman, London, (1.ª edição, 1973), p. 11.

166 Frederick J. D. LUGARD (1968), Report on the Amalgamation of Northern and Southern Nigeria

and Administration, 1912-1919. Unpublished Reports, Frank Cass Publishers, London.

167 Frederick J. D. LUGARD (1965), The Dual Mandate in British Tropical Africa, Frank Cass

O conjunto de «instruções» reunido em Political Memoranda revelam – como peças oficiais da prática governativa – quão assertiva era a política colonial britânica dirigida por Lugard:

«É evidente que a política esboçada neste memorando deve ser aplicada com discernimento – especialmente junto das tribos que ainda não reconhecem chefes soberanos. É fundamental compreender esses organismos tribais e esses costumes sociais, bem como utilizá-los como base sobre a qual possamos construir. É desejável que os valores das sociedades indígenas – que exercem uma enorme influência sobre o espírito indígena – sejam estudados com atenção, atendendo a que podem também tornar-se factores válidos de um sistema de administração adaptado a essas tribos»168.

Por detrás destas palavras alinhava-se o reconhecimento da necessidade de incentivo de estudos monográficos que permitissem o conhecimento, antes de mais, das estruturas políticas tradicionais. A Antropologia é, então, formalmente reconhecida como indispensável e, doravante, a existência e prática da «indirect rule» não mais a deixará de tomar em consideração. Donald Cameron, que foi secretário do governo da Nigéria entre os anos de 1914 e 1924 e que, mais tarde (1925), ao ser nomeado governador-geral do Tanganhica, levou a «indirect rule» para a África Oriental Britânica, reconhecia que a Antropologia se tinha tornado indispensável para o bom funcionamento de todos os escalões administrativos dos serviços coloniais :

«Os administradores locais muito podem fazer para encorajar e promover tais estudos, esperando-se que se possa

168 Frederick J. D. LUGARD (1970), Political Memoranda: revision of instructions to political officers

on subjects chiefly political and ddministrative, 1913-1918, edited and with an introduction by A. H. M. Kirk Greene, Frank Cass Publishers, London.

aumentar e melhorar a preparação antropológica, que foi, nestes últimos anos, iniciada com a nomeação de funcionários qualificados para os postos administrativos»169.

Multiplicaram-se, então, os estudos antropológicos nos domínios coloniais britânicos, levados a cabo, sobretudo, por administradores antropólogos ou antropólogos de governo, aproveitando as oportunidades logísticas conferidas pela sua prática administrativa. Em boa verdade, os antropólogos académicos só viriam a empenhar-se no estudo das questões relacionadas com a aplicação da «indirect rule» a partir de meados da década de 20. A fundação do IAI por essa altura constituiu o sinal exterior dessa necessária união entre as imposições da administração colonial britânica e o desenvolvimento da escola de Antropologia Social britânica.