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O «homem prático» e o antropólogo académico

4. A afirmação de uma ciência:

4.2. O «homem prático» e o antropólogo académico

A nova prática de terreno decorrente – a observação participante que Malinowski tinha com sucesso aplicado ao estudo dos trobriandeses – exigia a ruptura com os valores ocidentais, isto é, o «despaisamento» do antropólogo170.

Por isso mesmo, o antropólogo, defendia Malinowski, estava em posição privilegiada para ultrapassar o «handicap» do administrador. O indígena, acreditava-se, confiaria de melhor vontade os seus problemas a alguém que, em

169 Donald CAMERON (1937), «Native administration in Nigeria and Tanganyika», in Journal of

the Royal African Society, (suppl.), 36, Oxford University Press, London, pp. 5-6.

170 Como primeiramente enunciado por Augusto Guilherme Mesquitela LIMA (1974),

«Problemas de Etnologia», in In Memoriam António Jorge Dias, vol. III, Instituto de Alta Cultura, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, p. 216.

certa medida, se queria independente da administração colonial do que a alguém que, em si, constituísse a essência do poder colonial, mesmo que o administrador, como algumas vezes acontecia, fosse versado em Antropologia.

A ideia inicial de Lugard e seus seguidores, de colocar funcionários sensibilizados e instruídos para os propósitos da Antropologia, mas cujo desempenho profissional de modo algum os distinguia do mais comum dos administradores, manteve-se operante até finais da década de 20, mas depois dos motins de Aba (Nigéria), em 1930, a situação viria a modificar-se. Os antropólogos de governo ou administradores antropólogos foram sendo progressivamente substituídos por antropólogos «profissionais» ou académicos, de forma que no espaço de quatro anos foram apresentados ao governo da Nigéria para cima de 200 relatórios sobre as mais diversas instituições sociais e culturais da região, todos subscritos por antropólogos.

A criação do IAI tinha constituído, de facto, o ponto de viragem e o seu plano quinquenal, apresentado em 1931 e baseado no célebre artigo de Malinowski «Practical Anthropology»171, apontava como objectivo principal o

estudo do fenómeno da mudança de um ponto de vista objectivamente científico. O plano prescrevia duas formas de acção complementares: a formação antropológica do pessoal administrativo e dos missionários na London School of Economics (LSE), onde ensinava Malinowski; a concessão de bolsas de estudo a especialistas, isto é, antropólogos, facultando-lhes o acesso ao «terreno» para o estudo das línguas, dos contactos de cultura e da evolução cultural. Por outro lado, desde 1925, primeiro na Universidade do Cabo, depois em Sidney, Radcliffe-Brown empenhava-se na formação de administradores e orientava vários projectos de Antropologia Aplicada172.

171 Bronislaw MALINOWSKI (1929). «Practical Anthropology», in Africa, II, 1, International

African Institute, London.

172 Stephan FEUCHTWANG (1975), «The colonial formation of British Social Anthropology», in

Esta crescente emancipação da Antropologia no campo das ciências sociais, bem como a sua progressiva afirmação no domínio dos interesses práticos da administração colonial, originou alguns atritos, o mais importante dos quais tinha como tema de debate os limites da área de competência do próprio antropólogo. Procurando ganhar espaço de intervenção, em «Practical Anthropology» Malinowski defendia a necessidade imperiosa do recurso às investigações de especialistas, isto é, antropólogos, pois que o não-especialista, noutras palavras, o administrador colonial, enquanto elemento objectivo da situação, estaria incapacitado de compreender objectivamente essa mesma realidade. Não foi bem aceite o tom, um tudo nada depreciativo, com que Malinowski se referia aos administradores coloniais – «general practiticionner,

practical man» – e no ano seguinte a revista Africa acolheu algumas reacções. A primeira delas, condescendendo com as indicações distintivas de Malinowski, acedia em separar uma Antropologia Aplicada de uma outra que se afirmaria «pura», académica. Tomando como analogia a distinção entre Química Aplicada e Química Pura, Fitzherbert Ruxton, ex-governador provincial no sul da Nigéria, defendia idêntica distinção para o campo da Antropologia, precisando:

«Como o campo de trabalho dos antropólogos puros é o “ontem”, então o dos antropólogos aplicados deverá ser o “hoje”, de preferência o “amanhã”»173.

Não foi tão conciliatória a reacção de Mitchell, então comissário provincial no Tanganhica, para quem o «practical man» poderia desempenhar integralmente todas as suas tarefas sem ajuda alguma do antropólogo e suas indicações. Do ponto de vista objectivo, não conferia qualquer interesse à Antropologia:

173 Fitzherbert RUXTON (1930), «An anthropological no-man's land», in Africa, III, 2,

«Como salientou Malinowski, os antropólogos têm-se preocupado essencialmente com o passado, ou pelo menos com o efémero; e desenvolveram o seu próprio método de registar e discutir em especial aquilo que é estranho e exótico nas sociedades primitivas. Assim, se um habitante das ilhas dos mares do sul se sentir obrigado, durante alguma ocasião cerimonial, a comer a sua avó, o antropólogo é atraído pela investigação e explicação do costume arcaico que o levou a cometer tal acto; o “practical man”, por outro lado, tem tendência a dar mais atenção à avó ...»174.

Todo esse criticismo de Mitchell mereceria de Malinowski uma não menos acutilante e irónica resposta:

«Feliz ou infelizmente, o costume nascido na imaginação do Sr. Mitchell, não existe na realidade, por isso o antropólogo funcionalista não tem que se preocupar muito com ele. Mas o “practical man”, que muitas vezes com bases igualmente imaginárias grita “Crime!” e enforca um nativo, pode com essa atitude levar outros nativos à retaliação e então teremos uma expedição punitiva na qual será o próprio “practical man” a agir como um assassino. O exemplo do Sr. Mitchell é imaginário mas infelizmente eu poderia evocar inúmeros casos nos mares do sul em que o “practical man”, tendo lamentavelmente e de forma pouco inteligente violado os costumes nativos pelo simples direito que lhe confere a sua ignorância e zelo moral, originou a desgraça de tribos inteiras (...). A África não é o meu campo

específico, mas tenho uma vaga ideia que também no continente africano ocorreram “expedições punitivas”, massacres

174 P. E. MITCHELL (1930), «The anthropologist and the practical man: a reply and a question»,

generalizados dos nativos pelo brancos, estranhas retaliações em nome da “justiça”, “prestígio” e “honra do homem branco”»175.

Não obstante toda esta polémica envolvendo alguns dos mais altos representantes da administração colonial, a Antropologia Social britânica mantinha-se perfeitamente identificada com o modelo de administração. No mesmo artigo em que rebatia as considerações de Mitchell, aprestava-se Malinowski em reconhecer:

«Um grupo de homem que pode e deve organizar (...),

que tem de manter-se acima do caos das opiniões em conflito e da agitação de interesses divergentes (...) é o dos administradores. É

sua implícita obrigação profissional encarregar-se dos interesses dos nativos, que não participam nem podem participar das decisões sobre o seu próprio destino, embora, mais cedo ou mais tarde, possam vir a ser admitidos em alguns “joint concils”»176.

Este reconhecimento levou a que alguns dos principais autores da Antropologia social britânica da época, como Lucy Mair e Malinowski, teorizassem sobre a «indirect rule», louvando-a pelo seu intento de manutenção, tanto quanto possível, da autoridade indígena, em lugar da sua destruição177.

175 Bronislaw MALINOWSKI (1930), «The rationalisation of anthropology and administration»,

in Africa, III, 4, International African Institute, London, p. 406.

176 Bronislaw MALINOWSKI (1930), «The rationalisation of anthropology and administration»,

in Africa, III, 4, International African Institute, London, p. 411.