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1.2 Telejornalismo: o cardápio das escolhas

1.2.1 As notícias servidas na T

A mulher chega a casa, um pouco atrasada, e liga a TV. Quase uma hora da tarde, ela pensa se vai conseguir comer e descansar um pouco antes de voltar ao trabalho. Um tempo para o descanso é um ingrediente cada vez mais escasso em sua vida... Parte da comida está pronta. É só aquecer no micro-ondas, falta o suco e a salada. O cardápio do almoço é finalizado às pressas. Ela quer garantir que o prato esteja pronto para ser consumido, simultaneamente, com as notícias servidas pelo telejornal. O almoço fica pronto, a telespectadora se acomoda na poltrona em frente à TV e começa a comer.

Logo as manchetes, as notícias, as reportagens vão sendo servidas em um cardápio e degustadas uma a uma. Uma matéria sobre soja transgênica chama sua atenção. Ela mostra a produção e o consumo da soja, as novas variedades e descreve também o caso de um rapaz que apresentou problemas na pele porque consumia soja em sua dieta alimentar. O dia a dia do personagem é contado em detalhes. O rapaz acorda cedo, estuda, trabalha, só vê a namorada uma vez por semana, vive correndo, tem problemas de hipertensão e, nos últimos meses, resolveu mudar a alimentação para baixar os índices de gordura no sangue, mas foi pego de surpresa com um elemento de sua dieta saudável.

A matéria é temperada com boas imagens sobre o processo de alteração das propriedades biológicas da soja. Em casa, sentada na sala de estar, a telespectadora absorve a mensagem, mas perde o apetite. No cardápio de seu almoço tem arroz, feijão, salada e bife de soja! O prato é deixado pela metade e metade das imagens que ela viu, na realidade, não foi gravada; o repórter cinematográfico não as viu nem as filmou, elas são fruto do trabalho de criação de um editor de arte no processo de edição digital que criou Infoimagens animadas.

As imagens mostradas foram entendidas pela telespectadora? Ela teria a mesma reação e entenderia os fatos se não tivesse visto a reportagem? Esse processo de construção da notícia correspondeu à apuração dos acontecimentos? A narrativa recheada pela Realidade Expandida ajudou a construir o sentido da notícia? As imagens transformaram em atos aquilo que teriam sido palavras no ar?

Propomos um entendimento, a partir desse relato ficcional, de que a edição digital tem permitido alterações mais elaboradas nos processos de edição dos telejornais por dispor de recursos mais completos e por aumentar o grau de Manipulação, quando o editor altera imagens filmadas pelas câmeras, ou criar imagens para reconstituir, cruzar informações complexas e simular os fatos. Pretendíamos, então, verificar como essas novas forças simbólicas de construção da notícia televisiva estão atuando na definição da verdade jornalística na contemporaneidade e como elas estão sendo conduzidas e percebidas pelos jornalistas e demais profissionais responsáveis pela produção da notícia, especialmente, na fase de tratamento das informações.

As formas da narrativa noticiosa na TV contemporânea, influenciadas direta ou indiretamente pelo dispositivo tecnológico digital, têm indicado que, mais do que contar histórias com valor-notícia, o jornalista de TV é incentivado a não ter preconceitos, a se molhar no gênero ficcional e se valer das novas maneiras de compor a realidade imagética com o digital. Esperam-se dele atitudes mais criativas para construir verdades jornalísticas mais verossímeis. E, como criador, o jornalista de TV está tendo que aprender a construir universos, Realidades Expandidas com camadas adicionais de informação, a partir dos fatos do cotidiano com valor-notícia, e não apenas produzir uma tradicional narrativa noticiosa.

Esclarecemos que o termo “manipulação” usado considera a existência, mas não dá foco a um sentido maniqueísta. Para nosso estudo, significa, de forma ampla, manejar, dar forma, transformar os fatos em notícias. Particularmente, nesta pesquisa, significa que os jornalistas de TV “manipulam” parte da realidade da vida cotidiana (VILCHES, 1989) como estratégia para construir mundos possíveis (RODRIGO ALSINA, 2009). Queríamos saber como e por que algumas imagens são escolhidas pelos editores de telejornais para serem

manipuladas e tratadas no processo de Manipulação da edição não-linear digital com o objetivo de provocar um efeito de edição e/ou um entendimento diferenciado do que seria a simples montagem seca da notícia.

O mesmo esclarecimento queremos dar ao termo “simulação”. Ao afirmarmos que os jornalistas constroem simulacros, não se privilegia o sentido falseador da realidade, de destruição do sentido (BAUDRILLARD, 1991), ao contrário, preocupa-nos situar a “simulação” como uma potência para a produção do sentido (DELEUZE, 1969) especialmente no campo do jornalismo como uma instituição intermediária que constrói as notícias e tem conferido ao cidadão, cada vez mais, o direito de participar dessa construção de sentido e, consequentemente, da construção social da realidade (BERGER; LUCKMANN, 2004). Estamos nos referindo à “simulação” do real que o jornalismo realiza em suas rotinas, especialmente para construir as notícias e a Simulação possibilitada pela tecnologia digital que cria imagens técnicas, de síntese, no computador, para que sejam usadas na cobertura das matérias no processo de edição dos telejornais.

Não pretendemos minimizar a força que os termos manipulação e simulação têm nas pesquisas na Comunicação e no Jornalismo, mas apenas situar desde já o entendimento que temos de sua relação próxima com o objeto de pesquisa proposto. Temos em mente que se trata de um desafio, pois esses termos sempre foram tratados de uma forma negativa e/ou pejorativa. Não queremos perder de vista esse recorte e uma problematização mais detalhada dos termos é feita mais adiante. Os temos “manipulação” e “simulação” usados para nomear as práticas jornalísticas generalizadas, que permeiam todo o texto são usadas em minúsculo e entre aspas. Elas são mais bem apresentadas no Capítulo 3, numa relação das práticas no jornalismo e como potência tecnológica e comunicativa para a produção das notícias de TV que busca torná-las mais inteligíveis e compreensíveis. Os termos Simulação e Manipulação que nomeiam os processos de criação e tratamento de imagens na fase de edição digital nos telejornais são usados com a primeira letra em maiúsculo e sem aspas e são apresentados em detalhes no Capítulos 5.

Pretendíamos repensar práticas jornalísticas e alguns conceitos a elas associados, pois o telejornalismo, na forma que apresentamos nos Capítulos 2 e 3, sempre manipularam e simularam imagens para representar a realidade. Em alguma medida, nossa pesquisa se escora no terreno movediço de desconstrução de alguns mitos do jornalismo: o da objetividade, o da manipulação e da simulação jornalísticas, o da divergência midiática e o da pureza de gêneros na televisão.

O que se problematizou foi a representação da realidade que se configurava inimaginável para os jornalistas e os pesquisadores da comunicação até um passado recente, isto é, pensar a comunicação e, em particular, o uso da edição digital no telejornalismo, dentro de uma realidade de cultura profissional bastante informatizada. O pincel computadorizado que cria imagem do real a partir da tela branca ou o conjunto de homem- máquina que modifica a imagem, a partir de uma meta-imagem de registro da realidade, evidenciam seu caráter representativo e imagético sobre o cotidiano e que se legitimam no telejornalismo, pois nasceram dentro do campo jornalístico e em um contexto de apuração dos fatos sociais com valor-notícia. Ao escolher o ingrediente digital para dar liga à nossa receita, queríamos saber: como essa prática se dá no contemporâneo?