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Objectivos da investigação

O objectivo primordial da nossa investigação enquadra-se na História da Antropologia Portuguesa, contribuindo para um capítulo até agora – como já aqui foi realçado – em grande medida lacunar: o da Antropologia colonial. Pelas razões acima aduzidas, cingir-nos-emos, apenas, à intervenção antropológica no contexto colonial português em Moçambique entre 1926 e 1959, mas, sempre que o entendamos necessário, faremos recorrências aos outros contextos coloniais portugueses. Como objectivo subsequente pensamos que o preenchimento dessa lacuna poderá – e deverá – contribuir para o estabelecimento de um aparelho teórico e, sobretudo, metodológico que enquadre futuros estudos no domínio da História da Antropologia portuguesa em contexto colonial. Importa, no que diz respeito ao conjunto de noções que se aglutinam em torno de uma «ideia» do colonialismo português, ultrapassar estereótipos desde há muito cristalizados; importa, também, caracterizar a atenção antropológica da administração colonial portuguesa, resultasse ela da colaboração da Antropologia académica ou tão-somente de uma auto-suficiente elaboração «pragmática»; importa, ainda, proceder ao levantamento e seriação das problematizações, metodologias, recortes epistemológicos, aparelhagens teóricas e modelos analíticos empregues pela Antropologia portuguesa no seu envolvimento colonial.

O apelo colonial deve ser entendido – pelo menos do ponto de vista científico – como uma «crise de crescimento» inerente ao próprio desenvolvimento da Antropologia portuguesa, sendo inegável que a autonomização da Antropologia académica em Portugal resultou, como comprovaremos, desse apelo. De igual forma, o colonialismo, em si mesmo, constituiu um processo histórico essencial ao desenvolvimento e autonomização dos povos e nações colonizadas. Em vez de ser julgada como

um anátema da Antropologia portuguesa, a situação colonial deve ser entendida como o processo catalisador que proporcionou um salto qualitativo ímpar aos estudos antropológicos em Portugal75 : a sua aplicabilidade e a sua

autonomização científica e académica. Foi na sua vertente antropométrica que – acompanhando um movimento geral e comum a toda a Europa da segunda metade do século XIX – a Antropologia portuguesa começou por testar a sua aplicabilidade. Talvez sensibilizado pela realização, em Lisboa, em 1880, do IX Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica76, o

Ministério da Marinha e Colónias dirigiu, por toda a década de 80, instruções ao pessoal sanitário e administrativo das colónias determinando a observação e relato de diversas características físicas dos «indígenas», como a circular de 1885 que solicitava a colecta de crânios humanos e o seu posterior envio para a metrópole, onde deveriam ser classificados e estudados77. Dever-se-á ter

presente que, nesse mesmo ano, tinha sido criada na Universidade de Coimbra a primeira cadeira de Antropologia, entregue à regência do médico – e futuro Presidente da República – Bernardino Machado. Mesmo alguns dos autores que, na viragem do século, acompanhariam Leite de Vasconcelos no lançamento dos estudos etnográficos e etnológicos em Portugal tiveram necessidade, em diversos momentos, de se reportarem a esses aspectos «práticos» da Antropologia Física das colónias: é o caso de Francisco Adolfo Coelho que, numa obra de 1893, manifesta a sua adesão aos princípios de um «evolucionismo positivista»78; ou de Teófilo Braga que, em artigo de 1908,

75 E esta asserção é tão válida para uma Antropologia de referentes exclusivamente biológicos

(a denominada «Antropologia Física» ou «Antropobiologia») como para uma Antropologia Social e Cultural.

76 De notar que a associação destas duas disciplinas num mesmo congresso revela, por si só, a

dominante evolucionista dos estudos antropológicos do século XIX, projectando para um eixo diacrónico evolutivo as diferentes «raças» confrontadas pela expansão «imperial» de Oitocentos.

77 «Circular aos Chefes dos Serviços Sanitários Coloniais», de 28 de Julho de 1885, Ministério

da Marinha e Colónias, Lisboa.

78 Francisco Adolfo COELHO (1893), Os Povos Extra-Europeus e em especial os Negros de África ante

estabelece uma distinção pertinente entre «raças biológicas» e «raças sociológicas»79. Poder-se-ia, ainda, evocar a prolixa obra de Joaquim Pedro de

Oliveira Martins80, ponteada de referências antropométricas, para comprovar

essa crescente aplicabilidade das ciências antropológicas portuguesas no terreiro colonial. Essa tendência acentuar-se-ia, primeiro com os levantamentos de Pires de Lima no Norte de Moçambique durante a guerra de 1914-191881,

depois com as dezenas de «missões antropológicas» que o Ministério das Colónias patrocinaria entre 1935 e 195582 em Angola (por António de Almeida),

e na Guiné (por Amílcar Mateus), em Timor (por Mendes Corrêa) e, sobretudo, em Moçambique (por Santos Júnior).

De igual modo, a crescente autonomia académica da disciplina antropológica pode ser referenciada a uma sua crescente intervenção no terreiro colonial. Depois da criação da cadeira de Antropologia na Universidade de Coimbra, em 1885, a disciplina foi ganhando lugar cativo nas faculdades de Ciências e de Medicina, entregue, regra geral, à regência de médicos, uma vez que se orientavam os estudos, quase que exclusivamente, para a vertente antropométrica. A sua aplicabilidade nas colónias, exercida ao longo das

79 Teófilo BRAGA (1908), «O que são as raças sociológicas», in Trabalhos da Academia de Sciências,

1.ª série, tomo I, Livraria Central (de Gomes de Carvalho), Lisboa.

80 Além do já citado O Brazil e as Colónias Portuguezas (1888), contendo, sobretudo, apreciações

socio-económicas comparativas, dever-se-á acrescentar Elementos de Antropologia, de 1880, e

As Raças Humanas e a Civilização Primitiva, de 1881 [Joaquim Pedro de Oliveira MARTINS (1880), Elementos de Anthropologia: história natural do homem, Bertrand, Lisboa; Joaquim Pedro de Oliveira MARTINS (1881), As Raças Humanas e a Civilização Primitiva, Parceria António Maria Pereira, Lisboa].

81 Américo Pires de Lima era médico do Corpo Expedicionário Português que actuava no

Norte de Moçambique contra os alemães do Tanganhica durante a guerra de 1914-1918. Aproveitando a sua estadia na colónia, entre 1916 e 1918, e fazendo jus à sua «especialidade» em Antropologia, procedeu a inúmeros levantamentos antropométricos entre as etnias do Norte de Moçambique. O relato da sua experiência no Norte de Moçambique pode ser encontrado em Américo Pires de LIMA (1933), Na Costa d'África. Memórias de um médico

expedicionário a Moçambique, Edições Pátria, Vila Nova de Gaia. O principal estudo resultante da sua actividade antropométrica na colónia é Américo Pires de LIMA (1918), «Contribuição para o estudo antropológico dos indígenas de Moçambique», in Anais Científicos da Faculdade

de Medicina do Porto, vol. IV, (3), Porto.

múltiplas campanhas de investigação que acima referimos e que, por norma, eram dirigidas no terreno pelos mesmos investigadores que regiam as cadeiras, foi concorrendo para uma nítida elevação do estatuto da Antropologia. Depois do Museu-Laboratório Antropológico da Universidade de Coimbra, a Universidade do Porto criou, na Faculdade de Ciências, o seu Museu e Laboratório Antropológico83, fundado em 1914, à sombra tutelar do qual se

abrigaria a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, fundada em 1918 por António Augusto Mendes Corrêa e Américo Pires de Lima, entre outros. O nome da Sociedade trai uma divisão fundadora no campo das ciências antropológicas em Portugal na primeira metade deste século: de um lado a Antropologia, entendida como o estudo do homem «físico»; do outro a Etnologia, entendida como o estudo do homem «cultural e social». Todavia, esta segunda vertente esteve praticamente ausente nas intervenções em terreiro colonial durante a primeira metade do século XX, da mesma forma que era quase que completamente omissa nos programas curriculares das cadeiras de Antropologia entretanto surgidas. A este propósito poder-nos-emos inquirir sobre o facto de a brilhante geração de Leite de Vasconcelos (com Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e Rocha Peixoto, entre outros) não ter originado a criação e fixação de cadeiras de «Etnologia» nas universidades portuguesas, apesar da excelente produção resultante. Parte da resposta a esta questão deverá estar relacionada com a ausência de uma dimensão «prática» ou, melhor dizendo, «utilitária» dos estudos etnológicos, desde sempre subvalorizados pela sua inicial conotação com o «folclorismo» e a «cultura popular», ao invés da Antropologia oitocentista que, sobretudo por via das suas variadas assunções antropométricas, se associou à ideia de cientificidade e rigor e que exibia, ademais, um evidente «utilitarismo».

83 Desde 26 de Novembro de 1986 – Portaria ministerial 16/86 – designado por Instituto de

A dominância da Antropobiologia manteve-se por quase toda a primeira metade do século XX: mesmo as raras cadeiras de Etnologia que, posteriormente, se começaram a afirmar nos currículos das universidades – como a cadeira semestral de Etnologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra que Jorge Dias foi, em 1952, convidado a reger – não escapavam a uma «mistura de raciologia com arqueologia»84. Por outro lado, a geração de

Leite de Vasconcelos não se reproduziu no tempo, isto é, não originou no imediato uma «escola» e, como acentua Veiga de Oliveira, após o seu desaparecimento as pesquisas e os estudos etnológicos «…estavam unicamente a

cargo de amadores, e, embora por vezes de muito boa qualidade, eram totalmente falhos de unidade e sistematização»85. Esse hiato entre a geração de Leite de Vasconcelos e a «escola» de Jorge Dias, aliado à falta de uma dimensão «prática» – que a Antropobiologia efectivamente realizava no terreiro colonial – explicam, conjuntamente, a subalternização, em Portugal, da Antropologia Cultural e Social durante a primeira metade do século XX. No mesmo período, ao invés, a Antropologia Física, nas suas diversas facetas, soube colher no terreiro colonial a legitimidade e o reconhecimento que lhe permitiram afirmar-se no campo académico a um mesmo nível das ciências exactas e experimentais, de forma a poder assumir-se como uma verdadeira ciência e não mais – na expressão de Raymond Firth – como um «diletantismo folclorista e arqueológico»86. Assim, a

investigação de campo no terreiro colonial que fundamentou e acompanhou a emancipação da Antropologia Física portuguesa deverá ser entendida como uma etapa necessária à afirmação da identidade da nova disciplina. Deste modo

84 João Basto LUPI (1984), A Concepção de Etnologia em António Jorge Dias. Teoria e método do estudo

científico da cultura, Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga, p. 41.

85 Ernesto Veiga de OLIVEIRA (1976), «Professor Jorge Dias», in Revista Portuguesa de Filologia,

vol. XVI, Universidade de Coimbra, Coimbra, p. 798.

86 Raymond FIRTH (1983), We, the Tikopia. A sociological study of kinship in primitiv Polynesia,

– e glosando Gérard Leclerc87 – o momento inicial de certeza de si do

colonialismo português é-o, também, da certeza em si da prática antropológica. Esta concordância, por si, nada adianta, mas é ela própria que convém explicar, não apenas na origem, mas sobretudo no seu desenvolvimento histórico.