• Nenhum resultado encontrado

A institucionalização da Antropologia

A afirmação institucional da Antropologia portuguesa, ainda que de uma forma titubeante, remonta à segunda metade do século XIX. É preciso lembrar, mesmo que sumariamente, que em Portugal, como na maior parte dos outros países europeus, o desenvolvimento dos estudos etnográficos, o afã de recolhas do folclore e o interesse pelos «estudos populares», tanto no campo académico como no domínio literário, estavam manifestamente associados à busca de uma identidade nacional235. Nomes como os de Joaquim Pedro de

Oliveira Martins, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Rocha Peixoto, Alberto Sampaio e Leite de Vasconcellos, evocam figuras brilhantes de cientistas sociais em permanente contacto com as escolas e teorias que então se desenvolviam em Inglaterra, em França e na Alemanha236: as obras de Adolfo

234 Sobre os antecedentes e a história das instituições de formação colonial ver José Júlio

GONÇALVES (1962a), Criação e Reorganizações do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos

(1906-1961), 2 vols., Agência-Geral do Ultramar, Lisboa.

235 Cf. João de Pina CABRAL (s.d. [1991]), Os Contextos da Antropologia, Difel, Lisboa,

especialmente o Capítulo I: «A antropologia em Portugal hoje», pp. 11-41.

236 Cf. João LEAL (1988), «Prefácio», in Z. Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma mitologia

Coelho e Oliveira Martins demonstram, pelas evocações bibliográficas nelas contidas, uma actualização aos debates científicos da altura, a colecção de contos de Consiglieri Pedroso começou por ser publicada em Inglaterra em 1882 (só viria ser editada em língua portuguesa em 1910) e Leite de Vasconcellos concluiu o seu doutoramento na Sorbonne em 1901237. Como

muito justamente salienta João de Pina Cabral, «o anacronismo académico, que foi

uma característica tão visível na nossa área disciplinar entre as décadas de 1930 e de 1970, não era, de forma alguma, aparente na segunda metade do século passado»238. Esta geração procurava uma resposta para a questão básica que tem atravessado a cultura portuguesa dos últimos cento e cinquenta anos, «descobrir

quem somos e o que somos como portugueses»239, interrogação que se tornou amarguradamente pertinente na última década de Oitocentos, com o Ultimato Inglês a coroar uma profunda e generalizada crise económica e política. Primeiro a Conferência de Berlim, em 1884-85, depois o Ultimato, em 1890, cercearam decisivamente as pretensões de Portugal em assumir-se como uma grande potência colonial. As elites intelectuais, desiludidas com o destino imperial de Portugal, passaram a buscar na História e na Cultura popular uma grandeza nacional perdida, desencadeando uma intensa produção ideológica em torno da questão da nacionalidade, suas raízes históricas, condições e circunstâncias da existência da nação portuguesa. Há quem pretenda ver neste encadeado240 a origem da falta de uma tradição colonial da Antropologia

portuguesa. Parece-nos, todavia, uma asserção demasiado apressada até porque, desde 1875, a Sociedade de Geografia de Lisboa vinha mantendo acesa

237 Orlando RIBEIRO (1942), «Vida e obras de José Leite de Vasconcellos», in Portucale, vol. XV,

Porto.

238 João de Pina CABRAL (s.d. [1991]), op.cit., p. 24.

239 Eduardo LOURENÇO (1978), O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português,

Dom Quixote, Lisboa, pp. 89-90.

240 Nomeadamente João de Pina CABRAL (s.d. [1991]), op.cit., pp. 24-25; e João LEAL (1987), «Em

torno desta reedição», in Teófilo BRAGA, Contos Tradicionais do Povo Português, vol. I, Dom Quixote, Lisboa, pp. 13-14.

a chama do imperialismo colonial português241. Isto é, a par desse

ensimesmamento nacionalista e maugrado os desaires coloniais de 1885 e 1890, a corrente colonialista acabou por fazer impor a sua vontade. A esse propósito, a própria evolução do pensamento de Oliveira Martins quanto à questão colonial é muito elucidativa. Em O Brasil e as Colónias Portuguesas (1.ª edição, 1880), reflexão aprofundada sobre o conjunto das colónias portuguesas e seu lugar na política nacional, Oliveira Martins revela um certo «cepticismo radical»242 quanto à viabilidade do império e aos benefícios que daí adviriam

para Portugal, advogando, até, a alienação imediata de parte das possessões portuguesas:

«… alienar mais ou menos claramente, além do Oriente [Timor, Macau e Índia Portuguesa], Moçambique, por enfeudações a

companhias; abandonar protectorados irrisórios e domínios apenas nominais, e congregar as forças de uma política sábia e sistemática na região de Angola …»243.

Da leitura do texto de 1880 ressaltam, ainda, duas outras ideias: as colónias africanas seriam permanentemente deficitárias e a sua manutenção empobrecia Portugal; a conservação das colónias não era necessária para a preservação da identidade nacional. Mas esse cometimento quase anticolonialista desvanecer-se-ia completamente em finais da década de 80 e começos da seguinte. Após a sua adesão ao Partido Progressista, Oliveira Martins enfeuda-se, em 1886, no apoio à política governamental para as colónias e, na sequência da crise do Ultimato, deixa-se contaminar pela

241 Sobre a origem e desenvolvimento da Sociedade de Geografia de Lisboa enquanto «grupo de

pressão colonial» ver Ângela GUIMARÃES (1984), Uma corrente do colonialismo português: a

Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895, Livros Horizonte, Lisboa, passim.

242 A expressão é de Valentim ALEXANDRE (1996), «Questão nacional e questão colonial em

Oliveira Martins», in Análise Social, vol. XXXI (135), Lisboa, p. 195.

243 Joaquim Pedro de Oliveira MARTINS (1880), O Brazil e as Colónias Portuguezas, Liv. Bertrand,

exaltação nacionalista: o «património colonial» seria indispensável ao bem-estar de Portugal e a questão colonial tinha-se tornado «vital para o país»244. No

computo final do último quartel do século XIX foram as teses imperialistas, como a História o veio a demonstrar, que impuseram a sua vontade: os centuriões (António Enes, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Teixeira Pinto e outros) avançaram para a ocupação efectiva, sustentada em «campanhas de pacificação». A última década do século XIX foi, manifestamente, um tempo de empenho colonial e se a Antropologia portuguesa, então emergente, voltava costas ao terreiro colonial não era por falta de «oportunidade», mas sim por falta de «utilidade».