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2. JORNALISMO E CONSTRUÇÃO DO REAL

2.1 A arquitetura da construção

O jornalismo que conhecemos é um legado das mudanças e dos avanços tecnológicos a partir da revolução industrial e se institui junto ao movimento civilizatório, nascido e desenvolvido na Europa do século XVII, cujo modelo firmou-se como padrão de vida nas sociedades ocidentais no século XIX (GUERRA, 2008, p. 125).

O jornalismo começa com um traço da burguesia que o funda sob os ideais da igualdade, da fraternidade e da liberdade na Revolução Francesa. Foi tomado como um libelo à expressão idealista, possuindo um caráter opinativo e funcionava como um instrumento político para dar visibilidade a esses ideais, sem, no entanto, se relacionar com uma visão que se preconiza na atualidade e nesta tese: o jornalismo como forma de conhecimento (MEDITSCH, 1992) cuja construção se dá a partir da realidade da vida cotidiana (BERGER; LUCKMANN, 1995). Investigamos a partir dessas premissas e situamos a importância social do jornalismo, focando esta pesquisa no como, ao examinarmos as pessoas, as práticas (dominantes ou desviantes), os comportamentos, as estruturas e as instituições envolvidas na feitura das notícias (TUCHMAN, 1983).

A reflexão existe há um bom tempo. Beltrão (1964, p. 62) destaca a importância do jornalismo como forma de conhecimento para a orientação da sociedade ao defini-lo como “a informação de fatos correntes, devidamente interpretados e transmitidos periodicamente à sociedade, com o objetivo de difundir conhecimentos e orientar a opinião pública no sentido de promover o bem comum”.

Para Beltrão (1965, p. 15), à proporção que as coletividades iam se ampliando e se diversificando, que se “descobrem e empregam novos meios de comunicação e que se desenvolve o interesse público por todos os procedimentos que atingem à maioria”, o jornalismo se fortaleceu como um instrumento simplificador da realidade. O homem quer saber as novidades do mundo, do seu país, do seu estado e da sua cidade ou bairro para obter desse conhecimento uma vantagem prática, explorando no máximo os seus interesses (BELTRÃO, 2006).

Para Genro Filho (1986, p. 14), o jornalismo é entendido como “uma nova modalidade social de conhecimento cuja categoria central é o singular”, uma “forma social de conhecimento”, condicionada historicamente pelo desenvolvimento do capitalismo, mas com potencialidades que ultrapassam a mera funcionalidade a esse modo de produção. O

conhecimento deve ser entendido como momento da práxis, como dimensão simbólica da apropriação social do homem sobre a realidade.

Situamos a natureza do trabalho jornalístico como sendo uma mediação cognitiva entre os indivíduos e a realidade e essa mediação só será possível se o discurso do jornalista for construído “a partir de informações verdadeiras sobre os fatos”, o conhecimento que se tenha dos fatos (GUERRA, 2008, p. 140).

No jornalismo, dois tipos de realidade podem ser observados: a realidade sobre a qual se noticia (a física e social) e a realidade que o próprio jornalismo produz (midiática). Os jornalistas tomam conhecimento de parte da realidade social e a transforma em realidade midiática, atendendo às necessidades humanas de orientação em seu ambiente natural e social (SPONHOLZ, 2009). Os jornalistas, ao tomarem conhecimento dessa realidade, agiriam como simplificadores do mundo social, organizando (em lide, narrativas, gêneros etc), construindo, reconstituindo, representando, rearrumando o mundo dos fatos.

Assim, o jornalismo seria um tipo de processo de conhecimento que obedece às mesmas regras dos processos de conhecimento em geral e,

Como qualquer outro tipo de processo de conhecimento, não consegue espelhar a realidade porque este processo é sempre perspectivo, seletivo e construtivo. Sempre que alguém processa, estrutura e compara os estímulos que recebeu do mundo exterior com o que já sabe, ou seja, sempre que uma pessoa conhece algo, ela o faz de uma determinada perspectiva (SPONHOLZ, 2009, p. 90).

A realidade social precisa ser descrita e explicada de uma forma tão particular que, ao fazer esse trabalho de construir as notícias, o jornalista “pode gerar um conhecimento próprio e não somente transmiti-lo” (SPONHOLZ, 2009, p. 126) e que se coloca entre um saber cotidiano e uma competência científica, pois seu trabalho se assemelha ao de um cientista que formula hipóteses sobre a realidade cotidiana formada por eventos com valor-notícia (WOLF, 1987). O jornalista vai a campo efetuar a verificação de suas propriedades para, aí sim, construir suas notícias. Essencialmente, o cientista é um pensador e o jornalista um homem de ação (TUCHMAN, 1993).

Segundo Bird e Dardene (1999, p. 276), as notícias ajudam a criar ordem a partir da desordem. Para contar suas histórias sobre a realidade singular, os jornalistas se rendem às exigências da narratividade, pois quanto “melhores contadores de histórias eles forem, melhor resposta terão do público”. Entretanto as notícias não devem ser tomadas por ficção, não é a realidade em si, mas é uma história que trata sobre a realidade.

Para Traquina (1999, p. 24-25), ser jornalista profissional implica três saberes: ter o faro para a notícia, um ‘saber de reconhecimento’; agir para recolher mais informações, um ‘saber de procedimento’, e ser capaz de contar a história, escrever a notícia, um ‘saber de narração’.

Mouillaud (2002) reconhece que todo o esforço narrativo não é capaz de apreender a totalidade e complexidade do mundo que enquadram. Para ele, o que os jornalistas fazem ao construírem suas notícias é tentar dar conta, linearmente, de toda a dinâmica do acontecimento a partir de seus fragmentos, que são organizados segundo o saber jornalístico.

Para Kunczik (2002, p. 250), é equivocada a afirmação de que os fatos falam por si mesmos, pois a avaliação e a aceitação dos fatos dependem dos processos sociais envolvidos dentro e fora das organizações noticiosas. Tuchman (1983) afirma que os significados sociais, constituídos em interações sociais, transformam-se em regras institucionais e organizacionais e em empreendimentos que podem ser invocados como recursos para justificar ações.

A notícia define e redefine, constitui e reconstitui, permanentemente, os fenômenos sociais, mas também “define e redefine, constitui e reconstitui maneiras de fazer coisas: os processos existentes nas instituições existentes” (TUCHMAN, 1983, p. 210). Para Goffman (1974), em uma investigação sobre a notícia como reprodução do status quo, a produção de significados está intrinsecamente embutida nas instituições, organizações e profissionais associados às suas atividades, e esses significados são produzidos e reproduzidos, criados e recriados.

Para contar suas histórias, os jornalistas realizam enquadramento do real. É a forma como eles organizam a vida cotidiana para situá-la diante da realidade. São os mecanismos aplicados pelos jornalistas, como equipamento profissional para transformar os acontecimentos em notícia. O enquadramento noticioso é constituído por sequências da vida cotidiana, pedaços selecionados da atividade permanente, fluxos de trabalho inteligíveis e negociáveis no interior da redação como local de trabalho (TUCHMAN, 1999, p. 258).

Em meio a tantas informações diárias, os jornalistas terminam desenvolvendo uma habilidade treinada para a percepção seletiva diante dos fatos que têm nas mãos e acabam adquirindo o “senso comum das redações, o chamado instinto jornalístico, o faro jornalístico”, palavras muito comuns no jargão da categoria dos jornalistas e na rotina das redações (VIZEU, 2001, p. 87).

As notícias esboçam e reproduzem as estruturas institucionais, não só definem e redefinem, constituem e reconstituem significados sociais; também definem e redefinem, constituem e reconstituem maneiras de fazer coisas: os processos existentes nas instituições

existentes (TUCHMAN, 1983, p. 210). Em suas rotinas, para realizar suas tarefas, o jornalista trabalha de acordo com regras organizacionais, que delimitam seu campo de atuação. Na medida em que a consciência e o sentido de pertença a um grupo profissional se articulam com os objetivos da organização noticiosa, a produção noticiosa é considerada construção social da realidade; ela é produto de maneiras específicas de organizar o trabalho informativo. Morán (1986) analisa os telejornais como um bem social e destaca alguns fatores que interferem na escolha das informações do cotidiano para que estas sejam transformadas em notícias na TV. Um desses fatores são justamente os critérios na seleção e organização da informação televisiva. Entre os quais destaca: interesse e anormalidade; imprevisibilidade e atualidade; proximidade física ou afetiva; quantidade e poder multiplicador e critérios retóricos.

Os acontecimentos são selecionados, hierarquizados e os editores definem com quais enquadramentos necessitam trabalhar. Se a edição aponta para a criação de imagens para cobrir o texto de uma determinada notícia, uma série de procedimentos é acionada e já se insere no repertório dos jornalistas. Esses procedimentos fazem parte da rotina e também são da ordem das organizações das empresas sobre as quais se criam as convenções profissionais e da cultura profissional dos jornalistas, um inextrincável emaranhado de táticas, códigos, tipificações e convenções que tornam possível a realização das notícias: “o produto informativo parece ser o resultado de uma série de negociações, pragmaticamente orientadas, que têm por objecto o que é transmitido, e o modo como é transmitido, no noticiário ou no telejornal” (WOLF, 1987, p. 171).

Os jornalistas definem a noticiabilidade dos acontecimentos a partir da noção de um conjunto de elementos por meio dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e os tipos de acontecimentos, dentre os quais selecionará as notícias; com esse pressuposto partem para definir também o que seriam os “valores-notícia como sendo um componente da noticiabilidade”, de seus critérios de relevância que funcionam conjuntamente. São as diferentes relações e combinações que se estabelecem entre diferentes valores-notícia, que recomendam a seleção de um fato e não somente um valor-notícia (WOLF, 1987, p. 133).

No jornalismo, os valores-notícia são acionados do começo ao fim do processo de produção das notícias. Eles definem o que entra na agenda noticiosa, como as informações serão produzidas, apresentadas, o que deve ser realçado, o que deve ser omitido. São critérios que “explicam e guiam os procedimentos operactivos redactoriais”, rotinizando as tarefas para torná-las possíveis e gerenciáveis no tempo necessário de produção. Os critérios devem

permitir que a seleção do material seja executada com rapidez, de um modo quase automático (WOLF, 1987, p. 174).

Os valores-notícia classificados por Wolf (1987) podem ser relativos: a) às características substantivas das notícias; b) aos critérios relativos ao produto informativo; c) aos critérios relativos ao meio de informação; d) aos critérios relativos ao público e e) aos critérios relativos à concorrência16. Na contemporaneidade observamos que os valores notícia são dinâmicos, pois novas práticas são introduzidas ou intensificadas, constituindo-se em inovações incorporadas à classificação de Wolf (1987), a exemplo do movimento dos mediadores públicos coprodutores da notícia (VIZEU; SIQUEIRA, 2010).

O telejornalismo opera a partir desses critérios de noticiabilidade, considerando duas linguagens que promovem uma espécie de negociação para a produção de sentido das notícias relevantes para a audiência que são a: a) linguagem textual e sonora e a b) linguagem imagética. Com essas linguagens, os editores de TV partem para a construção das suas narrativas noticiosas e buscam corresponder ao regime de crença proposto: “a televisão procura cercar-se de estratégias discursivas e mecanismos expressivos que garantam os efeitos de sentido de verdade, autenticidade, credibilidade de que carece” (DUARTE, 2007, p. 51).

A televisão produz sentidos e os oferta à sociedade a partir da negociação de linguagens (principalmente a imagética), de gêneros e de formatos. O jornalismo inserido nesse universo midiático produz sentidos sociais, realizando uma mediação de mundo capaz de dar ordem ao caos, transformando-o em um lugar de segurança ontológica para as pessoas, um lugar de referência que as pessoas recorrem para o bem e para o mal (VIZEU, 2008).

Mesmo diante do novo (a tecnologia digital, a convergência tecnológica etc), o jornalista consegue desenvolver e aprender novos procedimentos para continuar sendo o legítimo articulador do sentido da notícia. A tecnologia digital aumentou sua capacidade de arquiteto do real ao permitir que ele seja capaz de construir uma nova realidade nas notícias televisivas, que denominamos de Realidade Expandida.

Hallin (1993) se refere ao papel do jornalista como agente profissional e de caráter público, capaz de proporcionar informações atualizadas sobre assuntos do mundo. O jornalista não seria apenas um provedor de informação, mas também um ideólogo político, cuja missão daria o significado político mundial.

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A classificação sobre os valores-notícia é retomada no Capítulo 5 e com detalhes, na relação que fazemos entre as classificações de Wolf e Gans e a proposta de uma noticialidade ampliada e constitutiva da televisão.

Na tarefa de elaborar a informação jornalística, o repórter assume o papel de um “sujeito cognoscente da relação sujeito-objeto que se dá no contexto concreto”, construindo o mundo a ser conhecido de forma midiatizada. E é tomando consciência desse contexto que o repórter se dá conta do objeto, que vai ser conhecido por ele (VIZEU, 2008, p. 16-17).

O ambiente, “o mundo que realmente está lá fora e o pseudo-ambiente, as percepções subjetivas desse mundo” permitem a construção simbólica da realidade, transformando o jornalista em alguém capaz de fazer uma redução da complexidade e a simplificação da imagem do mundo. Alguém que tem o poder de criar, impor e reproduzir significados sociais, de construir parte da realidade social (KUNCZIK, 2002, p. 251 e 264).

Ao definir uma teoria do jornalismo contemporâneo relacionando a notícia entre uma forma singular de conhecimento e um mecanismo de construção social da realidade, Gadini (2007, p. 4) aponta que os jornalistas são os principais agentes da atividade jornalística, pois só eles são capazes de conectar uma multiplicidade de vozes e relacionar sentidos e códigos diferenciados.

Para Altheide (1976, p. 44), as notícias são “aquilo que os jornalistas definem como tal”; Tuchman (1993, p. 85) segue essa linha ao afirmar que julgar o que é notícia advém do “conhecimento sagrado, a capacidade secreta que diferencia o jornalista das demais pessoas”. Wolf (1987) discorda e diz que o faro jornalístico não é uma “capacidade misteriosa”, mas uma “capacidade standard (adquirida a partir de parâmetros delimitáveis: os valores-notícia)” para agrupar, instantaneamente, num ponto de equilíbrio, fatores bastante diversos. Para Vizeu (2005), os jornalistas realizam enquadramento do real e como sujeitos da enunciação, se convertem em mediadores creditados, autorizados, entre a cidadania e o poder, construindo assim uma parte da realidade social. A função da notícia seria a de orientar o homem e a sociedade nesse mundo real, considerando a natureza da notícia como sendo:

Uma representação social da realidade cotidiana, um bem público, produzido institucionalmente, que submetida às práticas jornalísticas possibilita o acesso das pessoas ao ‘mundo dos fatos’ (dia a dia) ao qual não podem aceder de maneira imediata. Esses fatos devem interessar a um grande número de indivíduos e responder a critérios de noticiabilidade (VIZEU, 2005, p. 8).

Ao reconhecer o jornalista como um articulador de sentidos e sua necessidade de fazer uso de recursos técnicos e de novas percepções para interpretar a realidade dos fatos buscando e conseguindo imagens que ajudem em sua representação, os jornalistas pretendem

atender a dois parâmetros de qualidade: o deles próprios e o da audiência. São as noções de verdade e relevância:

Verdade significa que a notícia está em conformidade com o fato do qual trata; e relevância significa que (a) as informações são importantes no interior da área temática objeto da cobertura e (b) as informações são adequadas a uma expectativa da parte dos indivíduos [...] de duas ordens: da ordem da recepção, o fenômeno pelo qual os indivíduos se percebem identificados e familiarizados com um determinado tipo de noticiário; da ordem da política, relativa ao esperado papel social que a atividade jornalística deva exercer na sociedade (GUERRA, 2003, p. 107 e 108).

Gomes (2006) ratifica que essa relação é que sustenta a confiança que a sociedade deposita no jornalismo e é com base nos parâmetros apresentados que essa confiança pode ser mantida ou quebrada, principalmente quando se pressupõe que os jornalistas, em suas rotinas produtivas, se preocupam com o que o público está esperando que eles façam com as notícias. Ou seja, os jornalistas precisam buscar a verdade dos fatos, dentro dos limites de sua profissão, para que possam estabelecer um processo de manutenção desse sistema de confiança desencadeado a partir dessa troca simbólica. Com os fatos apurados, partem, em seguida, para a construção de suas histórias, sendo que, no caso deste estudo, elas são contadas considerando a linguagem televisiva.