• Nenhum resultado encontrado

2. A dinâmica da cultura

2.1. A assimilação e acumulação de padrões

A noção de mudança por assimilação é a mais antiga e não é propriamente um processo de transformação cultural, porque se trata da sobreposição de uma cultura sobre outra, portanto do desaparecimento ou morte de uma cultura e não da sua mudança. É claro que é questionável se este processo é viável na realidade, ou seja, se é possível conceber uma situação, mesmo de conquista, em que o invasor consegue reduzir a cultura invadida a uma inexistência. Apesar desta hipótese ser dificilmente concebível na prática, ela era, nas décadas de sessenta e setenta do século XX, uma das melhores explicações para a problemática da mudança cultural, que de uma forma geral, passava quase desapercebida e era só muito vagamente tratada pelos autores que se dedicavam ao estudo da cultura.

Uma das razões para explicar a falta de interesse por uma questão que hoje nos parece tão premente é o carácter que assumia a própria noção de cultura, que ou era aceite na sua qualidade de permanência substantiva, ou era pura e simplesmente considerada inexistente. Deste modo, dificilmente se poderia investigar a mudança de um fenómeno que, ou existe ou não existe, mas não se move. Perante uma situação de conquista, invasão ou colonização, a cultura da maioria ou do mais forte, sobrepunha-se à cultura do mais fraco ou minoritário, que deste modo desaparecia, quer por desintegração, quer por assimilação (Dias, 1961:109), mas mais uma vez não se modificava ou, se o fazia, as «transformações estruturais no seio do sistema mais fraco» eram de tal modo «importantes» (Balandier, 1971:197), que este se descaracterizava ao ponto de praticamente desaparecer. É certo que existem honrosas excepções a este ponto de vista,

curiosamente bastante anteriores, em que se detecta precisamente o movimento inverso, ou seja, o da criação de diferença a partir da coexistência de grupos portadores de modelos culturais diferentes. Citem-se apenas, a título de exemplo, a obra de Max Gluckman de 1958, The social organization of modern Zululand, em que o autor da escola de Manchester refere, a propósito da comemoração conjunta da inauguração de uma ponte, «That Zulu and europeans could co-operate in the celebration at the bridge shows at they form together a community with specific modes of behaviour to one another.40». Na mesma linha, surge o trabalho, bastante anterior, de Thomas e Znaniecki, The polish peasent in Europe and America, cujos cinco volumes foram publicado pela primeira vez entre 1918 e 1922, em que os autores referem explicitamente a criação de diferença a partir do contacto entre grupos socialmente desiguais:

«The striking phenomenon, the central object of our investigation, is the formation of coherent group out of originally incoherent elements, the creation of a society which in structure and prevalent attitudes is neither Polish nor American but constitutes a specific new product whose raw materials have been partly drawn from Polish traditions, partly from American social values as the immigrant sees and interprets them.»41

Para além do interesse desta afirmação, sobretudo tendo em conta a época em que foi produzida, praticamente no início do século XX, é talvez mais curioso ainda constatar, o enquadramento em que ela surge directamente citada, na obra, muito mais actual de Marcus Banks (1996), e a falta de relevância atribuída por este autor à última frase da citação apresentada. Assim, Banks limita-se a referir a propósito da integração americana dos camponeses polacos, que estes vão adquirindo cada vez mais «atitudes e comportamentos da chamada “cultura de acolhimento”» (Idem:66), um processo geralmente designado por «assimilação». Banks confirma, mais adiante, que é precisamente este processo que ocupará sociólogos e antropólogos nos próximos setenta anos, ou seja, uma via claramente privilegiadora da visão homogeneizante dos encontros de culturas, em que estes são apresentados como “guerras”, com vencidos condenados ao desaparecimento. É certamente por causa desta visão, que passa desapercebida a referência explícita, por parte de Thomas e Znaniecki, à importância da interpretação dos valores americanos elaborada pelos imigrantes na construção da sua nova identidade. Pois é precisamente este processo de reinterpretação de valores em

40

contextos diferentes que promove o «specific new product» de que falam os dois autores, e que é claramente fruto de um processo de mudança cultural induzida por um encontro de culturas num contexto determinado. Aparentemente, esta questão escapou ao interesse dos estudiosos na matéria durante muitos anos, e só veio a ressurgir recentemente no âmbito das múltiplas questões levantadas pelo processo de globalização. Mesmo Geertz, que em matéria de estudos sobre cultura é sem sombra de dúvida um marco importante a todos os níveis, praticamente ignorou a problemática da mudança cultural, encarando a cultura, na sua totalidade, como uma acumulação de padrões, ou seja, sistemas de símbolos significativos (Geertz, 1973:46). Esta hipótese parece pouco viável para explicar a mudança cultural, pois a complexidade do sistema tê-lo-ia tornado entretanto absolutamente impossível de dominar, o que acarretaria o caos, que o próprio Geertz associa a ausência de cultura42.

A transferência analógica proposta por Shore pode contribuir para resolver os problemas teóricos deixados em aberto por Geertz, nomeadamente os limites da acumulação de padrões, sem cair na visão simplista da teoria da assimilação que aposta no desaparecimento de modelos culturais por simples sobreposição dos mais fortes. A transferência analógica permite ainda associar processos de mudança cultural mais dramática43, os que decorrem necessariamente do encontro entre grupos portadores de esquemas matriciais diferentes e as mudanças dos vários modelos culturais que se interligam no âmbito mais ou menos ambíguo de uma matriz única.