• Nenhum resultado encontrado

Leituras antropológicas em Moçambique

Para o período a que se reporta a nossa dissertação, Moçambique parece ter sido a colónia portuguesa que mais «atenção antropológica» originou. Repetimos aqui os principais marcos desse particularismo, já atrás referenciados na apresentação do objecto desta dissertação: a criação da «Missão Antropológica de Moçambique» em 1936, a primeira a ser instituída em resposta ao determinado pelo Decreto-Lei n.º 34 478, de 3 de Abril de 1935, e que manteve investigações de campo até 1955; a obrigatoriedade determinada em 1933 pela Portaria n.º 7 728, de 4 de Dezembro, de os provimentos nas diferentes categorias da carreira administrativa em Moçambique se fazerem acompanhar de uma «monografia etnográfica» sobre uma das etnias da colónia, determinação posta em prática em 1945 e em exercício até 1961; a instituição, em 1941, de uma Missão Etognósica de Moçambique para elaborar os Códigos Penal e Civil dos Indígenas de Moçambique levando em atenção os seus «usos e costumes»; finalmente, a criação, em 1956-1957, da Missão de Estudos das

Minorias Étnicas do Ultramar Português, mas cuja fundamental actividade foi o estudo da etnia maconde do Norte de Moçambique.

Trataram-se de intervenções sistemáticas, não de afloramentos antropológicos, episódicos ou inconstantes. Corresponderam ou a uma necessidade sentida pelo poder colonial central, ou foram elaborados a partir de um diagnóstico elaborado localmente. Em todo o caso, a sua realização em Moçambique foi ímpar no mais amplo contexto das colónias portuguesas. Senão vejamos, caso a caso.

A Missão Etognósica de Moçambique, criada por despacho de 31 de Julho de 1941 do Governador-Geral, o General José Tristão de Bettencourt, e entregue ao cuidado do jurista José Gonçalves Cota, foi o corolário de uma longa tradição de recolha de «usos e costumes indígenas» em Moçambique, quase sempre com a expressa preocupação de os conhecer para buscar formas atinentes de regrar o seu quotidiano com o direito civil português. Desde a revolução liberal e por todo o século XIX, Moçambique conheceu várias investidas nesse sentido, como teremos oportunidade de referir no capítulo que adiante dedicamos à Missão Etognósica. E já no século XX, quando a República, então particularmente interessada na exploração de Angola, se defrontou com a inexistência de um modelo de administração das populações indígenas, determinou, por decreto de 27 de Maio de 1911, que fosse aplicado em todo o território daquela colónia o sistema que estava em vigor em Moçambique desde 1908.

Essa mesma precedência de Moçambique sobre as outras colónias pode ainda ser evocada a propósito daquele que terá sido, porventura, o primeiro inquérito etnográfico, enquanto tal, mandado efectuar numa colónia portuguesa africana. Referimo-nos a um conjunto de dados etnográficos sobre a região de Sofala, no centro de Moçambique, em finais do século XVIII e

agrupadas sob o título «Respostas das questoens sobre os cafres»306. Redigido

por Carlos José dos Reis e Gama, governador de Sofala, está datado, na carta que acompanha o documento endereçado ao governador e capitão-general de Moçambique, de 7 de Julho de 1796. Tanto quanto se sabe e ficou registado, esse documento parece ser o resultado da primeira tentativa que se fez em Moçambique para o levantamento de dados de natureza exclusivamente etnográfica.

«A própria carta de Carlos José dos Reis e Gama, (…) revelam

que aquela diligência tendente à reunião de dados etnográficos estava intimamente ligada ao interesse, que surgiu à volta de 1782, pela história natural, interesse esse que está patente nas «Breves Instrucções aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa sobre as remessas dos produtos, e notícias pertencentes à História da Natureza para formar hum museo nacional», folhetim de 45 páginas, publicado em Lisboa em 1781. Ora essas «Instruções» também chegaram a Moçambique, pois já em 1782 o então Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, enviava vinte exemplares a Pedro de Saldanha e Albuquerque, que a esse tempo era Capitão-General de Moçambique»307.

As «Instruções» de 1781, que parecem ter inspirado as «Questoens sobre os cafres», diziam respeito às diversas áreas do que então se designava por História Natural. Mas no que dizia respeito à classificação dos assuntos etnográficos, que aqui nos interessam, mandava dividi-los nos seguintes capítulos: religião, política, economia, artes e tradições. E, de facto, as 106 respostas transcritas por Liesegang obedecem, grosso modo, a essa divisão.

306 Gerhard LIESEGANG (1966), «Respostas das questoens sobre os cafres» ou notícias etnográficas sobre

Sofala do fim do século XVIII, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa.

Remetidas para todo o Ultramar português, as «Instruções» tiveram como único resultado o envio de algumas amostras de conchas, búzios, raízes, madeiras, cristais e pouco mais. Apenas três objectos etnográficos, «armaria cafre», chegaram a Lisboa nessa altura, todos eles provenientes de Moçambique. Com um desfasamento de 15 anos, as «Questoens sobre os cafres» parecem ser a primeira resposta sistematizada no âmbito dessa curiosidade etnográfica, neste caso proveniente de Moçambique, tal como, no século seguinte, seria na colónia portuguesa do Índico que as disposições liberais para a recolha dos «usos e costumes indígenas» conducente à sua integração em normas de direito teve melhor e mais rápido acolhimento.

Quanto às campanhas da Antropologia Física, iniciadas em 1935 por determinação legislativa, Moçambique ocupa também um lugar de relevo. Se bem que outras «Missões Antropológicas», como veremos mais adiante, tivessem sido enviadas a Angola, S. Tomé e Príncipe, Guiné e Timor, foram-no episodicamente, isto é, não revelaram a permanência e sistematização da «Missão Antropológica de Moçambique», operante no terreno, na investigação e publicação de resultados associados durante mais de 20 anos.

Finalmente, no que respeita à Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português, em funcionamento entre 1956-57 e 1961, o destaque de Moçambique é por demais evidente. O principal trabalho da Missão, aquele a que se devotou a equipa quase por inteiro, foi o levantamento etnográfico da etnia maconde, no Norte de Moçambique, e a publicação da monografia Os

Macondes de Moçambique, em 4 volumes, aí está para o comprovar. Obra maior da Etnologia colonial portuguesa devotada a África, só será comparável à monumental pesquisa desenvolvida em Angola por Augusto Mesquitela Lima durante os anos 60, mas só publicada, em 3 volumes, já depois da independência do país308.

308 Augusto Guilherme Mesquitela LIMA (1988-1992), Os Kyaka de Angola: história, parentesco,

Já a disposição legislativa de 1933, que determinava que o provimento nos diversos cargos da administração colonial se deveria processar por concurso e implicar a redacção de um relatório sobre uma das etnias da colónia309, foi, naturalmente, de aplicação a todo o espaço colonial português.

Ignoramos, de todo, a sua efectivação nas outras colónias, mas sabemos que a sua aplicação em Moçambique só foi regulamentada em 1945310.

Se a prática de uma «Etnografia administrativa» pode não ter sido específica de Moçambique, as três «missões» a que acima fazemos referência são inelutavelmente, pelas razões aduzidas, a marca de um particularismo na atenção antropológica devotada a Moçambique. A explanação detalhada de cada uma delas e a necessária referência a essa «Etnografia administrativa» encarregar-se-ão de nos demonstrar, nos capítulos seguintes, o porquê desse particularismo mas pode-se adiantar, desde já, que uma parte significativa da explicação reside no modelo de colonização promovido em Moçambique.

Já aqui o afirmámos: se a Guiné era uma «colónia de plantação» e Angola uma «colónia de povoamento», Moçambique era uma «colónia de serviços». Estas diversas formas de ocupação e exploração das colónias estavam, desde o início da empresa colonial moderna, presentes na racionalização da política colonial portuguesa. Oliveira Martins, em O Brazil e as Colónias Portuguezas311,

apresentava uma tipologia das formas de ocupação e exploração colonial algo similar:

309 Reforma Administrativa Ultramarina, Decreto-Lei n.º 23 229, de 15 de Novembro de 1933,

Diário do Governo, 1.ª série, art.º 54.º.

310 «Programas dos concursos para chefes de posto, secretários de circunscrição e

administradores de circunscrição», Portaria n.° 10 980, de 28 Julho de 1945, Boletim Oficial de

Moçambique, 1.ª série, n.° 30.

311 Joaquim Pedro de Oliveira MARTINS (1880), O Brazil e as Colónias Portuguezas. Liv. Bertrand,

«Em três espécies ou tipos se resumem as variadas combinações postas em prática pelos povos europeus para apropriar territórios ou riquezas localizadas fora da Europa; e ao conjunto dos três tipos deu-se o nome genérico de colónias. Esses três tipos, ou espécies, são: 1. - As feitorias, ou colónias comerciais; 2. - As fazendas ou colónias de produção agrícola, destinadas à exportação (plantações); 3. - As colónias, propriamente ditas, ou estabelecimentos de população fixa, dada à cultura de produtos de consumo local».

As normas saídas do Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885, consagrando os direitos de ocupação efectiva em detrimento da evocação dos direitos históricos, levaram a que as feitorias, a menos intensa das formas de ocupação colonial – na realidade, uma espécie de colonização indirecta suportada por alguns pontos de fixação costeira –, se fossem progressivamente adaptando, ora ao tipo de «colonização de plantação», ora ao de «povoamento», consoante a natureza dos interesses investidos, e, sobretudo, atendendo aos constrangimentos ecológicos e climatéricos:

«As condições geográficas originam (...) as duas grandes

divisões ou categorias atrás referidas: as colónias de exploração (ou simplesmente plantações) ou, ainda, fazendas, em que o europeu não pode fixar-se nem executar os trabalhos agrícolas, que se limita a dirigir, e as colónias em que a raça branca se pode fixar ou aclimar perfeitamente, exercendo as mesmas actividades e proliferando da mesma forma que no seu território metropolitano: são as colónias agrícolas ou de povoamento»312.

312 José Gonçalo SANTA-RITA (1949), Colonização de Povoamento (breves noções), Sociedade de

Moçambique não se enquadrava em nenhuma dessas duas categorias. Aquela colónia, particularmente o Sul, era, desde o século XIX, uma dependência económica das colónias britânicas vizinhas, às quais facultava facilidades portuárias e rodoviárias e vendia mão-de-obra africana. O Norte de Moçambique estava, por seu turno, entregue às designadas companhias majestáticas, que se limitavam a uma exploração primária da mão-de-obra africana. Se comparados com Angola, época a época, os valores da produção agrícola de Moçambique são absolutamente irrisórios até à década de 40 do século XX. Até ao advento dos anos 60, quando se abre e fomenta a colonização europeia, Moçambique mais não era que uma «colónia de serviços», facultando serviços portuários e ferroviários e vendendo os serviços das suas populações africanas.

Percebe-se assim, em nosso entender, a tão particular atenção antropológica que Moçambique mereceu: desde muito cedo, o seu mais valioso bem colonial não era o café, o cacau ou o arroz, o manganêz, o ouro ou os diamantes, mas sim os seus recursos humanos, alienados quer às companhias majestáticas, quer às companhias diamantíferas e auríferas do Rand sul- africano. Em todas as suas facetas, a Antropologia tinha aí um papel a desempenhar, comprovando a sua utilidade, mesmo antes de afirmar a sua cientificidade e autonomia. Veremos, nos próximos capítulos, se o conseguiu.

IV – A codificação dos

«usos e costumes indígenas»:

a Missão Etognósica de Moçambique.

1. Introdução

A política colonial portuguesa tem sido, não raras vezes, julgada como um todo integral, obedecendo a objectivos políticos, ideológicos e económicos muito bem definidos e claros, de tal forma que tende-se a estabelecer uma relação redutoramente determinista. Tal asserção parece ser particularmente operante quando se leva em consideração, por exemplo, a política colonial do Estado Novo, na crença de que entre os preceitos ideológicos, as disposições legislativas e as realizações práticas de tal política subsistiria uma qualquer coerência, mesmo oculta e nefanda que fosse. Sem pôr em causa o primado da instância ideológica, o determinismo dos factores económicos ou o testemunho do corpo legislativo colonial, há que entender que o levantamento dos factos e dos dados, tal como eles reflectem as diferentes práticas coloniais, atesta uma multiplicidade de reificações dessa mesma política colonial.

Deu-se como adquirida uma definição de situação colonial que pudesse abarcar as várias realizações coloniais, e nesse sentido a noção operatória adiantada por Georges Balandier na já distante década de 50 do século passado serviu inteiramente esse modelo de análise, como atrás demonstrámos311. Mas

311

serviu igualmente para que, sob a sua sombra tutelar, se erguesse um quadro taxinómico que mandava separar colonialismos desenvolvidos de subdesenvolvidos, boas e más práticas coloniais.

Sem pôr em causa o valor hermenêutico de um entendimento consensual sobre o colonialismo –, o fenómeno de mais longa duração na história da Humanidade – entendemos que o conceito elaborado por Stocking Jr.312, como já aqui evocámos, parece corresponder mais adequadamente ao estado actual das pesquisas e, sobremaneira, coaduna-se inteiramente com a evidência dos factos e dos dados entretanto levantados nos últimos 30 anos. A «pluralização das situações coloniais» – é esse o conceito que importa aqui reter –, nas quais a diversidade de relações entre a Antropologia e o colonialismo é explicitada de acordo com o contexto geográfico, as condições político-sociais, económicas e culturais e, ainda, os objectivos de investigação das instituições, as suas fontes de financiamento e os interesses de investigação dos antropólogos envolvidos, está, mesmo assim, mais habilitada a fornecer uma apreensão holística do colonialismo por via das suas múltiplas e diversas manifestações no espaço e no tempo, através das diferentes práticas e políticas coloniais, quer de âmbito geral, quer de aplicação local.

Já demonstrámos algures313 que no contexto colonial português a atenção e as práticas antropológicas em Moçambique ocuparam um lugar ímpar e, páginas atrás, evocámos os principais marcos dessa diferença314. Para qualquer dos casos agora evocados torna-se necessário acrescentar que tais manifestações de interesse antropológico não tiveram contrapartida semelhante nas outras

312

George W. STOCKING JR. (1991), «Colonial situations», in George W. STOCKING JR. [ed.],

Colonial Situations. Essays on the contextualization of ethnographic knowledge, History of Anthropology, vol. 7, Wisconsin University Press, Madison, pp. 3-8.

313

Ver Rui PEREIRA (1987a), «Antropologia aplicada na política colonial do Estado Novo», in

Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 4-5, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, pp. 191-235.

314

possessões coloniais portuguesas, fosse em quantidade, fosse na natureza do saber investido. Já nos inquirimos sobre o porquê desta tão específica atenção antropológica sobre Moçambique mas, para já, importa apenas sublinhar que, para além das disposições políticas e ideológicas emanadas do poder central, cada colónia possuía as suas especificidades sociais e económicas: a existência de diversas disposições legislativas referentes ao estatuto civil das «populações indígenas», estabelecendo diferenças de grau entre as populações dos diferentes territórios coloniais, concorre para a confirmação dessa asserção.

Porventura uma das marcas mais ímpares dessa tão específica atenção antropológica sobre Moçambique tenha sido a fundação, no início da década de 40 do século passado, de uma Missão Etognósica de Moçambique315. O jurista José Gonçalves Cota chefiava esta Missão que viria a dar os seus trabalhos por concluídos em 1946, com a publicação de Projecto Definitivo do Código Penal dos

indígenas da Colónia de Moçambique, acompanhado de um relatório e de um estudo sobre direito criminal indígena316 e de Projecto definitivo do estatuto do Direito Privado

dos indígenas da Colónia de Moçambique, precedido de um estudo sumário do direito gentílico317. Por força da investigação que precedeu a redacção desses dois títulos, Gonçalves Cota teve de colectar inúmeros dados etnográficos que serviram de suporte à publicação, em 1944, de Mitologia e Direito Consuetudinário

dos Indígenas de Moçambique318, que exibia o muito significativo subtítulo «Estudo de Etnologia mandado elaborar pelo Governo Geral da Colónia de

315

Fundada por despacho do Governador-Geral de Moçambique, General José Tristão de Bettencourt em 31 de Julho de 1941, publicado no Boletim Oficial, n.º 32, 2.ª série, 1941.

316

José Gonçalves COTA (1946a), Projecto Definitivo do Código Penal dos indígenas da Colónia de

Moçambique, acompanhado de um relatório e de um estudo sobre direito criminal indígena, Imprensa Nacional, Lourenço Marques.

317

José Gonçalves Cota (1946b), Projecto Definitivo do Estatuto do Direito Privado dos Indígenas da

Colónia de Moçambique, precedido de um estudo sumário do direito gentílico, Imprensa Nacional, Lourenço Marques.

318

José Gonçalves COTA (1944), Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indígenas de Moçambique, Imprensa Nacional de Moçambique, Lourenço Marques.

Moçambique». O estudo dos «usos e costumes indígenas» da colónia não era uma tarefa nova em Moçambique, pelo que importa conhecer as realizações anteriores de molde a entender o alcance desta denominada Missão Etognósica.