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A produção em contexto colonial deve ser entendido – pelo menos do ponto de vista científico – como uma «crise de crescimento» inerente ao próprio desenvolvimento da Antropologia portuguesa e é inegável que a autonomização da Antropologia académica em Portugal resultou, como já o demonstrámos algures245, desse apelo. Em vez de ser julgada como um anátema

da Antropologia, a situação colonial deve ser entendida como o processo

244 Cf. Joaquim Pedro de Oliveira MARTINS (1957 [1ª ed. 1890]), Política e História, Guimarães &

Ca., Lisboa, vol. II, p. 215; e Joaquim Pedro de Oliveira MARTINS (1891), Portugal em África. A

questão colonial. O conflito Anglo-Portuguez, Ernesto Chardron, Porto.

245 Ver Rui PEREIRA (1987a), «Antropologia aplicada na política colonial portuguesa do Estado

Novo», in Revista Internacional de Estudos Africanos, n.ºs 4-5, Janeiro-Dezembro, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, pp. 191-235; Rui Pereira (1987b), «O desenvolvimento da ciência antropológica na empresa colonial do Estado Novo», in Actas do

Colóquio sobre o Estado Novo: das origens ao fim da autarcia, 1926-1959 (Fundação Calouste Gulbenkian, Novembro 1986), vol. II, Editorial Fragmentos, Lisboa; e Rui PEREIRA (1989b), «A questão colonial na Etnologia Ultramarina», in Antropologia Portuguesa, n.º 7, Instituto de Antropologia, Universidade de Coimbra, Coimbra, pp. 61-78.

catalisador que proporcionou um ímpar salto qualitativo aos estudos antropológicos em Portugal246: a sua aplicabilidade e a sua autonomização

científica e académica.

Foi na sua vertente antropométrica que – acompanhando um movimento geral e comum a toda a Europa da segunda metade do século XIX – a

Antropologia portuguesa começou por testar a sua aplicabilidade. Talvez que sensibilizado pela realização em Lisboa, em 1880, do IX Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica247, o Ministério da

Marinha e Colónias dirigiu, por toda a década de 80, instruções ao pessoal sanitário e administrativo das colónias determinando a observação e relato de diversas características físicas dos «indígenas», como a já mencionada circular de 1885 que solicitava a colecta de crânios humanos e seu posterior envio para a Metrópole, onde deveriam ser classificados e estudados.

Dever-se-á ter presente que, nesse mesmo ano de 1885, tinha sido criada na Universidade de Coimbra a primeira cadeira de Antropologia, entregue à regência do médico – e futuro Presidente da República – Bernardino Machado. Mesmo alguns dos autores que na viragem do século acompanhariam Leite de Vasconcellos no lançamento dos estudos etnográficos e etnológicos em Portugal tiveram necessidade, em diversos momentos, de se reportar a esses aspectos «práticos» da Antropologia Física das colónias: é o caso de Francisco Adolfo Coelho que, numa obra de 1893, manifesta a sua adesão aos princípios de um «evolucionismo positivista»248; ou de Teófilo Braga que, em artigo de 1908,

246 E esta asserção é tão válida para uma Antropologia de referentes exclusivamente biológicos

(a denominada «Antropologia Física» ou «Antropobiologia») como para uma Antropologia Social e Cultural.

247 De notar que a associação destas duas disciplinas num mesmo congresso revela, por si só, a dominante evolucionista dos estudos antropológicos do século XIX, projectando para um eixo diacrónico evolutivo as diferentes «raças» confrontadas pela expansão «imperial» de Novecentos.

248 Francisco Adolfo COELHO (1893), Os Povos Extra-Europeus e em especial os negros de África ante

estabelece uma distinção radical entre «raças biológicas» e «raças sociológicas»249. E já aqui evocámos a obra de Joaquim Pedro de Oliveira

Martins250, bem como as incursões antropológicas de Américo Pires de Lima no

Norte de Moçambique251 enquanto médico do Corpo Expedicionário Português

que aí actuava contra os alemães do Tanganhica durante a guerra de 1914-1918. Mais tarde, a partir de meados da década de 30252, as dezenas de «missões

antropológicas», já referenciadas, que o Ministério das Colónias patrocinaria até 1955 em Angola, Moçambique, Guiné e Timor, acentuariam essa premente aplicabilidade das ciências antropológicas portuguesas no terreiro colonial.

A fixação das primeiras cadeiras de Antropologia nas universidades portuguesas253 e a fundação das suas primeiras associações corporativas254

estavam, como já assinalámos, imediatamente correlacionadas com a crescente aplicabilidade das ciências antropológicas no terreiro colonial, mesmo que, como hoje o sabemos, essa «Antropologia Aplicada» se cingisse, quase que exclusivamente, a uma dimensão antropométrica. Desprovida dessa dimensão prática e não fazendo prova da sua aplicabilidade, a Etnologia, ou seja, a Antropologia Cultural e Social dos finais de Oitocentos e da primeira metade do século XX, não se conseguia afirmar a um mesmo nível da Antropologia Física, que exibia um evidente «utilitarismo», escudado na objectividade e rigor

249 Teófilo BRAGA (1908), «O que são as raças sociológicas», in Trabalhos da Academia de Sciências, 1ª série, tomo I, Livraria Central (de Gomes de Carvalho), Lisboa.

250 Em particular Elementos de Anthropologia: história natural do homem (1880, Bertrand, Lisboa) e

As Raças Humanas e a Civilização Primitiva (1881, Parceria António Maria Pereira, Lisboa).

251 Terá sido, porventura, o primeiro antropólogo a fazer trabalho de campo entre os macondes moçambicanos.

252 Decreto-Lei n.º 34 478, de 3 de Abril de 1935, a que nos referiremos, com maior detalhe no capítulo V («Como se deve estudar um preto do ponto de vista antropológico». A Missão Antropológica de Moçambique).

253 Na Universidade de Coimbra, em 1885, entregue à regência do médico Bernardino

Machado.

254 A Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia nasce no Porto, em 1918, pela

formal das mensurações antropométricas. Seria necessário esperar pelo desenvolvimento do processo histórico da afirmação colonial até ao despontar das consciências nacionalistas, na década de 50, para que a dimensão social e cultural da Antropologia portuguesa ganhasse reconhecimento institucional e académico.